segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

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Invenção de S

Como é S? Como você gostaria que fosse? Como eu acredito que ela deva ser? E como é que S gostaria de ser? É daquelas que nas ruas e supermercados encara os homens? Não. Ou somente com discrição. Mantêm na maioria das vezes os olhos baixos. E tem um profundíssimo olhar de peixe de recônditas águas frias, de túneis de neblinas densas, de silêncio sentimental olvidado em si mesmo. Porém os homens miram a todo momento a silhueta de S. Só aqueles que procuram mulheres não vulgares. S não é das que chacoalham as ancas às insinuações e assobios, galanteios e frases de efeito para popozudas de plantão. Ô lá em casa, se você quer saber, é um exemplo de tais frases, entusiasticamente utilizadas por pedreiros (não exatamente os que trabalham em construções, mas até mesmo, entre muitos, homens ricos, porém de espírito, digamos, tosco, assim como entregadores de panfletos, taxistas e motoristas em geral, etc). mas com S tudo é diferente, ela se guarda, não com recato, senão porque há alguma vocação em S para a sabedoria. Invento eu suas vocações. Invento se é sábia ou não. Invento, sem pudores, uma S semelhante à musa que era tão cheia de pudor que vivia nua. Desenho S com tintas humanas. Não, é S quem me desenha. Envio S para longe? Ou ela é que permanece em mim lá onde sou estanque, sangue coagulado? S não é alta, se você quer saber. Deduzo que estudou balé clássico em remota época do colegial, dada sua postura retilínea. S tem maçãs no rosto, não avermelhadas, em verdade, um tanto pálidas. O rosto é bem desenhado, boa geometria. O seu narizinho é quase implicante. Alguma semelhança com Dorothy Parker na flor ferida de sua beleza. É um nariz levemente arrebitado, pequenino. Narinas que lançam pouco ar para fora. Os lábios são menos que grossos, mais que finos, mais que asiáticos, menos que africanos. E a voz de S? Turva, soprada, diria, nem grave nem aguda. É uma espécie de voz recém amanhecida. S fuma? Fuma. Socialmente. E quando é acometida por stress, quando se sente pressionada ou acuada. É elegante o modo como fuma. Os lábios, a maneira como contornam o cilindro queimando. Não há nada de pornográfico em S fumando. Erótico, talvez. Sensual, sem dúvida, mas ainda assim respeitando as particularidades de sua timidez e da meiguice. S executa ações de esmagar o toco no cinzeiro, de soltar para cima a nuvem de fumaça, como fossem acontecimentos displicentes quando intimamente foram estudados. S abre vez ou outra a bolsa pequena e preta, sem alça e de coro, e tira de dentro um tablete de Halls Preto, e mastiga a bala como nalgum piquenique à belle époque. S é aquela espécie de mulher que de uma hora para outra te crava os dentes na goela quando você menos espera. Assim é que prova sua mordedura saudável, com três ou seis obturações em dentes que um dia chegaram a doer bastante. E é agradável vê-la comer. S tem têmporas adocicadas, bem delineadas pela parceria com a curva do cabelo negro, cortado algo próximo, porém mais moderno, do estilo Chanel, estrategicamente bagunçado. Assim mantenho o pescoço de S revelado. As costas são lisas, mas com algumas pintas, menores e maiores, porém sem nenhuma mancha. Que magníficas costas, eretas, simétricas. Paralelas são suas omoplatas. À orla de sua cintura há carnes apalpáveis, conhecidas graciosamente por pneuzinhos. E os seios? Túrgidos. Nem um pouco afobados dentro do soutienzinho. Talvez eu exagere em relação ao soutienzinho, afinal não são mínimas azeitonas os seios de S. Bolinhas de tênis, talvez, levemente derretidas em fogo brando, e açucarados, delicatessen. Aliás, não são seios, são peitos, peitinhos de medida e envergadura beirando a perfeição. E o que mais? S não é radiosa, não obstante, o que há de opaco nela é, justo, o que provoca fascínio. Tem ossos leves, e uma pele sem excesso de colágeno. O Paraíso é uma fragrância. Sempre cheirosa é a minha S, com a lavanda que casa perfeitamente em seu suor nem tanto salgado. S não é de usar vestimentas pesadas, de difícil despir. La Maja Desnuda, sempre veste jeans da marca Levi´s, com suas misturas de índigo e lycra. Blusinha de algodão e casaquinho de lã por sobre o ombro em caso de sereno. E lá na extremidade inferior de seu corpo, envolvendo pezinhos que são folhas sem peso, S calça indefectíveis sapatilhas. Ops, cuidado com a poça d´água.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

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Estripulia

dele não se diz feio é mais complexo
contraditório exótico seu recheio não
orna nada com nada não é lógico
precisa não o que adorne tem o raro
na forma o sarro no biótipo precisa
não melancia no pescoço nem
rezar pai nosso comprar consórcio ou
consultar i-ching ou vestir
piercing tem cara de pato pés
tortos sem botinha ortopédica vai
no caminho certo um corpo
de porco e é o mais fofo o bumbum
ele empina o esperto do rabinho chato prático
para cavar perto d´água botar ovos é bom
de briga ruim de ginga de apostar corrida
perna de pau em partidas de futebol de
preguiça tem colesterol lá também
um tantinho de espinhas na cara problema
nas narinas necessita otorrinolaringologista
o estrambólico da turma ainda
é o que éramos noutra era apesar
de tudo nele não se vê choramingo
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O demônio come merda
mas tem um sorriso límpido

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

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Árvores

tenho oito anos
é manhã de sábado
caminho com meu pai pelo bairro

ele para diante de uma árvore
ele a está abraçando
colando o rosto em seu tronco rugoso

as árvores são melhor que a ciência, diz, as árvores
sob a serra elétrica são como Gandhi diante da violência
contra o mal que se faz contra elas são
as mais perfeitas filhas de Deus

corta (a palavra não é coincidência) para hoje

tenho 31 anos

vejo o funcionário da prefeitura que apunhala
galhos e troncos

pergunto: não é você aquele que adora cair de boca em abacates
(cada funcionário ao ler este poema use a fruta de sua preferência)?

corta

casa de campo do sr. prefeito

quem deu a ordem de derrubar
centenas de árvores em toda a cidade cidade cidade?, grita o bronzeado prefeito

a casa de campo dele é lindamente arborizada
você pode sair caminhar após o almoço
sem sequer se lambuzar com protetor solar

digo, na casa de campo do sr. prefeito

é, quem é que não gosta de sombra e água fresca? (quem pergunta?)

nunca saberei o que é o sadismo (quem pergunta?)

esses ecologistas também exageram, hein! (quem?)

corta

meus oito anos

e é assim, diz meu pai, algumas árvores
a gente vê soltando folhas
outras, arrebentando as calçadas

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

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Celebridade no jardim das delícias 1
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- Você foi na exposição sobre a banda?
- Não.
- Eu fui.
- Se você foi então sabe que eu não fui.
- É.
- Então por que perguntou se eu fui?
- De repente cê chegou mais tarde.
- Você saiu cedo de lá?
- Não.
- Não?
- Fui a última a sair.
- Então como é que eu poderia ter chegado depois de você?
- Não podia.
- Pois é.
- Você não imagina quando eu entrei.
- Tava cheio?
- Bombando... quando entrei todo mundo me olhou.
- O Lesma foi?
- Não
- Não?
- Não.
- Estranho, por que será que o Lesma não foi?
- Não sei... só sei que quando entrei todo mundo ficou quieto, me olhando. Eu disse um como vai pras 118 pessoas que tavam lá, e não conhecia nenhuma delas. Parecia que eu era uma ET. Fiquei ali um tempo sem falar nada, ninguém teve coragem de se aproximar, parecia que tavam esperando alguma coisa de mim.
- Que coisa?
- Sei lá, um discurso, não sei.
- E você?
- Eu ergui meu uísque e disse: Como vocês sabem, esta porra de mundo é pequeno demais e nós já demos algumas voltinhas ao redor dele na primeira classse, por isso, hoje, em noite tão ilustre, posso contar a vocês que a nossa banda Objetostantofaz nasceu da enorme úlcera de tédio que assolava na época o estomago da gente, cansadas de nossas vidas medíocres, frequentadoras de barzinhos de posers e de eventos de arte tão enfadonhos quanto essa merda de galeria com essas merdas dessas fotos tiradas por um cuzão feito esse aqui. E então apontei pro fotografo, meti a mão no meu uísque, tirei um gelo, joguei na cara do fotografo, o gelo acertou o nariz do idiota.
- E daí deu a maior merda.
- E daí a rapaziada começou a me aplaudir, e até o fotógrafo começou a me aplaudir.

domingo, 20 de fevereiro de 2011

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Lutador

entrei nas pernas com uma baiana
derrubei o cara
ele me colocou na guarda
passei a guarda
comecei a estrangular
ele conseguiu se safar
foi pra minhas costas
encaixou um mata-leão
escorreguei dali
nem sei bem como apliquei minha melhor chave de perna
ele se safou de novo
então fui pra cima
ele me colocou na meia guarda
tentou me apagar com um triangulo mal colocado
ali mesmo comecei a enfiar uns socos no nariz
fiz o filho da mãe cuspir o protetor
comecei a estrangular o pescoço outra vez
daí ele me beijou... na boca

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

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Paço 2

de onde a música?

ela me conduz para dentro
talvez ao Café

ali
um número cantado
intercalado com a récita de textos de autores
contemporâneos de Cândido de Abreu
misturados aos meus contemporâneos

curitibanos com figurinos franceses
em pé no balcão doces nas mãos
lambuzando os lábios amenizando os olhos

e os ouvidos agora a receber o hálito
do monólogo do edifício

pergunto: quais são seus sentimentos, pedras?
explica-nos sua arquitetura

e a voz mais íntima do prédio
como no conto de Edgar Allan Poe
o monumento, ser vivo
pragueja contra sua luta contra
fungos contra cupins

e chora a desolação de quando
por anos desocupado, doente
invadiram-no e roubaram
suas tubulações de cobre

que horror, exclamindago
não seria o mesmo que arrancar
os intestinos de uma pessoa?

venha, diz-me o prédio
aqui no alto do meu cérebro

subo a majestosa escada
trabalhada em peroba envernizada
convulsões de imagens desconexas
da progressão do crescimento urbano
em minha mente

e estou no primeiro pavimento
e já no segundo e então
o gabinete do prefeito Cândido de Abreu

presencio um diálogo
entre o prédio e Cândido
ele se aconselha com o Paço
o que faço? e coloca a mão na testa

depois diz: os Hércules art nouveau
que suportam a torre
estão realmente exaustos, meu caro

e o edifício boceja sussurra algo
que não compreendo

Cândido olha para mim
bufa, coça a bunda, tira os sapatos, as meias
e inicia uma série de movimentos
de dança folclórica
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não identifico de que etnia

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

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Diálogos & Lances de Dados
com Ivan Justen Santana & Convidados
(Jamais Aboliremos o Acaso)
Sempre na terceira terça-feira do mês,
o poeta e tradutor Ivan Justen Santana
chama convidados-surpresa para dialogar,
bebericar e conviver no Wonka Bar.
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dia: 15/02
horário: 21h
entrada: R$ 5
consumação livre

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Foto: Cesar Brustolin
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Paço 1

no século XIX ele vivia às escuras
e cheirava a estrume das montarias e
das carroças misturado à lama das ruas

sua mente era marcada pelo sino das igrejas e
apitos dos engenhos e pelo cenário
cinza chuvoso que seus olhos retiam

ninguém jamais o veria sem guarda-chuva

em meio aos cafés confeitarias alfaiatarias
casas de moda cinemas chapelaria charutaria
ele era um cara parecido com Fernando Pessoa

ou talvez fosse o próprio
ao pé do Paço da Liberdade à época em que o Paço
não era o Paço mas o Mercado Municipal

sem dar bom dia a ninguém como alguém
que entrasse num elevador do
Centro Cívico numa segunda-feira
ele costumava pegar o bonde logo de manhã

em direção ao centro e seus cinemas
esconderijos perfeitos que muitos anos depois, digo
um dia viriam a ser o Ritz o Groff o Luz

pois, antes de mais nada
era um tímido patológico circulando por praças líricas
a conversar quando muito

em algum momento a conversar com a estátua
de um Generoso Marques que ainda nem mesmo
havia nem mesmo na pergunta
para que serve uma estátua?

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

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Invenção de LF
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E se eu o chamar de LF? Parece-me bem, é justo. Aqui entra na história LF. Explico: Lembra que teve um momento lá atrás (ler Fagulhas, irrelevantes fragmentos de narração) em que me levantei e fui ao banheiro? A propósito dessa ida farei agora um flashback para o interior do banheiro.O barulho do mijo na água da privada. Alguém que tivesse usado antes de mim aquele sanitário também não havia dado à descarga. A água suja, amarelada de um amarelo espesso e escuro. Preciso diminuir o café. Chacoalho o membro (como naqueles textos que a gente pode ler no www.contoseróticos.com.br). Ele mesmo, o pau, está um tanto encolhido, em respeito ao frio, espero, o que dificulta um pouco a manobra. Caem pingos na cueca. Levando o zíper da calça. Preciso decidir se lavo as mãos ou não. É líquido o sabonete que tem ali, odor de morango. Ok, excepcionalmente as lavo. Minúcias de decisões que devemos tomar nos banheiros. Depois faço um bochecho com água da pia. Enxáguo o rosto, a barba fica empapada. Enxugo-os com a toalha de papel. À força arranco do maldito suporte mais uma folha. E enquanto esfrego o rosto com uma terceira toalhinha me sinto culpado, meus olhos acabam de se deparar com a frase duas toalhas são suficientes para secagem das mãos. Mas estou secando a boca e o queixo babado, menos mal para o meu lado, é, afinal, uma boa justificativa à meu favor. Droga, com a quarta toalha penso não em enxugar o rosto, mas em apagá-lo.É, estou me olhando no espelho. O que vejo? Barba, muita barba, como fosse um terreno baldio tomado por vegetação o meu rosto. Em meio aquela fauna e flora meus óculos se anunciam cheios de rancores em relação ao que me ajudam a ver. Por trás dos óculos, olhos verdes. Olhos verdes com chuva de granizo dentro. Meus cabelos são aloirados, alguns fios brancos. É uma vasta cabeleira que ainda não decidiu se vai cair ou embranquecer.Visto um pulôver claro, cor magenta, manchado de café. Um corpo. Um corpo que nos últimos seis meses perdeu uns trinta e poucos quilos e mesmo assim ainda está mais para Pingüim do que para Batman. Pelo menos não sou um daqueles idiotas do Clube Curitibano que ficam disputando para ver quem é que agüenta correr por mais tampo encima de uma esteira ergométrica, para depois no Bar do Tênis se vangloriar por ser o novo campeão da Olimpicc.Espelho espelho meu será isto aqui um filme de Jim Jarmusch? É a chance que tenho para me inventar. Talvez seja bom me ver assim tão turvo, desfocado. As deformações estão mais por trás da imagem que vejo. A máscara não é a própria cara, porém não é capaz de não traí-la repetindo suas feições e expressões de impiedosa auto-denúncia. Não sei se sou capaz de me construir em detalhes, e não me importo. Sei que informar a um leitor que o personagem não reagiu, que o personagem é todo ele a ausência de um sorriso, sei que tais detalhes dirão mais sobre ele do que construí-lo minuciosamente osso a osso.Dou outra olhadela no espelho, a última, antes de sair do banheiro. Sei que construo de mim alguém que poderia ser chamado Solidão. E a meu ver tudo isso é menos que diabólico, menos que angelical. Devo ser um personagem que ficará no meio do caminho. As medidas daquilo que invento estão em meu punho doído, na força que os dedos têm que fazer para manter a caneta correndo no papel. As que estão ali em minha frente certamente são feições de tristeza.Penso: Admita, paspalho, admita que você aprendeu direitinho a mimese da tristeza. Você é um canastrão, o melhor papel que faz é de macho condoído. Todas as ausências de caras-e-bocas, todas as faltas de entusiasmo se assiste em tua cara. Nem essa overdose de inconsciência te salva. Você é um cachorro, um dog, dos mais desprezíveis, você e tua cara de carente profissional, abanando o rabo para primeira garotinha um pouco esperta que aparece na tua frente.Agora me pergunto se cachorros morrem de amor. Não, cachorros não morrem de amor. Cachorros morrem atropelados. Morrem da falta de ração. Mas não morrem, não mesmo, de amor. Se ao menos eu fosse um cachorrão fodedor, teria uma mandíbula temida e desejada. Deixaria minha marca indelével em cicatrizes eternas.Será esse o personagem que busco? O sujeito que fará par romântico com S? Será essa triste figura o meu LF? Devo temê-lo? Quanto tempo de pesquisa frente a um espelho para extrair algo real de dentro daquela imagem, algum sinal de que ali há vida? Mas espelhos não guardam nada, espelho não guardam nem borrões de lembranças. Só um kamikaze procuraria um personagem onde seus piores sentimentos vieram à tona.