Venho pela XV. Pessoas aos milhares, para cá e
para lá, cegos com bengala, homens-terno, hippies sem cores, jovens-bicicletas,
mulheres-salto alto, escuros óculos, velhos-chapéus, rapazes-violão nas costas,
cabeludos-carecas, magros-negros, velhos-punks-crianças, palhaços-sombras, músicos-estátuas que se mexem, deficientes físicos, o inverno a desfilar gorros e pulôveres, toda a sorte e azar de se ser
o que se é, alguém, ninguém. Passam. Nenhuma história posso ler em suas faces tiques
de lábios e sobrancelhas. Passam. E depois que passam nem mesmo as faces, são
grupos-casais a flutuar no estômago da cidade. O petit pavê, o basalto escuro,
a calcárea branca formando estilizadas imagens de pinha, lojas de roupas,
aparelhos eletrônicos, lanchonetes, cafés, bancos, canteiros de flores, farmácias, prédios de escritórios, isso e aquilo, a imagem
de uma longínqua manhã de sábado com meu pai a me levar pela mão
vamos entrar aqui, comprar um sapato para você.
Meu primeiro par, de couro. Eu tinha oito/nove anos. Boca Maldita. Ali, como
sempre, os obsoletos Cavaleiros
discutindo as notícias do dia. E o prefeito a discursar idiossincrasias em palanque
improvisado. Homens públicos jamais servirão de bóia salva-vida. Meu pai conhece
o engraxate. Ele esfrega com ritmo o escuro dos próximos passos que darei na vida.
A cadeira do engraxate uma ilha no mar de transeuntes e ambulantes. Meu pai paga.
Leva-me. Noto que (o própria prefeito?), com medo que alguém se machuque,
arrancaram os dentes afiados do monumento símbolo da Boca Maldita. Banguela
boca. Nesta manhã os libaneses ainda não ocuparam seus lugares nos bancos a falarem
sobre a política local em sua língua natal. Venho pelo caminho para cegos que
cruza a XV ao meio, de cabo a rabo. Passo pelo Bondinho. Pelo Bar Triângulo,
passo, onde ainda há coberturas roxas de acrílico há proteger de chuva e sol
quem senta para um chope com fritas. Antes as coberturas de todas as bancas do
centro e de todos os pontos de ônibus eram estas, redondas e roxas. Paro,
espero o fluxo de carros, o sinal para pedestres abre, atravesso a Dr. Muricy.
Seguindo o caminho dos cegos, contorno o chafariz, Galeria Ritz à direita.
Carros, carros, carros, atravesso a Marechal Floriano. Hordas de mendigos cobertores
e odores de mijo, merda, suor, sujeira, amanhecem nas marquises. Garis espetam,
agarram as folhas da fieira de árvores misturadas a pacotes de salgadinhos e
latas de refrigerante, jogados ao chão e nos redondos canteiros com flores,
elas também roxas, as flores. Chego na esquina da Monsenhor Celso, rua em que não
passa carro. Leio a placa: segurança monitorada por câmeras. Mais em frente a
Confeitaria das Famílias, onde na manhã de meu primeiro sapato de coro eu e meu
pai paramos para frapê e bomba de creme. Foi na semana de sua abismada frustração.