"Venha para mim se estiver envelhecendo
venha para mim se estiver a fim de um café"
Leonard Cohen
vou defender novamente a idéia, que você julga absurda, de que duas
pessoas que saem e conversam e se enxergam e dão as mãos em mútuo elogio e charmosamente
se esquivam e voltam desinteressadas do mundo ao redor, de algum modo, já estão
trepando. o Toddy pergunta o que estou fazendo? queria escrever um poema. e ele:
devia parar de bobagem e trabalhar na segunda novela da trilogia da geada. mas
me sinto incapaz de costurar o pouco da história que tenho, como cogitar a
invenção de novos capítulos? tomo o café da manhã. o Toddy me olha, lambe meu
pé descalço. a realidade é também uma religião, talvez por isso estejamos em
guerra. há um ano naquele bar de esquina você estava muito louca. e sapateou
para mim aquela cena do Blue Valentine, com ukulele e coração natalino na porta
da loja. e depois eu te salvei de uma matilha de bêbados. você estava
paralisada dentro do medo. eles desenhavam teu rosto sem parar, os cartunistas.
eu te puxei pela mão feito o segurança de uma celebridade e saímos dali. e
então nos beijamos com força no meio de uma rua do centro violento da cidade. se
estamos em guerra, estou vencendo pela via do afeto. você reclama: é como todos
eles, só quer me comer. não, eu quero também te comer. mas e eles, eles querem
te levar para o trabalho de manhã, eles querem almoçar no Quilo do bairro e
carregar a caixa da tv nova e insistir para você fazer aquelas maquetes
inspiradas nos romances do Faulkner? você me acha louca, burra, o que quer
comigo? escutou, Toddy, viu o que ela está me dizendo? eu te acho um pouquinho
louca sim, mas gosto desse tanto de loucura. e, menina, você é tão esperta,
como pode se chamar de burra? são coisas tão perfeitas as que você fala sobre Tolstói,
e sobre a música, e até sobre o meu livro, concordo com tudo que viu nele, você
foi mais fundo que os críticos e que meus amigos escritores. não, não, sou um
monstro, sou má, me esqueça. não posso, gosto tanto da rua quieta e quase sem
árvores em que mora, gosto das roupas de grife que você usa, mesmo que não
fossem de grife, como você quer me fazer acreditar, eu ia gostar, nem mais nem
menos. e gosto da tua profissão que iniciou tantos movimentos artísticos ao
longo da história. só deixaria de gostar da tua profissão se você abandonasse os
projetos mais ambiciosos por medo, não por falta de grana e tempo, mas por medo
se conformasse em passar a vida projetando banheiros de bares, embora eu goste até
dos banheiros que você projeta, pois sua alma também está ali. viu, eu sou um
monstro. ah, Toddy, esta menina às vezes não sabe mesmo o que diz. todos com
quem convivemos são anjos, ensinou dia desses o maestro Octavio Camargo, já
vimos o mal, ele está aí, sabemos que é pior que uma discussão entre amigos. são
todos anjos. e eu me pergunto: por que ela reverencia tanto a derrota? se um
dia fui cruel, você sabe, foi da boca para fora. se estamos em guerra, estou
vencendo pela via do afeto. estarei preparado se você desesperar, e quando
disser chorando que não suporta o mundo e quer morrer. seria uma cena
melodramática não ocorresse sussurrada em meu carro às 2:34 da madrugada em seu
rua ainda mais quieta e sem árvores. a realidade é também uma religião. óbvio
que isto é só um poema e será criticado: demasiado sentimental. apesar do
poema, estou pronto para te abraçar e entrar no ritmo do soluço do teu choro,
vai ficar tudo bem, vai ficar tudo bem, como fiz certa vez com o ator que
dividia o palco comigo em Esperando Godot (ele Pozzo, eu Lucky). depois da
nossa cena esperávamos o restante da peça no camarim, ele teve uma crise
nervosa e não conseguia respirar, o roxo em seu rosto era a morte. então o
abracei e aos poucos seu corpo foi aprendendo a respiração do meu e se
acalmando, voltando para os domínios da vida. sim, porque se estamos em guerra,
estou vencendo pela via do afeto. você chora: que em menos de 20 anos estará
intoleravelmente velha. eu também estarei, e todos nossos amigos, os que
resistirem. familiares terão partido, e as crianças de agora passarão a ser os
donos de nossos medos de agora. e então, se tivermos sorte, teremos 80 e tantos
anos, e eu a olhar atrás: não sei se verdadeiramente consegui ser um artista, gostava
de ter sido, mas até hoje não aprendi a me vestir com estilo. isso, não
consegui me vestir com estilo, da mesmo forma que se tenta em vão livrar-se da
falta. por enquanto, fico aqui fazendo bolinhas com o miolo do pão e jogando
para o Toddy. ele brinca, os labradores são uma raça de brincalhões. sabe,
concordo que viver exige demais e dói. me chame depois da meia-noite para eu
ajudar com o vestido e limpar as máscaras do seu rosto, você não merece estes
pesos.
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