*Fragmento de uma nova novela
em que tenho trabalhado.
em que tenho trabalhado.
No visor do celular, a mensagem do
Tadeu: às 10 horas, no meu escritório. Não existe lua quando olho pela janela
do apartamento. A manhã virá, para os velhos do centro será o momento de ir a
pé à missa. Na rua, ao longe, alarmes disparam, o vento lambe santinhos de
publicidade no asfalto. A madrugada não é generosa com nosso sono. A chuva
alaga a cidade. Minha memória afogada. Passaram-se anos, tudo o que tenho são
borrões de rostos que acreditei ter visto dias seguidos no café da manhã. Vó Bia
chegava, sentava e antes de se servir ia servindo todos os outros. Minha mãe
colocava um pouco de leite na xícara dela, da tia Ruth e na do meu pai. Vô
Breno já tinha se servido e no momento brigava com a manteiga, dura demais para
passar no pão. Surgíamos nós vestidos com o uniforme da escola. Ao fim do café,
Manoela levantava e ia rápido escovar os dentes, pegava suas coisas e tentava ajudar
um pouco Elza lavar a louça enquanto nos esperava. A gente levantava e também
ia escovar os dentes. Camilo era o primeiro a ficar pronto. Encostava-se na
porta da cozinha e ficava assistindo a arrumação. A luz da manhã em cheio em
seu rosto. Seus olhos claros ficavam ainda mais translúcidos e lhe davam o ar
de um raro ser angelical. Vó Bia, uma espécie de prece, não completamente
inaudível, um farelo de som, movia os lábios. A voz sibilante, o cabelo cinza, as magras mãos, a pele solta do tríceps,
as pernas varizes prestes a arrebentar. Os chinelos ao lado da cadeira,
no quarto. Deus cuida de tudo, ela dizia e ia perdendo os dentes nos intervalos
de seus porca miséria. Os ausentes são o impossível. Quando criança,
eu achava que sussurrando uma canção bonita a gente podia falar com Deus. A
ausência é modo mais eficaz que Deus tem para provar que não existe. Toda noite
volto trazendo uma sacolinha com filmes e algum livro na mochila. Fico lendo na
cama, em voz alta, a distrair a insônia. Peço uma pizza, não toco nela. Folheio
revistas. Livros comprados em sebos dividem espaço com latas de suco e
embalagens de comida pretensamente saudável. Quando é tarde e finalmente estou
faminto, o queijo parece um chiclete salgado. Posso lavar a louça outra hora.
Lá fora, escuto o ônibus madrugueiro. Buzinas,
para que não esqueçamos onde estamos. Moro no oitavo andar. Nunca sei se está sendo uma noite difícil. O que
tenho para hoje, dentes a escovar. Minha escova não é das mais macias. Onde os cachorros da vizinhança? Cansaram de uivar? Abro
a janela. O ar é frio e no céu estão entediados anjos
da guarda. Vem entrando a madrugada. Gatos miam nos becos, ninguém dá
por eles. E estes gatos que ouvimos chorar de madrugada são a reencarnação de
crianças mortas prematuramente. Estará Camilo entre elas? Chovia naquela manhã.
Camilo inventou de adiantar um serviço para meu pai, chegou antes do restante
do pessoal. A serra elétrica mastigou seu corpo. Não sei como aconteceu.
Ninguém jamais saberá. A assassina serra circular cortou o braço. Entrou pelas
costelas, chegando ao abdômen. Rompeu a alça intestinal. Atingiu o pâncreas. A
dor e a hemorragia mataram Camilo em minutos, nada pode ser feito. Vejo ainda
seu corpo destroçado sendo carregado para a caminhonete, com seu velho pulôver
azul, feito por vó Bia, não mais identificável. Foi Tadeu quem logo virou o
braço direito de meu pai e depois passou a dirigir a fabriqueta de móveis, o
que, na verdade, foi acontecendo da maneira mais natural possível. Depois que
Camilo partiu, tia Ruth entrava naquela espécie de transe de quem está
fisicamente presente mas com a cabeça a flutuar no espaço de uma ausência. Deixo
a janela aberta. Volto para o sofá, vivo nesta
nave vermelha pilotando a televisão, ora roncando baixo. Tenho de ir ao banco
para as contas de água, luz, gás. Não terei como fazer isso amanhã. Raspo a unha no visor do celular, a vibração da mensagem:
às 10 horas, no meu escritório. Estou dormindo sentado, igualzinho o vô Breno
nas tardes de sábado. A urgência não tem escolhas, por isso é burra. E eu? Sou
como os pombos da Praça Osório tateando o chão.
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