Daniel Day-Lewis como Hamlet, em montagem de 1989.
Conta a lenda que Daniel estreou e teve um colapso nervoso,
abandonando para sempre a temporada. Hamlet deve ter ficado nele.
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Você esqueceu quem sou
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Precisamos clima. Trilha sonora. Que soe a música. Qual? Alguma do Nirvana. Rock´n roll. É um corredor de luz. Não sei a largura ou o comprimento — é o corredor do casarão de G — no qual se passa a ação. A ação ao longo do corredor é a de avançar. Avanço, não há recuo, paradas sim, recuo não. A estória começa e estou no início do corredor com óculos escuros. A estória finda quando chego ao fim do corredor. Uma espécie de prece, não completamente inaudível, mas um farelo de som, move meus lábios, até que falo normalmente: aquela mulher queria escutar o quê de mim?, ter que provas?, que eu havia me transformado num cara de atitudes e pensamentos hediondos?, indagar sobre o que eu tinha feito pra minha língua vibrar contra ela com tanto ódio?, e que merdas degeneradas, afinal de contas, contra mim ela havia cometido?, o quê, o quê, o quê, afinal? Talvez não muito, talvez demais, porém certamente um ato, um ato daqueles que empalidece a graça e o rubor do recato, daqueles que chama a virtude de hipócrita, daqueles que arranca a rosa da bela fronte de um amor inocente e põe no lugar um sinal infamante, um ato que torna os votos conjugais tão verdadeiros quanto promessas de viciados, é uma coisa que arranca a própria alma do corpo de um juramento e transforma a santa religião em rapsódia de palavras. A verdade é que não dou a minha vida o valor de um alfinete, não estou disposto a resolver o caos que me trouxe aqui, não existe mais o lado de dentro, e isto é que é o próprio caos. Mas ela não entenderia, ou fingiria não entender, perguntaria que ato é esse, cujo simples prólogo ruge tão alto e me ameaça tanto?, mas se fomos feitos pra esquecer, esqueçamos, não há conhecimento capaz de ser superior a falta de memória, o que valem as ciências, as literaturas, os povos primitivos diante desta terrível capacidade humana de acumular esquecimentos?, talvez esqueçamos tanto e tudo com a intenção unicamente de preservar a sanidade, quem sabe esquecer não é o melhor jeito da gente não enlouquecer. Tudo é muito mais que um mero prólogo, já atingimos o clímax, a orquestra já desafinou tanto que as cordas dos instrumentos se romperam e os músicos estão mais surdos que os afogado, a sanidade é uma impostora, mais cedo ou mais tarde acaba desmascarada. Eu cruzava uma daquelas janelas enormes e podia ver como a face do céu tinha se tornado púrpura e a terra sólida e compacta, sentia que se aproximava o momento do juízo, tudo era um doloroso ar e talvez nem fosse outono. Era, não tudo, mas muito do que borbulhava em minha cabeça na medida em que subia os degraus do casarão atendendo ao chamado dela pra que eu fosse até seu quarto. Eu ainda não sabia que viria a cometer um crime. Não sabia que em determinado momento a obrigaria a sentar dizendo não vai sair daqui até que veja diante de um espelho a parte mais funda de si mesma, e que ela acharia que eu estava prestes a matá-la, e que gritaria por socorro. E que eu escutaria aquela voz asquerosa vinda detrás da tapeçaria libanesa pendurada na parede do quarto, a voz de um rato. Tamanha raiva nunca antes tinha corrido em meu sangue como naquele dia, eu sentia nojo, de mim, de todos, ali soava a voz de um rato, porém um rato morto. Por raiva, porque me sentia traído, porque acreditava fazer parte de um jogo sórdido, enfiaria uma faca no tapete, mesmo sem saber qual o rosto do rato escondido atrás da peça. Após tantos anos fora, agora em meu lar, odiava as escadas sem corrimão, as paredes frias de pedra, os quadros pendurados quase que na treva, a casa jogada às traças, aquela mulher em depressão avançada, eu podia antevê-la a chorar horrorizada em seu quarto. E não saberia dizer se estava lúcido ou não após esfaquear o rato, resultado de uma ação sangrenta e absurda, segundo palavras de lamento da mulher, mas pra mim, a ação que executaria seria tão má como matar um rei, e não um rato, e casar com o irmão desse rei. Assim poderia olhar os olhos de quem assassinava, e de fato não seria o novo esposo da mulher, mas um imbecil miserável, absurdo e intrometido idiota. Evidente, eu lamentaria sua morte, e sem tempo pra delongas daria adeus ao infeliz dizendo tê-lo tomado por um ser maior, um rato maior, talvez, então diria, não que não soubesse que a frase pudesse soar risível se ouvida fora de contexto, eu diria aceita teu destino, e ainda, num sopro de cinismo e pesar, tentaria dar ao pobre derradeira “informação” dizendo que ser prestativo demais tem seus perigos, embora o espírito de um fraco seja capaz de se tornar esperto após a morte. É certo que o corredor era longo, eu conhecia aquele assoalho como ninguém, sabia como caminhar de um jeito que as madeiras não rosnassem, mas daquela vez avançava como se liderasse uma cavalaria. Apesar das tabuas sentirem dores reumáticas nas costelas, avisavam que não entrasse no quarto daquela senhora, pareciam enxergar que em breve eu a faria dobrar as mãos, que seria o responsável por retorcer seu coração qual se faz com uma toalha encharcada, como seu coração ainda fosse de substância penetrável e o hábito do mal não o tivesse empedernido em bronze que nem couraça, não o tivesse protegido de qualquer resquício de sentimento. O corredor era longo e o assoalho não mais atormentado do que eu ali imaginando caras como Baudelaire se acabando em ópio e haxixe, Bukowski que pra não enlouquecer em quartos minúsculos de motéis fétidos lavava o peito com uísque, proibindo o pássaro que se escondia nos átrios de cantar, ou garotos com espinha no rosto que tomam banhos demorados, vestem sua melhor roupa, passam perfume, penteiam os cabelos como nunca fizeram antes, atravessam a sala de televisão tranquilos como quem vai buscar um copo de coca-cola na cozinha, sobem na pia da cozinha e se lançam do 17º andar por volta de três horas da tarde, e deixam de existir assim como existiu um Treplev ou um Kurt Cobain. Eram pensamentos encravados no meu crânio, palavras, palavras, palavras que me emputeciam cada vez mais. Estamos exatamente no meio do corredor, neste ponto saio da área semi-iluminada pelo velho bocal pendendo do teto com uma lâmpada amarela e enfraquecida, dirijo-me a um lugar escuro, apenas minha silhueta na penumbra, aqui tenho um acesso de vômito. Onde quase não posso ser visto, agachado, respiro com dificuldades. Depois é preciso que eu faça uma pausa no banheiro, pra vomitar mais do cheesburguer recheado com visões e profecias fatalistas, como vomitasse meus próprios olhos, que comi no almoço, vocês sabem quem sou. Volto do banheiro e estou ainda na mesma escuridão, agora me recompondo, tentando afastar para o lado nacos de treva, falando falando falando. Foi suando e tremendo que lavei o rosto e a boca na pia, bebi um gole de água, molhei os cabelos, fitei o rosto no espelho e beijei minha boca fedida de vômito porque, como qualquer um que tenta beijar sua própria imagem, foi a boca a única parte do meu corpo que aceitou o beijo. Então, como sempre ordenava aquela mulher quando censurava meus atos de criança mimada, engoli o choro. Enfrentaria G em instantes, não me permitiria derramar uma única lágrima em sua frente. Depois, já retornado ao mesmo ponto, no centro do corredor, reclamei a meus botões. Sei como foi, saí do banheiro resoluto, tentava ensaiar o que dizer, o cérebro pensava mais rápido que meus passos, o que havia dado certo em minha vida?, a resposta era somente o que havia dado certo, sem grana, sem talento pra futebol ou violão, sem carro importado ou casa própria, apenas um exímio chupador de vaginas. Por causa dessas garotas legais é que sempre estamos por aí jogados na sarjeta, a verdade é que a gente sabe que gosta mesmo de uma garota quando depois que goza não quer enxotá-la pra fora da cama, é curioso, porque sabendo que é um ato de sacrifício o sexual, mesmo assim o que elas mais querem é ser fodidas, ou o que têm no meio das pernas não valerá de porcaria nenhuma, já no caso dos homens sempre haverá a possibilidade da castração, eliminar o pau, no entanto uma buceta nunca será preenchida como almeja. Meus passos objetivos no corredor podiam ser escutados, eu me aproximava, sabia que G aguardava minha chegada com ansiedade, ela tinha vontade de me esganar, não pretendia me conceder seu perdão, algo amargo no interior de seu peito tinha trincado, eu devia pedir desculpas?, não concordava que fosse justo. P havia contado pra ela um estória terrível a meu respeito, instruíra minha mãe, dissera pra ela falar-me com firmeza, que minhas extravagâncias tinham se tornado demasiadas, não mais suportáveis, que ela havia servido de escudo se interpondo entre mim e o ódio que suscito. Pobre P, conhecia-o bem demais, era um rufião, parecia-me honesto no que fazia, e ser honesto é ser um em dez mil, pobre diabo, jamais foi capaz de compreender que mesmo o sol, tão puro, gera vermes em um cachorro, é curioso, mas os deuses gostam de beijar carniça, puxa-saco de merda, julgou-me louco, o imbecil era ele, dizia-me não querer roubar meu tempo, quando não havia nada que esse paspalho me roubasse que me fizesse menos falta, exceto minha vida, exceto minha, exceto minha vida, velho estúpido e entediante, fez minha caveira pra minha mãe. Ser ou não ser, não!, ser e não ser. Parecia-me bastante óbvio que enquanto ouvia meus passos batucando a madeira do corredor G pensasse que eu vinha, vertiginosamente, me auto-destruindo, seria possível que aquele garoto brincalhão tivesse chegado a tal ponto?, não queria acreditar, o filho insano?, só de pensar sua revolta aumentava e o estômago emitia sinais nauseados. Segundos antes de eu entrar no aposento ela abriria a gaveta da cômoda, pegaria o vidrinho de pílulas e ingeriria duas, eu ainda não sabia, o maldito P estaria com ela no quarto confabulando, um maricas, um fofoqueiro asqueroso que temendo ser pego em flagrante ato de maledicência contra mim se esconderia atrás dos tapetes na parede. Enquanto G tentaria controlar a respiração pra se acalmar, eu irromperia pela porta de seu aposento e, grosseiro, bastante na defensiva, indagaria e agora, mãe, qual é o problema?, ela, ainda em jejum, sentiria o estômago subir à garganta sob o efeito dos ansiolíticos e de seu sistema nervoso debilitado, então me fuzilaria trinta olhares coléricos dizendo Hamlet, você ofendeu teu pai. Eu sentiria vontade de esbravejar e partiria contra minha mãe pra agredi-la, mas não compreenderia com que forças fazê-lo, então agiria quase racionalmente, propondo um jogo psíquico: mãe você ofendeu meu pai, retrucando. Ela, sabendo como sou — bebê mimado, garotinho com medo de escuro, adolescente aventureiro, otário romântico, nunca um adulto injusto, debochado, cínico, pelo menos não pra ela — se espantaria. Também eu nunca haveria de ter escutado ela falar daquela maneira gaguejante: espera aí, espera, você está me respondendo numa língua idiota, ela falaria assim. Ela, que sabe quanto eu odeio a palavra idiota, que pra mim não é um adjetivo. Ela, me xingaria de idiota. Eu manteria o tom áspero do embate sem que ela jamais esperasse tal atitude de seu filho único, que a exemplo de outros, via-se agora, tinha se transformado naquilo que Nelson Rodrigues denominou monstro de circo num cavalinho, mártir, mártir do pai, mártir da mãe e da circunstância de ser filho único. Seu coração materno seria pego surpreendido, e que lamentável surpresa, visto que insistiríamos no joguete psicológico infame, embora sem nos divertir nem um pouco, ao contrário, evidente que depois do episódio nos abominaríamos por termos submetido um ao outro àquela situação. Mesmo assim minha crueldade adoraria ter vindo à tona, finalmente, mostrando presas e garras, dizendo espera aí mãe, você está me perguntando com uma língua imbecil, essa seria minha resposta, que a golpearia ainda mais fundo, que numa tentativa vã de ver sua autoridade imposta e respeitada, entre um suspiro de descrença e um pequeno impulso de leoa, anestesiada pelas pílulas, aviltada pelo conflito, perguntaria o que é isso, Hamlet?, e minha máscara de cinismo começaria a derreter. Um ar de fúria entre nós então se conteria qual uma granada clamando que alguém puxe a porra do pininho, assim eu voltaria a perguntar qual é o problema agora?, aproximando meu rosto, sugerindo com as mãos que ela estaria prestes a ser agarrada e chacoalhada, eu repetiria a primeira pergunta, irônica, impulsiva, a última gota que a faria derramar, só que agora mais virulenta, com as intenções de um verdadeiro torturador medieval: qual é a porra do problema agora!? G não se subjugaria, de jeito nenhum, ao contrário, haveria de se posicionar de forma bastante semelhante a minha, estando pronta pro ataque, seríamos macho e fêmea, não mãe e filho, búfalo macho, búfalo fêmea, ambos com as testas suficientemente iradas, ao ponto de sermos capazes de derrubar as paredes de pedra que alicerçam nossa casa sem sentir o crânio rachar, ela então imporia uma questão: você esqueceu quem sou? Evidente que não, eu poderia responder, mas a obviedade da resposta faria com que eu desconfiasse da capacidade de meu contra-ataque, você esqueceu quem sou? Será que eu realmente saberia quem era aquela mulher?, o que representava pra mim?, saberia, claro que sim. De todo modo, desejaria responder com raiva e mentindo, pois sua pergunta iria me acertar como um cruzado seco e potente, eu poderia ser levado à lona, quase, é, cambalearia, mas cair não cairia, ainda não, iria engolir aquele soco, por mais que me rasgasse a garganta, engoliria a seco, e só então responderia, sabendo e não sabendo o quê, sendo e não sendo aquilo: Você esqueceu quem sou? Não, por deus que não!, você é a rainha, mulher do irmão do teu marido, e, seria melhor se não fosse, é minha mãe. Foi quando do fim escuro do corredor cresceu, feito uma onda pesada e barulhenta, a canção Ain´t i a shame, vindo de dentro dos aposentos. Então, com as costas dos dedos, dei duas batinhas na porta, pedi licença e entrei. Sabia o que me esperava.
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Precisamos clima. Trilha sonora. Que soe a música. Qual? Alguma do Nirvana. Rock´n roll. É um corredor de luz. Não sei a largura ou o comprimento — é o corredor do casarão de G — no qual se passa a ação. A ação ao longo do corredor é a de avançar. Avanço, não há recuo, paradas sim, recuo não. A estória começa e estou no início do corredor com óculos escuros. A estória finda quando chego ao fim do corredor. Uma espécie de prece, não completamente inaudível, mas um farelo de som, move meus lábios, até que falo normalmente: aquela mulher queria escutar o quê de mim?, ter que provas?, que eu havia me transformado num cara de atitudes e pensamentos hediondos?, indagar sobre o que eu tinha feito pra minha língua vibrar contra ela com tanto ódio?, e que merdas degeneradas, afinal de contas, contra mim ela havia cometido?, o quê, o quê, o quê, afinal? Talvez não muito, talvez demais, porém certamente um ato, um ato daqueles que empalidece a graça e o rubor do recato, daqueles que chama a virtude de hipócrita, daqueles que arranca a rosa da bela fronte de um amor inocente e põe no lugar um sinal infamante, um ato que torna os votos conjugais tão verdadeiros quanto promessas de viciados, é uma coisa que arranca a própria alma do corpo de um juramento e transforma a santa religião em rapsódia de palavras. A verdade é que não dou a minha vida o valor de um alfinete, não estou disposto a resolver o caos que me trouxe aqui, não existe mais o lado de dentro, e isto é que é o próprio caos. Mas ela não entenderia, ou fingiria não entender, perguntaria que ato é esse, cujo simples prólogo ruge tão alto e me ameaça tanto?, mas se fomos feitos pra esquecer, esqueçamos, não há conhecimento capaz de ser superior a falta de memória, o que valem as ciências, as literaturas, os povos primitivos diante desta terrível capacidade humana de acumular esquecimentos?, talvez esqueçamos tanto e tudo com a intenção unicamente de preservar a sanidade, quem sabe esquecer não é o melhor jeito da gente não enlouquecer. Tudo é muito mais que um mero prólogo, já atingimos o clímax, a orquestra já desafinou tanto que as cordas dos instrumentos se romperam e os músicos estão mais surdos que os afogado, a sanidade é uma impostora, mais cedo ou mais tarde acaba desmascarada. Eu cruzava uma daquelas janelas enormes e podia ver como a face do céu tinha se tornado púrpura e a terra sólida e compacta, sentia que se aproximava o momento do juízo, tudo era um doloroso ar e talvez nem fosse outono. Era, não tudo, mas muito do que borbulhava em minha cabeça na medida em que subia os degraus do casarão atendendo ao chamado dela pra que eu fosse até seu quarto. Eu ainda não sabia que viria a cometer um crime. Não sabia que em determinado momento a obrigaria a sentar dizendo não vai sair daqui até que veja diante de um espelho a parte mais funda de si mesma, e que ela acharia que eu estava prestes a matá-la, e que gritaria por socorro. E que eu escutaria aquela voz asquerosa vinda detrás da tapeçaria libanesa pendurada na parede do quarto, a voz de um rato. Tamanha raiva nunca antes tinha corrido em meu sangue como naquele dia, eu sentia nojo, de mim, de todos, ali soava a voz de um rato, porém um rato morto. Por raiva, porque me sentia traído, porque acreditava fazer parte de um jogo sórdido, enfiaria uma faca no tapete, mesmo sem saber qual o rosto do rato escondido atrás da peça. Após tantos anos fora, agora em meu lar, odiava as escadas sem corrimão, as paredes frias de pedra, os quadros pendurados quase que na treva, a casa jogada às traças, aquela mulher em depressão avançada, eu podia antevê-la a chorar horrorizada em seu quarto. E não saberia dizer se estava lúcido ou não após esfaquear o rato, resultado de uma ação sangrenta e absurda, segundo palavras de lamento da mulher, mas pra mim, a ação que executaria seria tão má como matar um rei, e não um rato, e casar com o irmão desse rei. Assim poderia olhar os olhos de quem assassinava, e de fato não seria o novo esposo da mulher, mas um imbecil miserável, absurdo e intrometido idiota. Evidente, eu lamentaria sua morte, e sem tempo pra delongas daria adeus ao infeliz dizendo tê-lo tomado por um ser maior, um rato maior, talvez, então diria, não que não soubesse que a frase pudesse soar risível se ouvida fora de contexto, eu diria aceita teu destino, e ainda, num sopro de cinismo e pesar, tentaria dar ao pobre derradeira “informação” dizendo que ser prestativo demais tem seus perigos, embora o espírito de um fraco seja capaz de se tornar esperto após a morte. É certo que o corredor era longo, eu conhecia aquele assoalho como ninguém, sabia como caminhar de um jeito que as madeiras não rosnassem, mas daquela vez avançava como se liderasse uma cavalaria. Apesar das tabuas sentirem dores reumáticas nas costelas, avisavam que não entrasse no quarto daquela senhora, pareciam enxergar que em breve eu a faria dobrar as mãos, que seria o responsável por retorcer seu coração qual se faz com uma toalha encharcada, como seu coração ainda fosse de substância penetrável e o hábito do mal não o tivesse empedernido em bronze que nem couraça, não o tivesse protegido de qualquer resquício de sentimento. O corredor era longo e o assoalho não mais atormentado do que eu ali imaginando caras como Baudelaire se acabando em ópio e haxixe, Bukowski que pra não enlouquecer em quartos minúsculos de motéis fétidos lavava o peito com uísque, proibindo o pássaro que se escondia nos átrios de cantar, ou garotos com espinha no rosto que tomam banhos demorados, vestem sua melhor roupa, passam perfume, penteiam os cabelos como nunca fizeram antes, atravessam a sala de televisão tranquilos como quem vai buscar um copo de coca-cola na cozinha, sobem na pia da cozinha e se lançam do 17º andar por volta de três horas da tarde, e deixam de existir assim como existiu um Treplev ou um Kurt Cobain. Eram pensamentos encravados no meu crânio, palavras, palavras, palavras que me emputeciam cada vez mais. Estamos exatamente no meio do corredor, neste ponto saio da área semi-iluminada pelo velho bocal pendendo do teto com uma lâmpada amarela e enfraquecida, dirijo-me a um lugar escuro, apenas minha silhueta na penumbra, aqui tenho um acesso de vômito. Onde quase não posso ser visto, agachado, respiro com dificuldades. Depois é preciso que eu faça uma pausa no banheiro, pra vomitar mais do cheesburguer recheado com visões e profecias fatalistas, como vomitasse meus próprios olhos, que comi no almoço, vocês sabem quem sou. Volto do banheiro e estou ainda na mesma escuridão, agora me recompondo, tentando afastar para o lado nacos de treva, falando falando falando. Foi suando e tremendo que lavei o rosto e a boca na pia, bebi um gole de água, molhei os cabelos, fitei o rosto no espelho e beijei minha boca fedida de vômito porque, como qualquer um que tenta beijar sua própria imagem, foi a boca a única parte do meu corpo que aceitou o beijo. Então, como sempre ordenava aquela mulher quando censurava meus atos de criança mimada, engoli o choro. Enfrentaria G em instantes, não me permitiria derramar uma única lágrima em sua frente. Depois, já retornado ao mesmo ponto, no centro do corredor, reclamei a meus botões. Sei como foi, saí do banheiro resoluto, tentava ensaiar o que dizer, o cérebro pensava mais rápido que meus passos, o que havia dado certo em minha vida?, a resposta era somente o que havia dado certo, sem grana, sem talento pra futebol ou violão, sem carro importado ou casa própria, apenas um exímio chupador de vaginas. Por causa dessas garotas legais é que sempre estamos por aí jogados na sarjeta, a verdade é que a gente sabe que gosta mesmo de uma garota quando depois que goza não quer enxotá-la pra fora da cama, é curioso, porque sabendo que é um ato de sacrifício o sexual, mesmo assim o que elas mais querem é ser fodidas, ou o que têm no meio das pernas não valerá de porcaria nenhuma, já no caso dos homens sempre haverá a possibilidade da castração, eliminar o pau, no entanto uma buceta nunca será preenchida como almeja. Meus passos objetivos no corredor podiam ser escutados, eu me aproximava, sabia que G aguardava minha chegada com ansiedade, ela tinha vontade de me esganar, não pretendia me conceder seu perdão, algo amargo no interior de seu peito tinha trincado, eu devia pedir desculpas?, não concordava que fosse justo. P havia contado pra ela um estória terrível a meu respeito, instruíra minha mãe, dissera pra ela falar-me com firmeza, que minhas extravagâncias tinham se tornado demasiadas, não mais suportáveis, que ela havia servido de escudo se interpondo entre mim e o ódio que suscito. Pobre P, conhecia-o bem demais, era um rufião, parecia-me honesto no que fazia, e ser honesto é ser um em dez mil, pobre diabo, jamais foi capaz de compreender que mesmo o sol, tão puro, gera vermes em um cachorro, é curioso, mas os deuses gostam de beijar carniça, puxa-saco de merda, julgou-me louco, o imbecil era ele, dizia-me não querer roubar meu tempo, quando não havia nada que esse paspalho me roubasse que me fizesse menos falta, exceto minha vida, exceto minha, exceto minha vida, velho estúpido e entediante, fez minha caveira pra minha mãe. Ser ou não ser, não!, ser e não ser. Parecia-me bastante óbvio que enquanto ouvia meus passos batucando a madeira do corredor G pensasse que eu vinha, vertiginosamente, me auto-destruindo, seria possível que aquele garoto brincalhão tivesse chegado a tal ponto?, não queria acreditar, o filho insano?, só de pensar sua revolta aumentava e o estômago emitia sinais nauseados. Segundos antes de eu entrar no aposento ela abriria a gaveta da cômoda, pegaria o vidrinho de pílulas e ingeriria duas, eu ainda não sabia, o maldito P estaria com ela no quarto confabulando, um maricas, um fofoqueiro asqueroso que temendo ser pego em flagrante ato de maledicência contra mim se esconderia atrás dos tapetes na parede. Enquanto G tentaria controlar a respiração pra se acalmar, eu irromperia pela porta de seu aposento e, grosseiro, bastante na defensiva, indagaria e agora, mãe, qual é o problema?, ela, ainda em jejum, sentiria o estômago subir à garganta sob o efeito dos ansiolíticos e de seu sistema nervoso debilitado, então me fuzilaria trinta olhares coléricos dizendo Hamlet, você ofendeu teu pai. Eu sentiria vontade de esbravejar e partiria contra minha mãe pra agredi-la, mas não compreenderia com que forças fazê-lo, então agiria quase racionalmente, propondo um jogo psíquico: mãe você ofendeu meu pai, retrucando. Ela, sabendo como sou — bebê mimado, garotinho com medo de escuro, adolescente aventureiro, otário romântico, nunca um adulto injusto, debochado, cínico, pelo menos não pra ela — se espantaria. Também eu nunca haveria de ter escutado ela falar daquela maneira gaguejante: espera aí, espera, você está me respondendo numa língua idiota, ela falaria assim. Ela, que sabe quanto eu odeio a palavra idiota, que pra mim não é um adjetivo. Ela, me xingaria de idiota. Eu manteria o tom áspero do embate sem que ela jamais esperasse tal atitude de seu filho único, que a exemplo de outros, via-se agora, tinha se transformado naquilo que Nelson Rodrigues denominou monstro de circo num cavalinho, mártir, mártir do pai, mártir da mãe e da circunstância de ser filho único. Seu coração materno seria pego surpreendido, e que lamentável surpresa, visto que insistiríamos no joguete psicológico infame, embora sem nos divertir nem um pouco, ao contrário, evidente que depois do episódio nos abominaríamos por termos submetido um ao outro àquela situação. Mesmo assim minha crueldade adoraria ter vindo à tona, finalmente, mostrando presas e garras, dizendo espera aí mãe, você está me perguntando com uma língua imbecil, essa seria minha resposta, que a golpearia ainda mais fundo, que numa tentativa vã de ver sua autoridade imposta e respeitada, entre um suspiro de descrença e um pequeno impulso de leoa, anestesiada pelas pílulas, aviltada pelo conflito, perguntaria o que é isso, Hamlet?, e minha máscara de cinismo começaria a derreter. Um ar de fúria entre nós então se conteria qual uma granada clamando que alguém puxe a porra do pininho, assim eu voltaria a perguntar qual é o problema agora?, aproximando meu rosto, sugerindo com as mãos que ela estaria prestes a ser agarrada e chacoalhada, eu repetiria a primeira pergunta, irônica, impulsiva, a última gota que a faria derramar, só que agora mais virulenta, com as intenções de um verdadeiro torturador medieval: qual é a porra do problema agora!? G não se subjugaria, de jeito nenhum, ao contrário, haveria de se posicionar de forma bastante semelhante a minha, estando pronta pro ataque, seríamos macho e fêmea, não mãe e filho, búfalo macho, búfalo fêmea, ambos com as testas suficientemente iradas, ao ponto de sermos capazes de derrubar as paredes de pedra que alicerçam nossa casa sem sentir o crânio rachar, ela então imporia uma questão: você esqueceu quem sou? Evidente que não, eu poderia responder, mas a obviedade da resposta faria com que eu desconfiasse da capacidade de meu contra-ataque, você esqueceu quem sou? Será que eu realmente saberia quem era aquela mulher?, o que representava pra mim?, saberia, claro que sim. De todo modo, desejaria responder com raiva e mentindo, pois sua pergunta iria me acertar como um cruzado seco e potente, eu poderia ser levado à lona, quase, é, cambalearia, mas cair não cairia, ainda não, iria engolir aquele soco, por mais que me rasgasse a garganta, engoliria a seco, e só então responderia, sabendo e não sabendo o quê, sendo e não sendo aquilo: Você esqueceu quem sou? Não, por deus que não!, você é a rainha, mulher do irmão do teu marido, e, seria melhor se não fosse, é minha mãe. Foi quando do fim escuro do corredor cresceu, feito uma onda pesada e barulhenta, a canção Ain´t i a shame, vindo de dentro dos aposentos. Então, com as costas dos dedos, dei duas batinhas na porta, pedi licença e entrei. Sabia o que me esperava.
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