terça-feira, 11 de agosto de 2009

o pão brutal de ontem

ad O frio me morde
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adoSábado. Chove. Ligação da minha irmã: Acorda vagabundo. Fala, guria. Hoje você vai almoçar comigo e com os teus sobrinhos. Ela está agitada. Não é um convite, é uma intimação. Você é um tio ausente, vamos mudar isso e blablablá. Como ela consegue falar tanto em tão pouco tempo? Olho o relógio, 10:30. Meio-dia passo pra te pegar, levante, faça a barba, tome um banho e vê se veste uma roupa decente, a gente vai almoçar no shopping, não quero que as crianças andem com um maloqueiro. Tá. Meio-dia, meio-dia em ponto, passo aí. Beleza, Rebeca. E desligo antes de saber se ela desligou ou não. Chata. Chata, chata, chata. Mas é minha irmã. Sou incapaz de recusar um chamado dela. Sinto por ela essa enorme ternura. Ternura não, pena. Uma irmã que se veste bem. Uma irmã com a qual não me pareço em nada. A única coisa que temos de semelhante talvez sejam os pés gorduchos, altos, os tornozelos grossos. E, embora seja raro, adoro estar com meus sobrinhos. Quando Marlos, o pai imbecil das crianças, fez o que fez com minha irmã, quis procurá-lo. Disposto a arrebentar a cara dele e quebrar suas pernas compridas. Acontece que Marlos é infinitamente ausente. Como surrar um sujeito que parece não existir? Só às vezes ele aparece. Os encontros com minha irmã são no escritório do advogado dela. Mas o contato mensal se dá apenas pelo depósito da pensão estipulada pelo juiz da Vara de Família. O que me irrita é que minha irmã, mesmo após a separação, continuou um bom tempo apaixonada por Marlos. Depois tudo isso passou e eu desisti de moer a fuça asquerosa do idiota. Marlos está agora nos EUA “fazendo dinheiro”, informou-nos a mãe dele, bastante orgulhosa do filhinho troglodita. Parece que lá no exterior Marlos produz lutas de Vale-tudo. E assim faz dinheiro. Nesse Natal, diz minha irmã, ele virá. Saudade dos filhos, o motivo da vinda. Tomara que seja verdade, o que duvido. Marlos é um cretino. E cretinos não sentem saudade. Agora chega. Um idiota desses não merece que eu fale dele.
adoLevanto da cama com dificuldade. Pode ser que na noite anterior eu tenha abusado do vinho. Não, foi café. Exagerei no café. Por conta disso não consegui dormir antes das cinco da manhã, o coração palpitante. Não dou tanto ouvido aos palpites do coração. Agora são 11:07 da manhã de um sábado feito para anfíbios. Tiro o pijama. O frio me morde. Certo. Alcanço um livro qualquer. Vou até o banheiro. Na privada faço força e leio. Depois faço a barba. Depois tomo banho. Depois visto uma boa roupa, das novas que minha mamãe me obrigou comprar semana passada. Minha mãe e a mana, elas estão preocupadas comigo. Acham que têm que ficar de olho vivo, que precisam me dar atenção, temem que eu me meta em encrenca. Ao meio-dia, pontualmente, impecável, cheiroso, penteado, escondido atrás de óculos escuros, na frente do prédio que fica em frente a Praça Osório, espero por ela. Meio-dia em ponto. Antes que eu possa dar um oi para o compositor Gerson Bientinez, que engraxa os sapatos ali na Boca Maldita, ao meio-dia em ponto, ouço uma buzina. É ela. Aceno e vou. Ela me vê, ela vê que a vi e que estou indo, mesmo assim buzina mais duas ou seis vezes. Entro: Oi, oi, oi tio, oi. Rafa parece um homenzinho, como diz minha mãe, de calça jeans e sapatos, camisa e pulôver. Áurea está com um vestidinho assim-assado, os cabelos presos em chuquinhas. Minha irmã dirige com agressividade. Não dá pra ir mais devagar? Ela finge não escutar. Dane-se, penso, são os filhos dela. Brinco com as crianças, pode ser a última vez. Você é paranóico, ela diz um tempo depois de eu pedir que vá mais lentamente. Sou paranóico, eu sei. Sempre acho que as pessoas estão acelerando demais. Tive amigos queridos que morreram assim, esmagados feito moscas nas ferragens. Estou a 60 por hora, diz ela. Para mim já é muito. Faz um estrago e tanto. Mas que se dane. Então relaxo. Mentira. Finjo que relaxo. Brinco com as crianças, elas gostam de mim, o tio doidão. Falamos uma língua semelhante, por eles me infantilizo. Há pouco trânsito nas ruas. Apenas um grupo de maratonistas passa por nós atrapalhando a pressa da motorista. Que tesão, tio, todo mundo correndo junto! Olha a boca suja, Rafa, chama atenção a mãe. Mas, mãe, é do caralho de legal isso. Onde você aprendeu a ser tão malcriado?, peça desculpa ao seu tio por falar tanto palavrão. Não tem problema, ajudo o menino, eu também falo palavrão. Mas meus filhos não falam, e você devia me ajudar a educá-los, seu irresponsável. A chuva dá uma trégua. Quando vejo, estamos no shopping. Almoçamos no Mac Donald´s. O menu principal, batata frita. Depois patinamos na pista de gelo. Paranóico, acho que a lâmina do patim vai amputar a perna ou, no mínimo, um dedo de alguma criança. Depois nos divertimos no Hot Zone, naqueles fliperamas malucos. Enquanto isso minha irmã envia mensagens de texto, uma atrás da outra, sei lá para quem ou para onde. Para o além. Talvez para o Marlos nos EUA “fazendo dinheiro”. Digo: Você não desgruda dessa porcaria de celular. E ela: Ah, Júlio, tô tão sozinha... sabe quanto tempo faz que ninguém come a minha...? Não, não preciso saber, digo a interrompendo. Então ela chora, em sutis variações de tons e velocidades. Usa o pranto para descrever sua devastada infelicidade. Ela chora por segundos, depois o silêncio se instala. É um silêncio só concreto armado. Tenho vontade de martelá-lo.

2 comentários:

  1. presença, LuzFeLepreVOX!!!!

    http://www.oinstituto.org.br/enter/enter.html

    bjokas,

    n.

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  2. que bacana essa revista, nara. estamos bem indicados por lá. é bom ter amigos talentosos, eles sempre nos afagam, mesmo que longe. bjs. lepre.

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