Bordel Calcinha de Seda
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Para o ator Pascoal Vilaboim
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Fazia uma tarde de 31 graus, daquelas em que a cueca fica encharcada, quando ouvi ela dizer “Já cruzei o Brasil a bordo de um trem chamado Jontex” e dar uma gargalhada que fez com que todas as mesas do restaurante virassem para nos olhar. Parecia bastante animada, mas você notaria que sua mandíbula tinha a trava comum dos consumidores de anfetamina. Ela era uma das mulheres mais desejadas do País, famosa, diversos trabalhos no cinema, ex-modelo, mais de quarenta capas de revistas. Foi mais ou menos quando ela falou “Minha vida toda é um sem-querer” que notei seu estado, ela estava chapada às 11 da manhã naquele restaurante em Ipanema. Fora uma semana esquisita, algo novo e determinante chamava a atenção dos cidadãos cariocas em geral para sua pessoa, o acontecimento de vislumbrarem sua fotografia também nas páginas policiais. O motivo da publicidade inconveniente era o fato de que as pessoas que viviam ao seu redor, não de uma hora para outra, mas sistematicamente, tinham começado a tomar chá de sumiço, como ironicamente informava a nota na parte inferior da primeira página dos jornais. “Inacreditável”, foi o que balbuciei quando ela tirou um exemplar do JB de dentro da sacola com outras compras e me mostrou a manchete. Estampando a página policial via-se uma fotografia de típico flagrante feito por algum paparazzi. De qualquer maneira, meu aturdimento não pareceu espantá-la, e mesmo a fofoca toda em torno de seu nome de algum jeito estranho a alegrava. Fitou-me objetiva com aqueles olhos basalto-claros, e eu não consegui manter-me encarando com a mesma convicção com que ela fazia, já que naquele momento estava confirmando que os jornais não mentiam sobre o assunto. “Neno, eles estão certos, eu fiz mesmo essas coisas”, foi o que ela me disse. Eu não queria escutar, não me importava. Ela segurou minha mão e puxou para si pousando sobre os dedos seus beiços grossos como que me injetando um veneno. E fez as perguntas afirmativas que eu temia “Você sabe que eu te amo, né?” É, eu achava que sabia. “E você, Neno, me ama?” O que responder? O quê, se o garçom acabava de depositar sobre nossa mesa o filé que pedimos, a carne pouco passada, sangrenta, repetindo aquela piada estupidamente mecânica de “o boi veio que veio ainda berrando”, tudo com um sorriso desenhado como que à força nos lábios. Não fui capaz de tocar na comida. Não fui capaz de dizer a Fafá se a amava ou não. Aquela matéria, seu flagra nas esquinas do Leblon, a suspeita dela ser uma criminosa, aquelas perguntas, a piada do garçom, tudo me embrulhara o estômago. Ainda por cima foi preciso lembrar que apesar de Fafá ser uma das garotas mais cobiçadas do País, suas qualidades artísticas de fato eram vergonhosamente limitadas, constatação com a qual meu estômago intensificou naquele dia escaldante de verão, a propósito da minha ida ao banheiro, as golfadas do sucrilhos do meu desjejum, aproveitando que eu já estava mesmo com o rosto dentro da privada. Não queria que fosse eu, mas o sujeito igual a mim que lavava a boca na pia após vomitar até mesmo a fumaça dos sete cigarros que já havia ingerido até então. O cara do espelho e eu sabíamos, era notório, Fafá havia sido garota de programa anos atrás. E tendia ela mesma a não esconder de ninguém. A quem lhe perguntasse “Fafá, é verdade que você foi prostituta antes da fama?, ela responderia sorrindo “Quem não foi, meu bem?” Mas agora as coisas tinham mudado um pouco. Fafá havia se tornado uma colega do Paulo Coelho, sua vida estava exposta para quem quisesse, e todos pareciam querer, pois em menos de dois meses seu livro Bordel Calcinha de Seda – Confissões de Fafá era o mais popular dos que com ela dividiam as prateleiras de best-sellers. Fafá não estava somente famosa, mas milionária também. Eu tinha lido a obra ainda nos originais e, confesso, na época foi o que acelerou meu processo de paixão por ela. Não sei se todo homem, mas eu com certeza sonhava em tirar do baixo meretrício uma linda e indefesa garota. Conheci Fafá no Calcinha de Seda, o bordel, não no livro. O lugar era aconchegante, poltronas forradas com camurça, tapeçarias. A clientela era fiel. A dona, uma libanesa, fumava narguilé a noite toda. Havia começado o negócio com o esposo, já falecido e a filha, mais ninguém. O marido cuidava de administrar. A filha se desdobrava para agradar a todos (a filha não era Fafá, ela só apareceu por lá uns sete anos depois). E a libanesa fazia a faxina e as compras. Quando a casa lotava demais, a libanesa também fazia um programa ou outro. O Calcinha então se transformou em um sofisticado lupanar. Fafá trabalhou lá nos tempos áureos. Ela nasceu em 1977 em uma fazenda de gado, perto de Guarapuava. Quando fez 16 anos fugiu do pai bondoso e da mãe quase santa vítima de glaucoma, sem jamais ter voltado para rever o lugar de sua infância, tampouco a família, que permaneceu atolada naquele ambiente arcaico. Perambulou de cidade em cidade até chegar em Curitiba. A sua primeira vez foi em um banheiro de posto, na estrada, no qual o dono, após os serviços, lhe serviu um prato feito. Só conseguiu conforto e segurança após sete meses de incertezas e sufocos, quando de sua chegada ao Calcinha de Seda. Na noite em que a conheci estava especialmente feliz. Depois nunca mais encontrei aquela alegria dentro dela, nem mesmo quando a sorte lhe bateu à porta. Lembro que logo foi tirando o vestidinho de pano com estampas floridas. Sentou-se na cama, contorceu os braços para trás, alcançou as costas e desabotoou o sutiã. Hipnotizava-me sua desenvoltura, havia um certo descaso em suas ações. Era uma paisagem a escultura de seu corpo. Eu suava, as axilas empapadas, o verão se espatifava na janela. Fazia o calor dos infernos, de maneira que cheguei a pensar se aquela garota não tinha vindo exatamente desse lugar. “É um anjo”, refleti na ocasião. “Vai ficar aí parado igual um sapo?”, indagou-me. Ordenou que eu tirasse as roupas. “Que coincidência”, eu disse, “a minha camisa também é florida”. Ela achou graça do modo como a arranquei por cima da cabeça sem que abrisse um botão sequer. Desfiz-me dos panos, mas continuei, segundo ela, “Paradão-sabão”, até que resolveu vir me beijar. Eu ainda de cueca e com as minhas velhas meias azuis. Ofereceu-me os peitos. Pegou-me pelos pulsos. Abri os dedos. Senti o peso nas mãos. Ela me puxou para cima, abriu as pernas e, executando um movimento perfeito, técnico, científico, me engoliu. Ela e aquelas maluquices que fazia, e suas ideias com foco bastante específico sobre as coisas. Por exemplo, a respeito da vida de puta que levou, dizia “Puteiro é uma coisa muito boa, se você não vende a mercadoria, pode comer o estoque”. Eu achava engraçado. Com ela participei de indescritíveis banquetes, isso já depois de Fafá ter alcançado o estrelato. Chamava-me para as orgias com outras garotas e sussurrava “Você é o bendito fruto”. Por ser o bendito fruto fui ficando famoso também. Eu era o sujeito que conhecia as intimidades daquela beldade cobiçada. Aliás, eu era apenas um dos caras, mas a minha assessoria de imprensa funcionou melhor que a dos outros. Então todos entendiam, e mesmo Fafá, que eu era o namorado oficial, o “fodedor” oficial. Os jornais, revistas e programas de tv sensacionalistas fizeram uma lista dos homens que saíram com Fafá e nos chamaram de “fodedores”. Ficamos mais ou menos sendo manchete de duas ou três edições das revistas. Aparecíamos em programas de televisão quase que diariamente. Fafá cada vez com menos pudores. Dava declarações bombásticas, o que ela contava, Sade não havia contado na Filosofia na Alcova. Tínhamos ido longe demais em nossas escavações sexuais. E ido longe demais com a repercussão disso. Intimamente Fafá já não suportava a situação, mas a coisa havia se transformado em uma bola de neve. Não sei dizer exatamente quando, mas comecei a estranhá-la. Certo dia encontrei um revólver sobre a pia do banheiro. Aquilo não devia ser apenas mais uma de suas propostas sadomasoquistas. De fato não era. A observei com cautela, segui seus passos. Presenciei Fafá liquidar um por um os seus “fodedores”. Fez tudo com frieza. Depois sofria por minutos. Então se tornava gelada novamente. Eu não a ajudava, assistia de longe. Desconfio que ela soubesse que eu a seguia. Eu devia me preocupar, chegaria a minha vez. Mas a tranquilidade se aconchegou em meu sangue, e optei por não fugir. Estava deitado, então, na cama de sua cobertura na Barra da Tijuca. Somente a lua cheia lá fora a iluminar sua silhueta. Fafá se aproximou, eu não me mexi. Ela descarregou em minha direção pá pá pá pá quatro tiros secos, ritmados. Não sei explicar como, mas nenhum dos tiros me acertou. O colchão de água vazou. O travesseiro cuspiu penas de ganso. Eu permaneci ileso. Atônita, Fafá largou a arma, aliás, como sempre acontecia logo que eliminava cada um dos seus amantes. Levantei e a abracei. Ela chorou suplicando que não a abandonasse. Eu não abandonei. Fugimos para Cuba. Fizemos adulteração facial. Fafá ficou a cara da Anjelina Jolie, juro. Eu, com traços que lembram o Hunter Thompson, mas com cabelo. A polícia brasileira continua a nos caçar com obstinação. Hoje ganhamos a vida fazendo shows de sexo explícito. Somos um sucesso.
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