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(Um bolo de aniversário. Uma vela de três anos fincada no bolo. Três chapéus em cone, coloridos com motivos de super-heróis, daqueles típicos chapéus de festinhas de crianças. E línguas de sogra. Lembrancinhas. Três pratinhos de plástico com talheres de plástico. E guardanapos também coloridos)
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Eu posso escutar. Eu acho que consigo. Eu queria, pelo menos, conseguir. De conforto, escutar palavras assim, que me abrandassem. Mas palavras são só palavras, não abrandam nada, não confortam ninguém. E é por esse motivo, o de não ser confortada nem abrandada, que posso escutá-lo, ele com suas palavras. E ele nem sabia falar naquela época, ele não sabia o que era a vida naquela época, agora também não sabe, mas sabe falar, uma língua muito primária, mas ainda assim uma língua. Ele sabe falar, pelo menos é o que desejo, que no mínimo ele saiba falar. Porque aqui, no meu pensamento, ele vem falar comigo. Ele, que nunca está aqui, justo por não estar, vem falar comigo. Por não estar aqui é que sua presença é a presença dele mesmo não estando aqui. No céu, dizem-me, ele está bem. O céu, o céu, o céu. Não sei mais olhar o céu. Fui traída pelo céu. Se existe uma força maior não é de lá que ela vem, senão teria sido diferente. A minha vida seria outra, e melhor. De tudo o que fala a Bíblia, que por anos a fio eu li, só tenho conhecimento fidedigno do inferno, e ele é muito dos homens. O inferno é muito aqui. Três anos já, e nada. Três anos de reza e nenhuma redenção. Ele vai te ajudar a perdoar e perdoar a si, dizem-me. E eu não direi nunca mais essa palavra traidora da qual o musgo da mentira ganha ultrajantes proporções. A culpa não foi tua, Karima, diz-me o ex-marido. De quem então, senão daquela que choca a fragilidade e permite que a fragilidade venha para esse mundo sujo de crueldades e injustiças? Há três anos eu imploro para que os bebês humanos nasçam ferozes como os filhotes dos bichos mais selvagens. Olho nesse instante para fora e, como naquele dia, o fim da tarde tem essa neblina violeta, pegajosa. Volto dois anos atrás, lá, eu tenho que lembrar, não quero esquecer, todo amaldiçoado dia eu vou lembrar, lá foi quando eu olho pela janela e o redor da maternidade é escuro, com um bosque próximo, um bosque de espessa vegetação intransponível. O lugar onde a vida humana surge para mim, apresenta-se como que uma anárquica prisão sem Deus. Jonas, Jonas, Jonas, três vezes três, três vezes trezentas vezes Jonas, a cada minuto penso ou pronuncio esse nome, como fosse um mantra. Jonas, Jonas, Jonas, o que de mais importante e inesquecível aconteceu na minha jovem estória feminina. Ele nasceu do mais sincero e apaziguado amor, de um sexo íntimo e limpo, porque lavado por nossas entranhas encharcadas de alegria. Nove meses Jonas, e nove meses é pouco, nove meses é nada perto do que significa a gestação de hora a hora de uma ausência robusta, empapuçada de entorpecentes afetivos. Nove meses, mas eu gestava com prazer meu serzinho durante um ano inteiro feito as éguas, eu gestava o tempo que fosse necessário para evitar por completo a tragédia que significa estarmos vivos e ele não. A dor. A dor do parto, que alegria a dor do parto, melhor, mil vezes preferível a dor do parto do que essa anestesia sob o efeito da qual vivo agora, em que nada dói e, porque nada dói, posso constatar que nada tenho. Não é mais uma dor física, é uma dor dividia em duas: dor de lembrança e dor de esperança. Mas esperança é ver um recém-nascido na estufa da maternidade, é sentir uma peninha de vê-lo choramingar, e compreender que esse é o trauma de iniciação, quando o bebê troca a água pelo ar, o calor pelo frio. Antes não, mas hoje odeio, com o ódio dos soterrados odeio todas as tesouras do mundo destinadas a esse fim: o de romper cordões umbilicais. Quem soube o que é amamentar, e eu não soube; ensinar e aprender, e eu não pude aprender; alimentar, educar, brincar, mas eu não; eu nada; a quem essa graça natural foi concedida, essa nunca mais saberá o que é paz, justamente porque está já dentro da paz. De mim a paz foi roubada, mas não o amor. E mesmo assim odeio a cama em que dormi na maternidade. Odeio meu ex-marido. Odeio a mulher vestida de enfermeira, sequer Deus sabe quanto odeio essa mulher que fugiu com meu filho no colo. Me odeio por não tê-la detido, por não tê-los alcançado, por ter berrado quando era tarde demais. Foi assim: no que eu acabei de dar a luz, meu filho recebeu a escuridão de viver sem a mãe natural. E mesmo agora, negando o céu, odiando a mim e o mundo, suplico que esteja nalgum lugar qualquer do mundo, meu filho Jonas, feliz ou infeliz, rico ou pobre, mas que esteja vivo e saudável. Longe de mim, mas vivo. Hoje ele faz três anos de idade. Cantar para ele é o máximo que posso.
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(Veste um chapeuzinho. Acende a vela. Canta o Parabéns para você. Assopra a vela. Trevas)
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