terça-feira, 28 de setembro de 2010

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Neve de 75

tantos anos já
a Neve de 75
em Curitiba caiu

após essa
nunca mais

e se vive à espera
de renovado
branco gélido
despencar dos céus

e a Neve de 75
é só o que se tem

mas os demais dias
que seguiram
desse, digamos
alpino (ou norte-americano
natalino, ou de inverno londrino)?

por que não foram
consideradas
as noites outonais
as chuvas de verão
por exemplo, a brisa
balançando
o amarelo dos ipês?

(não houve
o que na História
já não há)

serão causas
a vocação
para melancolia, sim
o gosto pelo
masoquismo do
recolhimento?

ah a Neve de 75

entretanto, que bela
manhã de primavera
hoje
está fazendo

terça-feira, 14 de setembro de 2010

cartas aos amigos

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.....Ei, Sarah Kane, sei que tua relação com o mundo não é leve, nem doce. Pelo contrário, tuas peças são alguns dos buracos mais amargos onde já me meti. Eu sei, ninguém precisa entrar lá se não quiser. Você jamais obrigaria que o fizessem. Mas comigo é diferente, eu preciso. E suspeito que isso não vai ter fim. Claro que todo mundo sofre um pouco (ou muito). Vem da doença de ser humano. Ou da maravilha (vai saber). Estou aqui escrevendo e hoje minha mão não dói tanto, acho que porque está um pouco mais calor. Mesmo assim ainda continuo intoxicado de frio, pensando a cada frase que escrever é um modo de não se saber absolutamente nada sobre a existência humana. Viver estupidamente, escrever bestialmente, deixar-se amaldiçoar, depois virar matéria de análise? Não pode ser tão simples. O que me diz? Ah, esquece. Eu não queria ser esse cara que resmunga e só depois morde. Enquanto tenho caninos devia arrancar pedaços logo de cara, você não acha? Lembra aquela noite em Londres, a gente saindo de uma peça pessimista pra caralho do Bernard Shaw? Eu exultava com a tese desenvolvida por ele, até que você disse: A gente pode achar que o mundo é mal, mas pense nas pessoas que você conhece, a maioria delas são pessoas más, ou boas? E essa tua frase me aniquilou de bondade. E foi bem esquisito ter ouvido algo tão meigo vindo da autora de Blasted, entende? E nem acho que isso tenha sido um conselho, pois logo a madrugada começou a soprar Desolation Row na copa das árvores afugentando morcegos. Então fico aqui me convencendo que foi só uma observação casual de uma menina muito esperta. E isso deveria bastar, mas o problema é que algo está sempre se desfazendo, evaporando. Então a gente entrou naquele pub e você ficou ensimesmada, tendo sei lá que iluminações enquanto dava bicadinhas na cerveja. Você tinha voltado pra esse lugar só teu, impenetrável, que meninas apenas espertas jamais suportariam. E você devia gostar, claro, de algum modo você gostava, porque vivia lá dentro aguentando mais do que qualquer pessoa (a menos que eu pensasse em Artaud, Van Gogh, Nijinsky, Lautréamont, et caterva), indo sempre até o osso do delírio, da abstração, ao ponto de vê-la se transmutar, voltando a ser palpável, mas de uma carne que é labareda.