terça-feira, 14 de junho de 2011

.....Hoje moro em cima da famosa e loquaz Boca Maldita. A Boca Maldita é uma espécie de clube da terceira idade. Clube, mas sem mensalidade e carteirinha, pois fica na calçada, na Rua XV, em frente ao prédio onde moro. Talvez seja ainda algo como um Senado, um Senadinho em que os frequentadores, músicos, comerciantes, juristas, políticos, jornalistas, em sua maioria aposentados, discutem política, futebol, sexo, contam piada e, até, fazem negócios. No meu apartamento, jornais, revistas e livros comprados em sebos dividem espaço com latas de suco e embalagens de comida pretensamente saudável. Faço alguns planos e de vez em quando dou umas voltas no Parque Barigüi. Noutras ocasiões, me perco na neblina de dentro dos próprios bolsos feito um chaveirinho separado da chave de casa. Tem vezes em que dou aulas particulares de geografia e história para adolescentes da sétima e oitava séries. Nos fins de semana peço pizza cortada em oito. Vivo na nave do sofá vermelho, ora dentro da novela pilotando a televisão, ora roncando baixo enquanto meus ouvidos se contorcem com uma canção fudidamente triste cantada por Nina Simone. Lá fora, buzinas e mais buzinas para que eu não esqueça onde estou. Janto sozinho. Posso lavar a louça agora ou mais tarde. Depois me dedicar a compreender de que maneira amanhã vou me reinventar. Praticamente não tenho e-mails para responder, telefonemas a atender. Tenho de ir ao banco para as contas de água, luz, gás. Farei isso amanhã antes do almoço. A cidade inteira vai estar lá pagando, depositando, sacando. Depois devo ir ao vegetariano (tenho evitado carne vermelha) comer repolho com molho branco. Tudo o que tenho para hoje à noite são dentes para escovar. Minha escova não é das mais macias, já me acostumei. Tenho que cuidar desse corpo que me presenteia com pequenas dores diárias. É verdade que já não posso estufar o peito, levantar a cabeça. Talvez nem mais seja preciso espelhos que me digam que há alguém a quem devo pedir desculpas. Você. Adoro as madrugadas, quando os gatos miam alto nos becos e ninguém presta atenção. Moro no oitavo andar do Edifício Tijucas, no miolo da cidade. E meu problema é que vivo mexendo num vespeiro repleto de insetos sentimentais, com ferrões que injetam o veneno da saudade. Olho uma foto minha no porta-retrato, tenho três anos de idade. Bermudinha preta. Coxas grossas. Joelhos intactos, engruvinhados. Meias brancas. Sapatos brancos tipo botinha ortopética. Camiseta azul escura por baixo do casaquinho de fio azul claro. Na mão esquerda, esparadrapo num dos dedos. Sou loiro, penteado para o lado direito. Olhos verdes. A boca num ângulo levemente emburrada. Narizinho assim. Rosto redondo. Bochechas avermelhadas, dá vontade de esmagar, diria minha vó. Estou no pátio de uma casa. Não dá para saber se é a nossa casa, a casa da infância. O chão se constitui de azulejos quebrados, colocados não como mosaico, mas aleatoriamente, ainda assim respeitando os encaixes. Atrás de mim há uma trepadeira verde escura, que importuna 90% da parede branca. E é só o que consigo ver, a mim na fotografia. Fragmento de paisagem maior e mais complexa. O que está fora do quadro gostaria de esquecer para sempre. Mas lembro bem que no meu aniversário de nove anos ganhei uma caixa de ferramentas. E aos poucos a fui equipando. Era um investimento à médio prazo. Tanto Tatá quanto Tati também ganharam as suas e rapidamente aprenderam a diferenciar os tipos de madeira. Aprenderam como protegê-las para que não estragassem. Quais produtos usar e como usar. Qual a melhor tinta a ser utilizada para a preparação das madeiras, as técnicas para se fazer decapê. Quando uma vez a tábua da cozinha onde eram amassados os pães quebrou, Tatá de um dia para o outro confeccionou uma nova, de qualidade superior a que havia estragado, que era obra de meu pai. Ali estava revelado o talento do meu primo. Diferentemente de Tati, Tadeu vivia se vangloriando por saber confeccionar banquinhos, criados-mudos, armários com perfeição. Não tardou até que fizesse a pátina melhor que o próprio vô Breno. Sabia usar como ninguém os berbequins. Aplicar os moldes para fazer perfurações. Era bom em laminação, compensados. Um talento nato. Como é que você consegue, Tatá?, eu perguntava. A madeira, apesar de sólida, Jassei, é de fácil manejo, é elástica, porque está viva, repetia os ensinamentos do vô Breno. Como marceneiro a única coisa que consegui fabricar foi um violino cuja acústica nunca se viu pior, com uma curva no fundo completamente tosca. E ali morreram minhas ilusões em relação a uma possível carreira musical, pois não era só o violino que era ruim, o violinista tampouco servia. Desacreditado da música ainda tentei mais um pouco investir na marcenaria, mas com a morte de Tati minha incompetência e consequente desinteresse só fez crescer. Sempre odiei as serras. Elas não tem como considerar se a madeira contém nós, partes falhas, áreas macias e outras mais duras. As irregularidades dos anéis de crescimento do tronco de uma árvore podem resultar em forças de desequilíbrio quando a prancha é serrada, fazendo com que ela tencione para dentro e para fora. Chovia naquela manhã de junho. Eu gostaria de falar mais detalhadamente sobre a tradição de marceneiros criada dentro da família Brennelli. Mas não posso, pois sou o responsável pela quebra de tal tradição. Sou o que não sabe absolutamente nada do ofício. E mais do que não saber, passei anos odiando a marcenaria com todas minhas forças, pois ela levou Tati de nós. Ele era o que sequer usava luvas para segurar espinhos. Tudo que sei sobre marcenaria é que a madeira também sangra. Sangra a madeira cerrada, lixada, empilhada. Naquela manhã Tati inventou de adiantar um serviço para meu pai, chegou antes que o restante do pessoal. Ligou a serra elétrica que, feito uma loba faminta, mastigou seu corpo. Não sei como aconteceu. Ninguém jamais saberá. A assassina serra circular cortou o braço. E entrou pelas costelas, chegando ao abdômen dele. Rompeu a alça intestinal. Atingiu o pâncreas. A dor e a hemorragia mataram Tati em minutos, nada pode ser feito. Por que você foi fazer uma bobagem dessas? O menino que nunca teve luvas nem armadura, agora retirava do próprio intestino oceanos marrons. A face trancada na respiração da dor, aguentou ainda por algum tempo, até desabar exangue. Vejo ainda seu corpo destroçado sendo carregado para a caminhonete, com seu velho pulôver azul, feito por vó Bia, não mais identificável, com urgência de hospital, porém, já morto. Tatá logo virou o braço direito e depois passou a dirigir a fabriqueta de móveis Brennelli, o que, na verdade, foi acontecendo da maneira o mais natural possível. Quando chegou a época do vestibular, fui ser jornalista. Ainda sou. Embora, cada vez mais preguiçoso. E que, no momento, após praticamente a redação inteira ter sido mandada embora, tem se virado como assessor de imprensa freelancer. Bom, mas me formei e depois quis fazer especialização. O jornalismo trabalha com a realidade de um modo que não me parece justo, dada sua insuficiência. Já que o registro de um fato é apenas uma das visões possíveis desse fato, então o jornalismo também produz peças ficcionais de algum modo. E se um jornalista começar a pensar assim ele será seduzido pela ficção e aí, quem sabe, se tornará antiético, porque um jornalista não pode escrever inventando, ele tem que acreditar piamente que aquilo que está escrevendo é o retrato fiel do ocorrido, ou então não será imparcial. Era um pensamento que me ocorria com frequência durante o período em que estive no curso. O duro é ficarem colocando goela a baixo regrinhas como cabeça, gravata, em perguntinhas como o quê, quando, onde, etc. O jornalismo para mim era inviável. A não ser que eu fosse uma espécie de Hunter Thompson, ou um Hemingway. Ficaram daquela época algumas aulas de filosofia, uma introdução à semiótica, o carinho por um ou outro professor, amizades que nasciam e acabavam em bares ao redor da faculdade. Mesmo morando no centro, não me transformei num urbanóide. Embora hoje tudo seja concreto e plástico, ainda sei ler a lição da terra no apodrecimento de um fruto ignorado na fruteira. Sei quão lógica é a natureza que amolece o coração da terra para fazê-la condutora da fertilidade. As correntezas dos mares qualquer marinheiro conhece. As correntezas da terra são tão complexas quanto, mesmo contendo menos movimentos. Respeito a terra, sei se tratar de nossa cama mais macia. A terra é o oxigênio das flores.

sexta-feira, 10 de junho de 2011

.....Você não sabe mentir por muito tempo. Então o que você está fazendo agora? A falsidade é a mais perfeita denúncia. Banhos de fogo lavam mais do que água, mas o preço que se paga é muito alto. Vez ou outra queimamos as solas dos pés vasculhando bibliotecas de navios afundados, furamos as palmas das mãos com espetos, vazamos os olhos em tragédias gregas exemplares. Sempre que alguém está prestes a desesperar chora baixo, tranca-se num cubículo qualquer. E o dia lá fora não é exatamente um bibelô azulado e limpo que até parece de mentira. A nudez que encontro em mim corre feito um o rio e a cada dia me sinto mais feio a apodrecer. Então sons de alaúdes soarão em excessos de balbúrdia, que são o meio possível para contribuir com esquecimentos momentâneos. De resto, só as contrações inexprimíveis. E é isso o que você conhece porque é isso que existe. E é isso que existe porque é isso que você inventa. Uma nudez que vem por baixo da nudez. Os olhos abertos feito lanternas que procuram alguém perdido na escuridão, o céu lá fora. E esse alguém é você mesmo com olhos que também são lanternas a procura de alguém perdido na escuridão. Tudo como um apelo. No apartamento, livros e vídeos de histórias. Quem sabe nada disso seja possível ou verdadeiro, ou até mesmo plausível de ser cogitado. Você reconhece os silêncios cujos meandros não são perscrutáveis, eles desejam sair ilesos dali, mas se convenceram que a tua tartamudez é um privilégio porque podem bebê-la nessa tarde cinzenta do mês de julho. E é claro que há o risco de cães latirem no lado de fora. Me dá um só dedo de maldade e lavo as mãos. Sobreviver talvez não seja o mesmo que permanecer humano. Me dá um só dedo de maldade e... Não, isso não. Esquece. Não sou um canalha. Nem a porcaria de um robô. Que confusão dos diabos. Recebo um telefonema da tia Ruth. É esse quase estóico cidadão em quem você se transformou, o que entra em pânico ao ouvir o telefone soar. Você é justamente este, o que jamais será feliz. E você, o tolo, até poderia perguntar a cada um: o que é terrível, amigos? Para você? Você? E você? A resposta chegaria em uníssono: a treva tentando entrar  por baixo das cobertas, criaturas bestiais do desejo a se proliferarem nas gavetas, lágrimas que rasgam as faces feito hélices de helicópteros, etc. Eis um rascunho do medo. O que é terrível? Só o que é terrível. Daí que você pode entender que tudo o que não for péssimo, desastroso, nauseabundo, será apenas o mundo se abrindo em bondade sem que sejamos capazes de descrevê-la em especulações sobre o amor simples, ou até mesmo nos darmos conta. E, afinal, talvez o bem jamais venha dos que se fecham em seus frágeis casulos. O que dizer dos que são eles seus próprios bunkers? É claro que a felicidade, esse último capítulo das sessões da tarde, é uma balela. Mesmo assim, apesar do clichê, é imperativo a todo momento nos perguntarmos se estamos ou não alegres e não esperar resposta alguma. E, analisando de longe, seguros (seguros?) em casa, termos a sensação que sem umas gotas de ódio ninguém teria conseguido. Recebo um telefone dessa minha tia: Jassei, há alguém interessado na chácara, um comprador em potencial, e eu estou cansada, aquilo virou um elefante branco, eu não tenho mais idade para me incomodar, Tadeu está na Europa, preciso que você cuide do assunto. Cuide do assunto? É com você que ela conta, com o que se decepciona consigo e vive patinando. Agora mesmo dá para ver seu rosto se retorcendo como se tivesse mascado limão. Tia Ruth fala rápido e alto ao telefone e eu não consigo entender, eu ainda nem acordei direito. Assim que faz uma pausa, pergunto: e Mana? O quadro dela é estável, Jassei, não podemos fazer nada, só esperar. E, como que liquidando o assunto Mana, ela volta imediatamente ao assunto chácara, como se fosse possível separar um do outro. Então você pensa em qualquer personagem da literatura com a qual tenha absolutamente se identificado. Eis, monstrinhos semióticos. Jamais serão felizes. Você os vê sussurrar entre lábios enquanto na sala do apartamento soa alguma balada do Nick Drake, pairando como morcego ferido sobre o tapete rubro. A chácara é um dos últimos bens restantes do espólio de nossa família. Por isso que, após a esbaforida intimação de minha tia, se antes de devolver o fone ao gancho tivesse caído no erro de não dizer enfaticamente um “sim, senhora, providenciarei tudo, pode ficar tranquila”, ela teria ficado uma fera comigo. O telefonema me angustiou. Cutucou com vara curta uma série de fantasmas. E agora já sou meu pai, a maneira abrupta com que minhas mãos acabam de abrir a porta fazendo o trinco sofrer, e o tambor dos passos dentro dos meus calcanhares a entrar nos azulejos da cozinha. E sou minha mãe, a música de uma voz violeta, os alarmes que há em mim, a cantiga de água que meu corpo embala. Agora meu primo, o modo e horário em que me sirvo no filtro, antes do primeiro gole, as tossidinhas, e o copo d´água escorregando da minha mão. E o outro primo, o mais novo, se dissimulo um acordar cantado por sonhos clarividentes. E então me sei nosso cão, perpetuando uma presença na casa com cheiros fortes e ganidos contínuos para lua. Então, sou meu avô chegado dos aperitivos pelo bairro aos sábados por volta de meio dia, o vozeirão, o jeitão de galã do interior com muitos braços e conselhos. E minha avó, se compreendo esse silêncio alargado no ar, ela chegada como se aqui não estivesse, tão digna na dor, tão adornada com flores, risos, brincos e colares. E sei que sou meus sobrinhos, pois só estou nascendo agora, amanhã, amanhã, amanhã. Vou acontecendo o que ontem me aconteceram, seres de meus outros aniversários, biologia, galerias do meu peito, meus múltiplos corações trovejando. A conversa com minha tia não foi amigável o quanto deveria entre um sobrinho e sua tia, talvez pelo fato de que em algum momento, sem esconder o tom de decepção, acabei perguntando: então vai ser assim, tia, vamos simplesmente vender o que restou da chácara? A chácara, a casa da minha infância. Abacate, mimosa, mamão e outras luas apodrecendo na fruteira. Damasco e castanhas nos potes pintados à mão por minha avó, senhorinha sem pressas. Na casa da minha mãe lavava a louça ela mesma e os pratos assobiavam junto com suas unhas que faziam isso por gratidão de anfitriãs, não por responsabilidade de funcionária. Minha mãe, tia Ruth e Elza não saiam da cozinha. Faziam o almoço de sábado sem nunca antes terem tido dores nas pernas. Eram as galinhadas caipiras, as macarronadas. Ou não havia final de semana, durante o verão, que minha mãe não reclamasse do cheiro dos peixes. Passava a manhã os preparando. Assistir a volúpia com que devorávamos as bandejas, reiterava a indisposição para alguns pratos. Mas no dia seguinte voltava à cozinha conviver travessas e panelas, ervas, molhos, pia, fogão à lenha. Minha mãe dava banho na gente com mãos de água que envelheciam 30 anos e depois não voltavam totalmente ao normal. Um de nós tossia e o termômetro era todo ele a casa da minha mãe. Esperávamos a Páscoa porque ninguém tinha desistido ainda, enquanto era tempo. Elza molhava as plantas cantarolando “cheguei na beira do porto / onde as ondas se espáia / a tua saudade corta / feito aço de naváia”. E tia Ruth vestia camisola, roupão de flanela e calçava pantufas. Uma ambulância passava ao longe, abafada pela chuva. Tomávamos chá, um antídoto contra a gripe. Sim, estou tentando, mas sou incapaz de confiscar as lembranças. Elas chegam. Vou pegá-las, fogem. Sei que conferíamos portas e janelas. E se a noite continha musgos, os olhos cansados da minha mãe também. É claro, Jassei, que vamos simplesmente vender a propriedade, ou, por acaso, você vai ficar com ela?, me disse há pouco ao telefone ti Ruth, que tanto me odeia. Ficar com ela? Coitado de mim, um pobretão, quase não tenho dinheiro suficiente para pagar o aluguel e me alimentar ao mesmo tempo, há meses que preciso escolher se como ou se continuo morando no meu quarto-e-sala precário. Ao menos se Tadeu, o rico da família, comprasse a propriedade, mas não pode sequer ouvir falar daquele, como ele mesmo chama, elefante branco.  A velha chácara não interessa aos seus projetos. Lastimável no que ele acabou se transformando. Muito diferente de mim e meu pai no centro. Numa manhã de sábado. Ele me levando pela mão. Vamos entrar aqui, comprar um sapato para você. Compramos. Meu primeiro par, de couro – canoa em dia de chuva na Rua XV. Eu tinha oito/nove anos. Boca Maldita. O prefeito discursava idiossincrasias em um palanque improvisado. Homens públicos nunca serviram de bóia salva-vida. Meu pai conhecia o engraxate. Ele esfregava com ritmo o escuro dos próximos passos que eu daria vida afora. Chuva. Pano. Sapatos. A cadeira do engraxate era ilha no mar de transeuntes e ambulantes. Meu pai pagou. Levou-me. Paramos para um frapê na Confeitaria das Famílias. Com a imagem como que tive um alumbramento, sem pestanejar, observei um homem gordo que na mesa em frente olhava para um objeto de papel. Olhei os pés do homem, sapatos pretos, brilhantes. Um leitor?, perguntei a meu pai, que assentiu. Igual o vô Breno, completei. Saímos dali. Guarda-chuva aberto. A graxa preta nos meus pés exalava o sabor das longas distâncias. Voltamos para casa em Santa Felicidade pisando paralelepípedos encharcados. O que é raro, bem sei, atua com as mãos. Incrível, só não é ilusão a página trágica na qual o tempo nos rabisca. Raspa a neblina, traça rotas. Desenha feito aranhas que infestam com teias porões que não se querem esquecidos. O tempo, sim, sua ferocidade vem à jato. Inspiro fundo antes que me faltem escolhas. Posso até ter pressa, mas sei que não me ultrapassarei. Em certa altura a vida congestiona feito um nariz constipado, isso é que é. Os próprios familiares já disseram de mim: este é o que atravanca. Bem, cada um com sua fama. Devo ser o quê? Um colecionador de fragilidades naufragadas. Mesmo com sapatos bem engraxados? Agora, no lugar das mãos, também tenho pés. E com esses pés, de quatro, caminho pisando os olhos da terra, sugando seu sabor. E aqui, nesta terra, estão minhas tias, a avó na horta. Meus primos em meus olhos impregnados de um tempo que nem mais sei se radiante ou não. Pisco, esfrego o rosto como quando se acorda de um enterro, os olhos ardem. Nos salões da cabeça meu mundo particular pesa. Preciso espremê-lo como a uma esponja com água de anos retida. O coração é um vaso rústico arrebentado pelas raízes que não se contentaram com o espaço restrito.

quinta-feira, 9 de junho de 2011

.....Saíamos com ele pela manhã para ver amigos, ou ir a algum mecânico, ou ainda buscar alguma encomenda. Dava mais ou menos onze horas e a gente se dirigia à barbearia. Meu pai dizia: pode cortar bem baixinho. Entro. Dou bom dia. Seu Paulo não me reconhece. Fazia anos que não pisava ali. Sento. Ele joga o guarda-pó sobre mim. O que vai ser? Pode passar a máquina quatro, e a zero na barba. Terminaria o serviço em casa com a gilete. Seu Paulo insiste que será melhor passar a gilete ele mesmo, que já está com a mão na massa. Assinto. Ele enche meu rosto de espuma e começa a raspagem, enquanto conversamos. Ele se lembra do meu pai. Pergunta sobre ele, se está bem. Digo que meu pai já morreu. Ele lamenta. Seguimos conversando amenidades. Ao final me dá um desconto. Entro num ônibus e volto para o centro. Cabeça e barba raspadas. Sinto-me nu. Chego em casa. Respiro. Minhas pernas formigam, doem. O coração, um pouco acelerado. Bocejo sem parar, uma, duas, sete vezes. Meus olhos não admitem mais permanecer nessa dimensão. Não durmo há quase 42 horas. Vou me entregar. Não tenho escolha. Entro no banheiro e ligo o chuveiro. Tomo um banho demorado. Me visto com minha melhor roupa. O que você pensaria disso, Tadeu. E saio para almoçar. Mas é já fim de tarde na Boca Maldita. Então eu lembro, já almocei. Tinha decidido visitar Mana à tarde. Mais uma vez adiei. A última vez em que a vi foi quando sofreu o acidente. Lembro: intermináveis vinte minutos de espera. Não eram nada se comparados aos sete meses da sua permanência ali. Vinte minutos, e fui chamado. Colocaram-me um crachá e me conduziram pelos corredores com paredes de cor magenta. Esperei um tempo mais, diante de uma porta fechada, até que ela se abriu. Você estava fria, branca como uma paisagem coberta pela geada. Os curativos em seu rosto, que jamais voltaria a ser o mesmo. Na treva do quarto, desenhada por feixes de luz com partículas de poeira no ar, você levantou da poltrona e veio até mim. Por causa do excesso de medicação, você veio dando curtas braçadas no ar, debatendo-se, procurando talvez o modo como começar um abraço há muito não praticado. Sonâmbula, como se recortada pela iluminação da veneziana semicerrada dançasse sobre os seus outros eus, sobre aquela que um dia conheci e agora parecia morta de tão triste. Seu corpo me encontrou. E a força e forma, necessárias para o equilíbrio de quem se cola no outro, estavam em nós, depois de agoniados vinte minutos de espera. Que saudade, você disse e tossiu. Sabe, o cheiro de uma pessoa pode ser um desespero. O toque de uma pessoa pode ser um desespero. Até o desespero de uma pessoa pode ser. Que saudade, eu repeti. Por baixo dos odores de remédio, meu nariz que em outros tempos percorrera mesmo o seu avesso, reconheceu o cheiro, o sabonete, que era o mesmo. Ao me afastar um pouco pude estudar suas feições. Os cabelos curtos e secos como fossem trigais que há muito não bebiam chuvas e sol. Seus olhos, janelas com espelhos azuis que não permitiam ver o lado de dentro. E foi ali naquele quarto de hospital que você me contou. Apesar de ter sido difícil conversar com você, pois não havia palavra que não viesse fragilizada pela sua condição física. E, à minha revelia, você me obrigou escutar: Tatá tinha 18 anos recém feitos. Eu, 16. Era sábado. Você não estava em casa, Jassei. Se estivesse, provavelmente eu não teria ido. Tatá conseguiu que Seu Lírio emprestasse o carro. Fomos dar uma volta. Conversando, dando risada chegamos no centro. Final de tarde. Era verão. Eu estava vestindo camiseta regata e uma bermuda curta. Faltavam dois dias para o Natal. A Rua XV cheia. Os garçons trazendo chopes. As lojas anunciando promoções. Circulamos um pouco por ali. Subimos até a floricultura na praça ......................... Tatá me presenteou com um botão de rosa amarelo. Agradeci com um beijo na bochecha. Você merece muito mais, ele disse e me beijou na boca. Retribui. Então nos abraçamos. Ele estava tão cheiroso. Uma brisa geladinha começou a soprar. Meus braços e pernas se arrepiaram. Ele me enlaçou. Voltamos para o carro. Ele sugeriu que voltássemos para Santa Felicidade pela Rodovia do Café. É um caminho mais longo, eu disse. Assim a gente pode ficar mais tempo juntos, ele respondeu. Cortamos pelo Parque Barigüi. E entramos na rodovia. Quando me dei conta estávamos imbicados num portão de ferro grande. Um quarto, por favor, disse Tatá à atendente. Ela nos deu a chave, o portão se abriu e o carro avançou. Não acredito que você me trouxe num motel, que cara de pau. Quer ir embora? Vamos pelo menos conhecer o quarto, eu disse. Depois refleti melhor e falei: mas não vou fazer nada, não queira dar uma de engraçadinho. Você é quem manda, Mana, disse Tatá. Era a primeira vez que eu entrava num lugar daqueles. Meu coração latejava na garganta. O Tatá suava. Havia uma cama grande, espelho em todos os lados, um banheiro com banheira. É o mais simples, disse ele. Ficamos um tempo sem ação. Então ele foi até o frigobar e pegou uma garrafinha de vodca. Abriu e bebeu num gole. Daí pegou outra, abriu e me deu. Bebi no gargalo. Quis tossir, mas aguentei. Meus olhos lacrimejaram. Tatá se aproximou e nos beijamos. Foi me despindo. Me deixou só de calcinha. De repente me senti deslocada. Não era justo com ele, nem com você, Jassei. Ele me deitou na cama. Beijava meus peitos ao mesmo tempo em que ia se despindo. Eu era uma mentirosa. Ofegava. Ele tirou minha calcinha e veio. Devagar, pedi. Ele foi entrando aos poucos. Perdi a virgindade entre lágrimas, vodca e remorso. Mas querendo estar ali. E depois eu engravidei, não sabia se de você, ou se de Tadeu. Exatamente, Mana, como muitos anos antes mesmo deste episódio eu sempre esperei por você, por seu abraço, por seus beijos. Sempre esperei, mesmo quando minha boca se fez arma de caça que derrubava a presa de imediato onde eu fosse. Às vezes em que estive com outras, Mana, foram só porque não pude estar com você. E se outras bocas beijava, fazia com um beijo matemático, megálito, medroso. Nunca algo como naquela noite de nossa adolescência, em que você entrou no meu quarto para me devolver um livro e a gente começou a falar sobre a estória de Holden Caulfield, que me fazia lembrar o Tati. Foi assim: eu abri num leque as palmas das mãos e como colhesse um fruto grande segurei de leve seu rosto quente. Você beijou minhas palmas, a direita, depois a esquerda. Seus olhos umedeceram como se pupilas e retinas, aos poucos, fossem sendo sobrepostas pela luminosidade do abajur. Mas, de repente, passos imprimiram um peso e ritmo no assoalho que eu conhecia bem. Minha mãe com o camisolão que alcançava os calcanhares vinha pelo corredor. Você se escondeu atrás da poltrona verde musgo. Você não piscava. De apreensão, não respirava. Minha mãe entrou no quarto sem bater na porta: o que está fazendo que ainda não dormiu? Lendo, mãe. É muito tarde para leitores da sua idade. Já tenho 14 anos. Jassei, não me retruque. Só queria acabar o capítulo, mãe. E já acabou? Acabei. Então agora durma. Tá bem. Então me virei na cama dando as costas para ela do lado de fora da porta: boa noite, mãe. Durma com os anjos, filho. Apaguei a luz do abajur. E ela se foi. E você, meu anjo, lívida, saiu de trás da poltrona. Três anos se passaram desde aquela noite em que quase fomos flagrados. Então prestamos vestibular eu, você e Tadeu. E um dia você me disse que estava grávida de mim. E não quis contar para ninguém. E é um segredo que trago comigo até hoje. Sim, fomos juntos à clínica na Vila Isabel. Voltamos, você se recolheu em seu quarto, muito triste e machucada. Na manhã seguinte, entrou no meu quarto e disse que entre nós não existia mais nada. Um calafrio subiu feito peixe elétrico em minha espinha. Tentei argumentar, ponderar. Conversamos e era como mastigássemos os cubos de gelo de nossos laços sendo desfeitos. Você estava decidida. Três meses depois, você havia me trocado pelo Tadeu. Isso acabou comigo para sempre. Morar na chácara se tornou insuportável e me mudei para uma república, no centro. Passava os dias fumando maconha e lendo. À noite ia para Reitoria. Após as aulas, perdia-me por madrugadas que duravam finais de semana inteiros, no centro, nos subúrbios, nas praias, pelo interior do estado. Tanto vaguei sonâmbulo, maloqueiro, por entre os becos das bocas da carência, entre o cimento dos corpos das putas, que nunca me recuperei. Nunca me perdoei. E mesmo a perdoando, perdi você. E assim eternamente. Lembro de tudo isso ao mesmo tempo em que você me contava a história com Tatá. Mana acaba de me contar. Me contenho. Me seguro dentro de mim. Saio do quarto e pergunto a um enfermeiro: quanto tempo ela ainda vai ficar aqui? O enfermeiro encolhe os ombros e deita um pouco a cabeça para a esquerda lamentando. Saio do hospital. Será o amor uma espécie permanente de injustiça desejada?, penso. O primeiro a recuar, será esse o que mais ama? Chove. O céu não está nem aí para o insuportável sofrimento humano.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

.....Apesar de quase não sair mais da cama por causa da doença, naquele sábado, contente com minha rara presença, esforçou-se para sentar à mesa conosco. O médico tinha dado a ela pouco tempo de vida. Naquele sábado, ela conversou. Fez graça. E sua risada, embora fraca, devolvia a nossa casa a aura que há tanto se perdera. Cabelos mal penteados. Ela cheirava a Leite de Rosas. Após nos fartarmos com a deliciosa posta acompanhada de spaghetti, tia Ruth perguntou se queríamos mais. Estou satisfeito, disse meu pai se servindo mais uma vez de vinho. Eu também estou, falamos quase em coro você, eu e Tatá. Minha mãe praticamente não tinha tocado na comida, mas também afastou o prato de si na direção da tia Ruth. Você não comeu nada, Gica, disse meu pai. Estou sem apetite, mais tarde como alguma coisinha. Tia Ruth raspou os restos de todos num único prato. E fez uma pilha colocando o que continha os restos em cima dos demais. Então levantou para levar a pilha para cozinha. Vou ajudar você, disse minha mãe. Não precisa, Gica. Sempre lavei a louça, Ruth, não vai ser agora que você vai me dizer o que posso ou não fazer. Meu pai tentou dissuadi-la. Não teve jeito. Ela seguiu tia Ruth. Você levantou e também foi para cozinha. A cabeça de minha mãezinha não estava boa. Ela vinha tendo lapsos de memória, apagões. Irritava-se com facilidade. A doença estava corroendo sua mente também. Na verdade ela raras vezes lavava a louça. Quem fazia isso sempre era Elza, que naquele sábado não estava porque tinha ido ajudar na Festa da Uva.  Possivelmente minha mãe e tia Ruth estariam na Festa, como acontecia todos os anos, não fosse a adversa circunstância que se impunha sobre a família. Então alguns minutos se passaram e você voltou afobada da cozinha. Minha mãe tinha desmaiado. Acorremos em sua direção. Tia Ruth estava agarrada a ela no chão de lajotas. Saia uma espuma branca da boca de minha mãe. Meu pomo-de-adão inchou na garganta. Eu respirava ofegante. Meu pai carregou minha mãe no colo. Colocou-a com cuidado na cama do quarto deles. Onde meu pai já não dormia mais. Desde que a doença fora diagnosticada e minha mãe passou a exigir cuidados especiais, meu pai se mudou para o cômodo que fora meu desde há infância até o dia em que virei as costas para a família. Tia Ruth abriu o armário, pegou um edredom e pôs sobre ela junto com o cobertor que já estava na cama. Olhei para Tadeu e ele estava chorando, apertando os olhos com as pontas do polegar e o indicador para as lágrimas não lhe embaraçarem a visão. Ele e meu pai foram para a sala e começaram a ligar para o Dr. Francisco. Você sentou na beira da cama e segurou as mãos da minha mãe. De vez em quando soltava uma das mãos e ajeitava a franja de minha mãe. Tia Ruth fechou as janelas e acendeu o abajur. Saímos todos do quarto para deixá-la descansar. Jassei, vá chamar a Elza, ordenou meu pai. Peguei a chave da caminhonete dele e fui saindo. O Dr. Francisco já está vindo, avisou aos outros. Meu pai foi até o armário da copa, pegou e abriu uma garrafa de vinho e começou a beber. Ele nunca mais parou de beber aquela garrafa. Quando voltei com Elza minha mãe já estava morta. Tatá consolou tia Ruth após ela ter ligado para o padre João. Elza com toalhas e uma bacia de água quente lavou minha mãe. De joelhos ao pé da cama tia Ruth rezou e gemeu de dor erguendo as mãos para o céu. Dr. Francisco chegou. Tarde demais. Meu pai disse com qual vestido preferia arrumá-la. E você ajudou a vesti-la. Dr. Francisco assinou o laudo de óbito. Precisei sair de casa. Fiquei na varanda fumando. Padre João chegou, me deu os pêsames e entrou. Eu queria ajudar, mas não conseguia. Desejava ter feito algo por ela antes. Não fui atencioso. Não fui dedicado. Não fiz o que pude. Todos deram o seu melhor. Eu era um bosta. Por que ao menos eu não estava preparado? O que fazer com a necessidade de fazer as coisas diferentes se não sabemos nem para onde olhar? Se não sabemos quando será positivo pôr as mãos no bolso ou depreciativo acariciar o cão? O que fazer se não temos aonde ir senão às favas? Você veio até mim e colocou a mão no meu ombro. Em meus olhos derretendo com as lágrimas vi, como eles fossem um espelho, que você ainda me considerava um monstro. Eu queria abraçá-la com força e soluçar pedindo “por favor, me ajuda, tô desesperado”. Mas não. Você apenas disse: teu pai está chamando. E entrou. Estou vendo tudo isso. É tão nítido. Subo a Comendador Araújo. Sim, quem mais amava está comigo, na lembrança. Posso ouvi-los na sala a tagarelar, o hálito alegre falando sobre nada. Sempre fico melancólico nesta época do ano. Ouço os pingos na calha, a chuva de todos os meses. A chuva, o frio, a geada não me deixam esquecer. Não se pode prender para sempre os instantes. Que passem. Plenitude é o que vai, some. Esquecer talvez seja o jeito humano de guardar. Não quero reter os momentos de felicidade, como alguém que pretendesse o raro de si mesmo. A felicidade me atravesse, não como eu fosse um túnel, mas lama que não admite modelação. Atravesse, não suportaria encarcerá-la. A vida acontece conforme se sucede, não como preferimos. O tempo passa para fazer com que as pessoas amadureçam e se tornem melhores, mais justas, sábias, compreensíveis. Se você envelhece com pesares e lamentos, o futuro aparecerá como um serial killer, destruindo você para uma a uma das pessoas que ama. Talvez a maneira mais eficientemente tola de abjurar o passado seja não permitir que a vida nos faça esquecê-lo. Mana. Pensei que você tivesse esquecido totalmente de mim, quem dirá da data de meu aniversário. Mas recebi seu presente, com o cartão e tudo mais. Eu queria retribuir. Tinha que estar de cara limpa quando fosse vê-la. Não corto o cabelo nem faço a barba há meses. Escondo a pele demasiado branca sob meu modo rústico de sempre me vestir. Bem diferente das roupas de corte exato do Tadeu, que contrastam drasticamente com as peças quase rotas de nossa adolescência, o que, mesmo para quem não conhece nossas diferenças, faz com que visualmente as intua. Subo à pé do centro, onde moro, até a Pracinha do Batel. Uma quadra adiante, a barbearia do seu Paulo. Uma vez por mês, meu pai nos levava ali, aos sábados.

terça-feira, 7 de junho de 2011

.....Hora do almoço. Pizzaria Itália. Rua Carlos de Carvalho, meia quadra abaixo da Biblioteca Pública. Debruçado no balcão de alumínio, como uma fatia mussarela, massa grossa. Olhando os azulejos brancos com motivos amarelos nas paredes, como segurando com as mãos, me lambuzando com a gordura do queijo. Tenho pressa. Por quê? A ansiedade, a angústia. Saio da Pizzaria. E caminho. A gordura pesa em meu estômago. É sexta-feira, a cidade e seu típico cheiro de festa junina no ar. Atravesso a Praça Osório. A feira apinhada de gente. O vento, leve feito beijo de mãe. Estou lembrando de quem descendo e tento fingir que posso ficar em paz. Não espero o destino feito esperasse o troco. Sinto saudade dos velhos da família que aos poucos foram saindo de cena, fugidos da vida para dentro da terra. E assim será conosco. Nascemos de novo dos nossos filhos quando nossos filhos nascem, dizia minha mãe. Os Brennelli, dizia, descendem de rezas. Sinto muita falta dos aromas da cozinha da chácara. As massas e carnes. A galinha de panela, a polenta. Os bolos. Os cheiros invadindo a casa toda. Impregnando nas cortinas, toalhas, roupas de cama. Estou pensando no dia em que meu pai passou a beber com obstinação. Sabendo da presença assídua de Tadeu e Mana, eu quase nunca aparecia. Mas agora era diferente. Comíamos ruidosamente, falando pouco, menos que os talheres e os pratos. Eu já não morava mais na chácara, desde a época da faculdade. Tatá e Mana também viviam em sua própria residência, num condomínio próximo ao Parque Barigui, desde o casamento deles. O casamento em que não fui. O casamento que me fez rastejar feito um asqueroso roedor por ambientes sórdidos em busca de consolo. Como se álcool, crack e lençóis manchados pudessem servir como substitutos. Mas não. Por causa disso, ainda hoje falo baixo, como alguém que não quer espantar as ausências. Como quando criança, na época em que eu achava que sussurrando a gente podia falar com Deus. A ausência é modo mais eficaz que Deus tem para provar que não existe. Os ausentes são o impossível. Por isso me perco ainda hoje em túneis de neblina, soterrando o amor que não deu certo. Se às vezes o amor é menos que uma piada de mau gosto, noutras ele é a desgraça. Não penso no que dançou dúzias de rosas. Nem naquela que com risadas não permitiu mofar meias de seda. Ou no que palmilhou estriptosas canções de areia grossa e danças. Nem penso numa espécie de armistício. Ou ainda na corriqueira hora do lanche de corpos que se comem. Não. São as traças sem vagido, piolhos, lêndeas, pulgas, os mais ínfimos, pífios, nulos seres que comparo ao meu amor falhado. E ainda me pergunto como anda sua vida. Será que seu marido cuida bem de você? Será que a ama do jeito certo? Qual é esse jeito? Será que você sente muita saudade dele no verão, quando fica a semana inteira com os filhos num apartamento na Praia Mansa, em Caiobá, esperando ele chegar na sexta-feira a noite, vendo-o partir na segunda por volta de cinco da manhã. E meus sobrinhos, eles terão puxado mais a mãe ou o pai? Você fala de mim para eles? A menina, você já está se vendo nela? Penso naquele outono quando, dois anos após seu casamento, você bateu em meu apartamento. E disse que estava farta, que não suportava mais minha família. Você estava farta dos Brennelli, e correu para os braços de um deles. Por mais desgarrado que eu fosse, o sangue era o mesmo que dos outros. Sabe, o Tadeu chegou depois de mim em tudo e sempre se deu melhor. Era como eu fosse a cobaia, para então ele gozar tranquilamente. Você primeiro casou comigo. Mas foi com ele que jurou amor eterno. A aliança que você usa, veio dele. Com ele não foi uma mera brincadeira de criança, como você me disse certa vez. Sim, uma brincadeira. Foi no dia em que eu e meus primos nos vestimos com camisas com babado e gravata borboleta, confeccionados por Dona Zilá. Para o casamento de quem? Você veio em meu quarto, divina, com um vestido amarelo, laço nas costas. Os cabelos, o frescor do condicionador que você acabara de usar no banho. Minha mãe falou: o que é isso, Mana, vai de Botas Sete Léguas na festa? Olhei para seus pés e lá estavam, azuis, rudes, contrastando com a delicadeza do vestido. Meu sapato estava me matando, dona Gica, justificou-se você. Eu que há horas vinha brigando com minha mãe por causa do par envernizado que mastigava meus pés, corri colocar também galochas. Quer saber?, desisto de você, Jassei, gritou minha mãe, se quer ir mal vestido, vá, lavo as mãos. Sou o gato de botas, mãe, disse eu num tom brincalhão, exibindo-me um pouco para você, que riu. Eu queria mostrar que éramos cúmplices daquele crime de etiqueta. Onde já se viu ir a um casamento calçando Sete Léguas? Não nos importava muito se minha mãe já saia puta da vida em direção ao quarto dela praguejando: melhor eu ir ver teu pai, do jeito que vocês são, é bem capaz dele querer ir de botas também, aí é que todo mundo vai mesmo ter motivo pra dizer “esses Brennelli são um bando de jacus”. Eu tinha 12 anos, Mana, você 11, e o futuro inteiro pela frente. No entanto, nenhum de nós sabia ainda que há vezes em que o futuro é um desaforo para quem tem a alma rasgada feito um pano de chão, retorcida qual ferragens num acidente grave, esgarçada, um pedaço de bife jogado aos leões. E não só por isso a gente estava achando a cerimônia do casamento do Dr. Francisco muito chato. Fomos para o jardim atrás da igreja. Você olhou para meus pés, daí deu um chutezinho leve nas botas. Erguemos os olhos e eles quiseram falar algo muito íntimo, que só os seis (eu usava óculos de grau já naquela época) deveriam saber. E a sombra do futuro que, só hoje sei, é tudo o que gasta envelhece enferruja, moedor de ossos duros de roer. Sempre tem esses dias que são anestesistas de retalhos de histórias de amor viciadas em acabar e não ter fim, que são blues buracos negros dos quais a gente se embebeda de doses da noite branca feito gelo na goela. É assim, sequer notamos os olhos roxos saltando da cara, já nos acostumamos com hematomas latejando o futuro. De vez em quando nossos rostos sorriem sem nos darmos conta que estamos desfigurados. Mas naquela época ainda éramos bonitos e meu rosto sorria para tua boca, que veio e deu um beijo no meu rosto, bem no filé mignon da bochecha. Minha boca ficou com ciúme da bochecha e foi beijar a tua bochecha. Mas imediatamente tua boca avançou e entrou na frente, querendo mastigar meus dentes de leite. Aceita casar comigo?, perguntei. Você ficou um pouco de perfil, olhando de viés para mim. Era aquela hora do lusco-fusco. E você se destacava na tarde cinzenta feito um girassol, só que bem mais humano do que a maioria dos girassóis. Demorou mais do que eu podia aguentar para que viesse a resposta. Mesmo assim, temendo a negativa, aguentei. Os sinos da igreja começaram a ir para lá e para cá com seu blémblém. Por baixo daquele som condutor de milagres e glórias, veio enfim sua voz clara feito um copo de água: aceito. E foi assim que nós, crianças, casamos. Mas isso foi há tanto tempo. Bem antes do seu casamento. Aquele que você chamou de casamento de verdade. E esse era apenas um dos motivos que me faziam não gostar de ir à chácara. Ter que suportar você e Tadeu sorrindo de dentro de sua vida perfeita, que, eu e você sabíamos, de perfeita não tinha nada. Mas os almoços de sábado eram sagrados pra meu pai. E daquela vez estávamos todos um pouco mais animados do que nos últimos meses. O mínimo que eu podia fazer era estar lá, mesmo que dividindo a mesa com você e Tadeu. Claro que havia um constante clima pesado entre nós. Mesmo passados seis anos da noite em que eu e Tatá tentamos assassinar um o outro com socos, chutes e até faca em punho. Mas era minha obrigação de filho esperar unido à família a maldita doença aniquilar a mulher que me colocou no mundo e cuidou de mim.