terça-feira, 14 de setembro de 2010

cartas aos amigos

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.....Ei, Sarah Kane, sei que tua relação com o mundo não é leve, nem doce. Pelo contrário, tuas peças são alguns dos buracos mais amargos onde já me meti. Eu sei, ninguém precisa entrar lá se não quiser. Você jamais obrigaria que o fizessem. Mas comigo é diferente, eu preciso. E suspeito que isso não vai ter fim. Claro que todo mundo sofre um pouco (ou muito). Vem da doença de ser humano. Ou da maravilha (vai saber). Estou aqui escrevendo e hoje minha mão não dói tanto, acho que porque está um pouco mais calor. Mesmo assim ainda continuo intoxicado de frio, pensando a cada frase que escrever é um modo de não se saber absolutamente nada sobre a existência humana. Viver estupidamente, escrever bestialmente, deixar-se amaldiçoar, depois virar matéria de análise? Não pode ser tão simples. O que me diz? Ah, esquece. Eu não queria ser esse cara que resmunga e só depois morde. Enquanto tenho caninos devia arrancar pedaços logo de cara, você não acha? Lembra aquela noite em Londres, a gente saindo de uma peça pessimista pra caralho do Bernard Shaw? Eu exultava com a tese desenvolvida por ele, até que você disse: A gente pode achar que o mundo é mal, mas pense nas pessoas que você conhece, a maioria delas são pessoas más, ou boas? E essa tua frase me aniquilou de bondade. E foi bem esquisito ter ouvido algo tão meigo vindo da autora de Blasted, entende? E nem acho que isso tenha sido um conselho, pois logo a madrugada começou a soprar Desolation Row na copa das árvores afugentando morcegos. Então fico aqui me convencendo que foi só uma observação casual de uma menina muito esperta. E isso deveria bastar, mas o problema é que algo está sempre se desfazendo, evaporando. Então a gente entrou naquele pub e você ficou ensimesmada, tendo sei lá que iluminações enquanto dava bicadinhas na cerveja. Você tinha voltado pra esse lugar só teu, impenetrável, que meninas apenas espertas jamais suportariam. E você devia gostar, claro, de algum modo você gostava, porque vivia lá dentro aguentando mais do que qualquer pessoa (a menos que eu pensasse em Artaud, Van Gogh, Nijinsky, Lautréamont, et caterva), indo sempre até o osso do delírio, da abstração, ao ponto de vê-la se transmutar, voltando a ser palpável, mas de uma carne que é labareda.

3 comentários:

  1. Entendo bem... nosso amigo Andrew me apresentou Blasted...

    bom re-ler-tu de novo!
    bjo

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  2. olha, luizito, você fica andando com esses piás até de madrugada, daí você fica com a cabeça toda cheia de coisas estranhas. eu já te falei, meu filho, que essa sarah kane é coisa da tua cabeça. você tem que parar de pensar nessa mulher. ela ainda vai te levar pro buraco.

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  3. QUER POUCO: TERÁS TUDO
    QUER NADA: SERÁS LIVRE! (Fernando Pessoa).

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