quinta-feira, 30 de abril de 2009

festa do programa orelha do livro


Na segunda feira, dia 04, a partir das 19 horas, será comemorado o aniversário do programa Orelha do Livro. Quem teve essa formidável atitude foi a jornalista Mariana Sanchez. O projeto foi acolhido, chamemos assim, pela rádio Lumen FM. O Orelha do Livro é diário e, embora breve, deveras importante para a divulgação da boa literatura. O evento também será responsável por iniciar os trabalhos para as Segundas Experimentais, mais uma das idéias supimpas da proprietária do Wonka e agitadora cultural, Ieda. A casa, com esse projeto, pretende receber as mais variadas expressões artisticas da cena local e, por que não?, nacional. Já confirmados na programação das Segundas Experimentais, nos dias 18 e 25 de maio, e 01 de junho, o grupo Teatro de Ruído, do qual faço parte, apresentará suas Pecinhas para uma tecnologia do afeto. Serão nove performances, três na primeira data e, consequentemente, as outras nas semanas seguintes. Sorte nossa que existam iniciativas como essas: a Mariana Sanchez é uma guerreira apaixonada, e a Ieda (Mafalda e Wonka) é uma elegantíssima anfitriã. Estarei na festa, fui convidado para ler um conto meu. Além dele, lerei Os poderes de Adam, do Jamil Snege, conto publicado na obra prima O jardim, a tempestade, cuja edição revista, de 2004, nos foi brindada pela Travessa do Editores.

notas para um livro bonito

espíritos de
poetas simbolistas se movimentam
nas garagens dos prédios e
corredores de hospitais
em madrugadas de gelo.
é produto de zonas sombrias
recônditas
o silêncio que tememos.
estamos desprotegidos
mesmo no lado dentro.
sabemos que a carcaça que envolve
certamente é forte
mas os órgãos
facilmente poderão
ser esmagados igual frutas.

depoimento do paulo sandrini


Ano de 2006, eu ainda morava no Rio de Janeiro. Pintou a possibilidade de negociar com uma editora de médio porte um livro. Meu amigo, o escritor e cineasta Abelardo de Carvalho, tinha uma agente literária. Por intermédio dele fui incluído em algumas conversas. A agente sugeriu que recolhêssemos material crítico e depoimentos, para fortalecer os trabalhos lá com a editora. Um pouco envergonhado, pedi a alguns amigos palavras que pudessem contribuir. Esse que ora publico é o depoimento do Paulo Sandrini. Ele, ao lado do poetaço Fernando Koproski, já havia me publicado pela Kafka Edições Baratas. Anos depois, teve a brilhante idéia da Coleção Antena, e me convocou para ser do time. Foi então que surgiu o Inverno dentro dos tímpanos.
... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
Vou dizer por que é que eu apostei (com a Kafka Edições) e continuo a apostar no Luiz Felipe Leprevost como escritor: porque o Leprevost desmistifica a literatura, traz ela pro corpo a corpo com o leitor. Tem ritmo, ginga, imaginação. O Luiz Felipe é daqueles que quando escreve poesia, não escreve só poesia, pois, quando o faz, já está subvertendo os gêneros e vertendo outra coisa que a gente não sabe bem o que é, mas sabe ter a inventividade e a força anímica de que tanto necessita o texto literário. Com Luiz Felipe o leitor tem humor, amor, vapores, ironia, cinismo e vários pontapés naquilo que é de bom tom — o Luiz Felipe tem o dom de nos constranger quando desnuda e ridiculariza as paixões e os hábitos mais mesquinhos, os nossos e os dele, autor. Nesse caso, o Luiz Felipe não tem medo de mostrar a zorba puída, como já dizia outro grande autor daqui, destas terras, Jamil Snege. O ridículo às vezes é um excelente ingrediente nas mãos desse Leprevost, ingrediente que jogado num mixer de referências que vão, às vezes implícita às vezes explicitamente, desde a alta literatura até a cultura de massa (hei, isso não é o lance pós-moderno, híbrido?), se torna cômico e ao mesmo tempo trágico. Em suma, gosto de falar do Luiz Felipe porque esse cara tem realmente talento, tem verve de escriba; e principalmente gosto de falar do Luiz Felipe porque o cara tem o dom de jogar pregos na poltrona do leitor. E isso não é pouco não, num tempo em que a escrita se tornou objeto de pura estética, em que os escritores necessitam ser maiores que suas próprias obras e se esquecem do seu interlocutor, nós leitores.

Paulo Sandrini
Ficcionista, editor da Kafka Edições

mais sobre o Inverno dentro dos tímpanos

No site Terra Magazine, num sábado, 31 de janeiro, 2009, em São Paulo, Roberto de Sousa Causo, publicou a seguinte resenha sobre os livros da Kafka Edições, Coleção Antena, que o meu Inverno dentro dos tímpanos agrega.
... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ....
Interessante que ela se chame "Antena", sugerindo ao mesmo tempo que seus autores (todos curitibanos) e os enfoques que adotam, dentro mesmo do absurdismo, estão mais antenados à realidade atual - e que a coleção funciona como uma antena irradiando a mensagem do grupo para o restante do Brasil. É de se perguntar o que há no clima de Curitiba, cidade simpática que conheci no final de 2007, que leva a uma intimidade tão grande com o absurdo...
Os seus editores são Paulo Sandrini e Luci Collin. Collin faz em Acasos Pensados (Curitiba: Kafka Edições, Coleção Antena, 2008, 102 páginas) ataques à narrativa convencional com contos que fundem poesia, prosa e recursos de montagem, e que apontam para a arbitrariedade a escrita ficcional (assumindo portanto um caráter metaficcional). Mas são os seus contos que configuram as vozes de mulheres de diferentes estratos sociais, os de maior interesse: "Daqui", "Fotinha", "Caso Pensado", "Traçadaslinhas" e "Literatura Feminina - Questão de Regras". A poeta e contista Collin está na antologia Geração 90: Os Transgressores (2003), de Nelson de Oliveira, e publicou mais de dez livros.
Sandrini comparece com Osculum Obscenum (Curitiba: Kafka Edições, Coleção Antena, 2008, 80 páginas), intensa novela claramente absurdista com elementos de ficção científica (girando em torno de uma empresa de clonagem e engenharia genética), composta em torno de imagens do inferno na cultura ocidental. Os diálogos têm um peso maior aqui, assim como o humor e certo espírito brincalhão, bem pós-modernista. Não escondem, porém, a atmosfera perturbadora e o conteúdo de sexualidade explícita. Sandrini é um agitador cultural em Curitiba, e designer gráfico (fez um ótimo trabalho com esta coleção). Tem outros dois livros publicados e está na antologia de Nelson de Oliveira, Futuro Presente, de ficção científica, a sair no primeiro semestre de 2009.
Um problema da ficção absurdista é a tendência de repetir que a vida não faz sentido. Não no mundo moderno, supõe-se. No meu ver, quanto mais específica, maior o alcance dessa crítica. Nesse sentido, os contos de Inverno Dentro dos Tímpanos (Curitiba: Kafka Edições, Coleção Antena, 2008, 106 páginas), de Luiz Leprevost, e Arquivo Morto (Curitiba: Kafka Edições, Coleção Antena, 2008, 188 páginas), de Marcelo Benvenutti, trazem o absurdo mais para junto da experiência brasileira.
Leprevost tem um talento para os diálogos e para a construção de atmosferas. Seus contos em Inverno Dentro dos Tímpanos tratam da vida em Curitiba e por isso ganham em especificidade e seus tipos humanos são mais concretos. Há algo de hipnótico na sua prosa, especialmente quando lida com personagens destemperados, rancorosos com uma sociedade que não conseguem entender. Não obstante, seus contos não escapam de certa repetição justamente nessa atitude irada contra tudo e contra todos. Os textos são entremeados por uma série de quatro vinhetas: "Soluções Físicas e Químicas para se Fazer um Kafka" (que em si denuncia a influência onipresente do autor tcheco). Leprevost é formado em Artes Cênicas (daí a habilidade com diálogos e com a atmosfera dos contos?) e tem outros cinco livros publicados, dois deles pela Kafka Edições.
B
envenutti tenta ser ainda mais incisivo. Seus contos curtos, organizados no livro de forma enciclopédica (de acordo com a letra inicial do título), exploram tipos e situações contemporâneas e têm um alcance maior, indo da metrópole ao campo sem hesitações. O absurdo assume formas igualmente diversas, indo do meramente curioso nas relações humanas, ao francamente ofensivo. Melhor são aqueles dos quais escapa alguma simpatia pelos personagens e suas circunstâncias, como "Alberto", sobre um casal que vive se encontrando num bar - claramente feitos um para o outro, mas sempre bêbados demais para reconhecê-lo. No conjunto, o livro sofre com a brevidade dos contos (escritos para o blog do autor, Vidas Chatas) e da repetição de estruturas e abordagens. Certamente também há aí uma crítica implícita ao absurdo da vida moderna, já que a brevidade enfraquece o envolvimento do leitor (num cenário de pouco envolvimento real entre as pessoas) e a repetição espelha a rotina supostamente massacrante das nossas vidas. Eu teria apreciado outras saídas para este Arquivo Morto, porém. Benvenutti tem outros dois livros de contos publicados.
As imagens surrealistas do capista Marco Sandrini são perfeitas para a coleção, que também caprichou no papel e diagramação. A maior novidade, porém, está no uso da nova ortografia. A Kafka Edições resolveu se antecipar à outorga da nova reforma ortográfica pelos nossos burocratas da língua e da intelectualidade. Como sou contra a reforma, é impossível não enxergar no seu uso pela Kafka Edições um outro traço do absurdo. Uma boa razão para posicionar os membros da Academia Brasileira de Letras na linha de frente da guerra contra os Taedos.
Roberto de Sousa Causo
de São Paulo

roberto.causo@terra.com.br

quarta-feira, 29 de abril de 2009

um parque de diversões na cabeça


"A verdade não é um segredo de poucos"
porém
você pensaria que é
pela maneira como
os bibliotecários
e os adidos culturais e
especialmente os diretores de museu
agem
até parece que eles detêm o monopólio
da verdade
pelo ar
pomposo como avançam
de nariz empinado
aparentando que jamais
vão ao banheiro
ou coisa parecida

Mas se eu fosse você
não os condenaria
Eles asseguram que Assuntos Espirituais são
melhor formulados em termos abstratos
e além do mais
perambular pelos museus sempre me deu
uma vontade louca de
"arriar as calças"
Sempre me sinto tão
constipado
nestas
altitudes elevadas
Lawrence Ferlinghetti

notas para um livro bonito

de cofres de nuvens o poema desaba.
chuva na tarde ferruginosa: o poema-tobogã e
seus frios na bexiga.
mas seus mistérios são como a alegria
a fruta que lenta e rápida apodrece nos mercados.
o poema é só o poema
ou mesmo a doença em Deus.
entende-los (poema e Deus) por linguagem
é uma saída, mas não resolve.
cultuar seu misticismo
sua precariedade ou antissepsia, é possível.
mas e daí?
o poema, anjo roedor, é ruidoso e não apazigua.
o poema adrede ardis.
se com urgência, suja-se um bocado.
se com paciência, não passa de
inseguranças de um piá de prédio.
fuligem e esterco, ei-lo.
até que finalmente, fóssil de flor
(que não é flor que se cheire)
o poema entra num livro.
e o livro cai na vida.

o melhor de mim


Dentro do projeto Vozoff, com curadoria do poeta Mário Domingues, em 30 de agosto de 2007, fizemos eu, Michelle Pucci, Alexandre Nero, Diego Fortes e Bruno Karam, sob a batuta de Nadja Naira, uma apresentação dos textos do Manoel Carlos Karam, no ACT (Ateliê de Criação Teatral), espaço dirigido por minha querida amiga Nena Inoue. Nossa leitura da obra do mestre recebeu o nome de Encrenca, emprestado de um de seus livros. Apesar de já dodói, Karam, junto de sua amada Kátia, esteve lá. Muitos amigos da geração deles igualmente prestigiaram a festa, chamemos assim. Após o teatro fomos para o Bar Palácio, Karam e Kátia não puderam ir, mas brindamos os dois umas 43 vezez, no mínimo. Eu estava bastante feliz, e esse, que é o melhor de mim, foi registrado pela lente de Vera Solda, a amada do Cartunista. Colo o retrato aqui para que hoje ele me sirva de amuleto da alegria.


balbucios de blues

de repente das mãos de uma velha
você ganha uma rosa amarela de plástico.
essa velha é a noite a te embalar
com tristonhos roquinhos.
e a rosa é o que você quiser que seja: a alegria de
dividir uma comemoração com amigos
ou um pé na bunda da garota que você ama.
você não quer saber de nada nem de ninguém.
chove lá fora, você sai a pé
e a tua imagem no espelho de uma poça d´água
arranha os olhos do afogado.
você corre, mas uma nuvem de
passados negros te acompanha
como fossem uma dezena de pássaros.
os pássaros são o teu amor ferido.
e o teu amor ferido é um clichê portátil.

terça-feira, 28 de abril de 2009

notas para um livro bonito

meu coração
é uma daquelas árvores
em que alguém
com um canivete
talhou outro coração.
esse outro é o seu.

kafka edições indicada para o prêmio portugal telecom



Acabo de saber que esses dois ótimos livros dos meus colegas de editora e coleção, Paulo Sandrini e Luci Collin, estão indicados para o Prêmio Portugal Telecom. Toda sorte do mundo pra eles.

pecinhas para uma tecnologia do afeto

Olho humano

Há um aquário em cena. O aquário tem o tamanho de uma piscina. Essa piscina está em cena. E essa piscina tem o tamanho da cidade de Curitiba. Há a cidade de Curitiba em cena. E a cidade de Curitiba tem o tamanho do Oceano Pacífico. Há o Oceano Pacífico em cena. A Atriz está no fundo, onde é inumano se estar, do Oceano Pacífico. Ou ainda estamos todos submersos numa imensa bolha de mágoa. A platéia também está lá nesse lugar abissal. Nem a atriz, tampouco a platéia usam escafandro ou submarinos. Nessa peça a platéia não se chama platéia. Nessa peça a platéia se chama olho humano. Há alguns oftalmologistas por ali. Também há muitos míopes e estrábicos. E, claro, alguns cegos.

lágrimas são uma espécie
isso
lágrimas são uma espécie de
língua universal e
meu olho
isso
meu olho é
simplesmente um
isso
lágrimas são uma
espécie de língua
universal e
meu olho é
simplesmente um
ouvido

O olho humano ainda não está compreendendo.

mas cada humano chora
isso
lágrimas são uma espécie de língua
universal
mas cada humano chora de modo
particular

Aqui o olho humano pisca com certa ternura.

cada olho cada
cada olho cada humano chora
cada humano chora cada olho

O olho humano se fecha (estará dormindo?). Não, o olho humano não está dormindo, embora sonhe.

cada olho
estilo, erros gramaticais
isso
cada olho
tem uma caligrafia específica
estilo, erros gramaticais
isso
o olho é um exímio
contador de estórias
um poeta
estilo, erros gramaticais
isso
cada olho
tem uma caligrafia específica
estilo, erros
o olho é
o olho, olha, é o olho
é um exímio
contador de estórias
isso
poeta
o olho é
um estupendo poeta
o olho
é um exímio
contador de estórias
isso
um estupendo poeta
isso
lágrimas são uma espécie
uma espécie
isso
lágrimas são uma espécie
em extinção
isso
lágrimas são
uma espécie de
língua universal
isso
mas cada humano chora
cada humano
de modo particular
isso
lágrimas são
uma espécie de
língua universal
em extinção
mas cada humano chora
de modo particular

Agora o olho humano já não suporta mais. Enquanto a atriz fala o olho humano, dentro da sua própria cabeça de olho humano, vai presenciando decadência em demasia.

todavia
diga você
se estou enganada
diga você diga
se estou
diga você que
tem olhos que
certamente que
não são
analfabetos
digo
de pranto
isso
diga diga diga
diga você que tem olhos
diga que
não têm olhos
analfabetos de
pranto
diga que
aliás
todavia
aliás
isso
aliás
isso
o olho é
um exímio
contador de estórias de
um estupendo poeta
todavia
diga agora você
diga se
estou enganada
você que
tem olhos que
certamente que
são
não são
sãos
analfabetos de
pranto
aliás
diga que você
aliás que
todavia
lágrimas são
uma espécie de
distinção de
língua
isso
lágrimas são
uma espécie de
língua língua língua
língua universal

O olho humano boceja. Não suporta tanto experimentalismo que não chega a lugar nenhuma. Que não desafoga nem se entrega aos tubarões. Sim, tubarões nesse momento rondam o olho humano.

mas cada
humano
cada choro
cada humano chora
o choro de modo particular
cada olho, olha
tem um caligrafia específica
estilo, erros gramaticais
o olho, olha
o olho é
um exímio contador de
estupendos estúpidos

O olho humano.

todavia diga
diga diga diz
você se
estou enganada
diz você que tem
olhos que
certamente que
não são
analfabetos de
pranto

O olho.

socorro
pronto pronto
socorro pronto
passou passou passou
agora diga

Olho.

aliás aliado
isso
alias aliado não
aliás ali
diga vai
diga diga não
diga nada
isso
não diga nada
não
não
não
não

O olho humano cerra as pálpebras por um longo silêncio.

isso

O olho humano depois do longo silêncio volta a ouvir de pálpebras abertas.

aliás
isso
não diga diga
diga nada
apenas continue
me olhando

A luz vai caindo em resistência na mesma medida em que a água do aquário vaza. Quando tudo escurece num blecaute ainda úmido, a atriz e o olho humano respiram feito baiacus esquecidos na areia da praia.

viva o mestre antonio thadeu wojciechowski

Balanço
tudo que aprendi
ensinei em dobro
tudo que senti
doeu no lombo
tudo que amei
perdi no jogo
tudo que ganhei
doei de novo
me restou esse coração louco
espalhado pelo corpo todo
Antonio Thadeu Wojciechowski

algo bom sobre o livro Inverno dentro dos tímpanos

A resenha de Carlos Augusto Lima foi publicada no Diário do Nordeste em 21/11/2008. Ele faz comentário sobre cada um dos livros publicados pela Coleção Antena, da Kafka Edições. Sou grato por estar entre esses estupendos artistas confraternizados pelo talento e paixão do editor Paulo Sandrini.
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Livros de um Kafka editor
Aproveito agora, já que a curiosidade da cidade anda tão aguçada para os livros, espero, coisa rara, para contar de mais uma de minhas descobertas ao vasculhar ambientes, idéias, projetos, propostas de livro. De Curitiba, uma boa dica é Kafka Edições. A quem interessar possa, entrar em contato imediatamente: http://www.kafkaedicoes.com.br/.
Conheci Kafka Edições ainda no tempo de Kafka Edições Baratas, surgida em 2004 com a proposta de lançar novos autores curitibanos em formatos autodenominados ´demo´, para lá de experimentos, quase artesanato. Ainda guardo por aqui um livreto com traduções de poemas de Charles Bukowski por Fernando Koproski. Agora Kafka me reaparece com todo requinte (para usar uma palavra modelo ambientações), um luxo só, numa faceta mais elaborada e divulgando a Coleção Antena. Projeto novo, mais fôlego e com cara de vontade e querendo abraçar outros e novos horizontes, mostrando trabalhos de gerações diversas pelo Sul. A ingenuidade dos primeiros livretos fora substituída por edições caprichadas, papel bom, ISBN e as formalidades do objeto livro.
Coleção Antena presta homenagem grata ao escritor catarinense-curitibano Manoel Carlos Karam, falecido em 2007 e que teve editado um dos volumes da coleção. ´Jornal da Guerra Contra os Taedos´ é uma seqüência de narrativas entre a novela, o romance de invenção, a narrativa aos fragmentos, uma corrupção, na verdade, dos gêneros que coloca a partir do ponto de vista de um suposto jornalista ou encarregado da publicidade, o conflito belicoso do país deste com os tais Taedos. Karam aciona um dispositivo de alto grau de ironia para com o discurso da guerra, suas falas, argumentos beligerantes que resvalam para o discurso da imprensa, da publicidade e ataca, com suas próprias armas, a espetacularização não só do conflito, mas do mundo. Um correspondente de guerra nato, com todas os falseamentos possíveis e arranjados.
O clima de absurdo, non-sense e sadismo domina a narrativa de ´Osculum Obscenum´, de Paulo Sandrini, figura chave da Kafka Edições, designer, pesquisador. Criaturas pré-fabricadas, a visão de um pesadelo futuro, quem sabe o nosso, contornam os passos do narrador de nome K. Prosa sem gosto de prosa, poesia sem lirismo e mais para o amargor. Ao lado de Paulo Sandrini, Luci Collin é uma das responsáveis pela coordenação editorial da Coleção Antena. De sua autoria, ´Acasos Pensados´ se articula como uma grande colcha de retalhos narrativos que vão do diário íntimo, passando pelo verso, pela enciclopédia, a entrevista, numa tessitura experimental curiosa, quase um almanaque de composições.
´Arquivo Morto´ é o livro de Marcelo Benvenutti que também faz parte da coleção. Marcelo organizou um curioso catálogo, um índice onomástico de criaturas anônimas, sem sobrenome, bando de nadas que convivem num limite entre realidade e absurdo, numa tensão, de um modo geral, com a condição do mundo do trabalho. O trabalho os circula, oprime, entedia, enfada, fere. Procure seu nome na lista. Se você se identificar com qualquer das criaturas, por favor, não chore.
Por último, deixo Luiz Felipe Leprevost, curitibano, 29 anos, o mais jovem a publicar na série, mas, para mim, com o livro mais bem acabado no sentido de proporcionar, em certa medida, uma síntese das experiências que se desenrolam na Coleção Antena. Simples, direto, Luiz Felipe em ´Inverno Dentro dos Tímpanos´ constrói narrativas onde a apreensão da realidade funde-se com o que há de mais absurdo e sombrio na própria, mesmíssima realidade. Ironia, auto-ironia e uma acentuada camada de cinismo de um narrador solitário que se contamina, quase, com uma condição de doença do mundo urbano e cinza.
Kafka Edições dá bom exemplo de que a junção de bons escritores, organização e uma idéia de projeto editorial, se bem conduzidos, colocam as coisas nos trilhos, põem o mundo para funcionar. Se alguém anda animado com a idéia, veja o site da editora, adquira os livros, entre em contato, troque informações. Já que estamos todos animados com o desejo do livro: mexa-se! Aliás, nem tudo é tão absurdo e impossível como parece. Será?
Carlos Augusto Lima

notas para um livro bonito

agüente se flechas e relâmpagos
estouram as retinas
se pregos enferrujados ferroam os tendões.
agüente se pistolas se cravam nas costas
e arpões crêem que você não passa
de um mostro marinho.
agüente se a escuridão em febre
abre abismos com gárgulas e mandíbulas
sob os tornozelos.
agüente caso a guerra apavorada
arrebente entre bárbaros e samurais
enquanto você vela flores distraídas na primavera.
agüente flamboyants desprezados por pássaros
e uma ilha afundar feito o navio pirata em chamas.
agüente o amarelo do céu
pétala a pétala escalpelado
e a manhã perdendo de si as horas da chegada.
agüente o banho que é armadilha de fogo
e cacos de garrafa mastigando
os mais discretos pesares.
agüente tubarões e morcegos
perfurando os tímpanos
e os joelhos retorcidos feito árvores
no pomar das dores.

canções que afagam condenados

Uma quase mulher

mulher
você entrou na minha vida
como quem faz a ferida
morde sopra e diz que não
eu fui a ilusão malsucedida
você foi a chuva miúda
que alagou meu coração
eu tenho que poder amar de novo
meu amor é meu socorro
e isto vai acontecer
você fugiu e desistiu de tudo
se eu não era do seu mundo
era só você dizer

como se pode amar uma pessoa
uma mulher que não soa como tal
mas como fã
uma quase mulher como se ama
se ela nunca quis a cama
se ela não quis a maçã
meu deus que sonho louco que eu tive
pus meu carro num declive
sem sequer o freio de mão
e amei como se o amor
fosse o esteio da vida
sem mais receio
esse amor não quero não

procuro compreender se eu mereço
o que não teve nem começo
nem história nem perdão
mulher essa canção é pra lembrar
que eu não vou mais lhe procurar
que agora eu vou me dar a mão
Sérgio Sampaio
álbum Cruel

segunda-feira, 27 de abril de 2009

pecinhas para uma tecnologia do afeto

Peixeu
...sei que lhe doía aquilo que menos parecia doer.
Mas a vida é mais o silêncio
que nos engole como um enorme peixe
do que as repetidas e profundas
palavras daqueles que dizem nos amar.
(Efraim Medina Reyes)
Os sapatos dele são dois aquários. Presente dela. Os brônquios dão-lhe broncas em forma de tosses, crises de tosses. Seu casaco e sua camiseta são, igualmente, aquários, um dentro do outro.

A Tristeza... ela tem aqueles olhos envenenados pela dor dos outros. Mas pra ela eu sou um nada, um cílio úmido no rosto. Estar com você não é destruidor, é só triste como o tempo retido entre pálpebras que se fecham lentas... Peixe eu, peixe eu, peixe eu, Peixeu paixão. Tem que ter um jeito de resolver isso. Não quero essa carga. Ela é minha? Bulshit. Estar com ela é como ter companhia pra ficar sozinho. Lembro quando você era uma coisinha do tamanho de um girino, uma Tristezazinha perdida no temporal. Uma Tristezinha encharcada, completamente sozinha, esquecida no dilúvio. Mas eu já estava submerso, eu era incapaz de ouvir todo aquele barulho ao redor. Até que você meteu suas ventosas em mim e... A Tristeza ela tem esse poder. Ela encosta em você com aquelas mãos lisas, lisístratas, com aquelas mãos a Tristeza finca as unhas e vai entrando, modificando teu corpo. A Tristeza faz moradia em você, a Tênia, ela perdura dentro do sangue. De vez em quando você tenta se livrar, você chama a Tristeza na chincha, pega ela pelo colarinho: Sua filha da puta, me deixe em paz! Ai ai, geme a Trizteza, como você pode ser tão cruel com essa tua velha amiga?

Até esse momento ele deteve as mãos nos bolsos. Agora as tira e há membranas natatórias entre os dedos das mãos.

Peixe eu, peixe eu, Peixeu paixão. Eu sou um peixe porque não existe terra, existem Vilas Velhas que um dia foram fundo de oceano. E daqui onde estou não posso sequer enviar um postal de espantos, porque a umidade amolece os papéis, tudo esfarela.

Ele tira os sapatos, as meias, estão tatuados na barriga dos pés peixinhos, um cavalo marinho e o nome real da pessoa que aqui ele chama de Tristeza.

A Tristeza é uma peixeira afiada. Os olhos da peixeira são de uma alvura quase indolor, mas em certas ocasiões tornam-se verdes, é quando ela ´tá com fome de sexo. Se um peixe conhece o fundo das águas, eu posso retê-los depois de tê-los visitado por dentro. Não sou um peixe de rio, ou mar. Sou um peixe de neblina. E estou falando de uma tecnologia do afeto, uma espécie de coisa que permita que mesmo sem metáfora, sem linguagem, que permita que a gente compreenda que trepar é fazer poema, e que ir embora é assassinar. Quando a Tristeza me assassinou ela foi abominavelmente lenta. A Tristeza conhece mecanismos de tortura. Mas por quê, por que você está fazendo isso comigo? Porque com você o amor seria sério demais, eu teria que me comprometer, e eu tenho medo que tudo acabe mal. Mas Tristeza, vamos pelo menos tentar... Não! Não, é só o que sabe me dizer a Tristeza. Nãos. Perdoe se é um peixe-morto que envia esse postal de águas. Eu fui morto de tal modo que virei isso, uma boca aberta que não respira. Daí as sucessivas broncas que levo dos brônquios. Tristeza harpa, Tristeza harpia, Tristeza arpão. Se pudesse eu ficaria o tamanho do oceano olhando pra você. Eu ia olhar tão fundo, eu ia olhar até arrebentar os olhos como eles fossem duas lâmpadas que pá pééém.

Quando ele tira o casaco e a camiseta, estão tatuados no peito, na barriga, nas costas peixes, peixinhos, um tubarão e o nome real da pessoa que aqui se chama Tristeza.

Então depois seria nisso um céu propício para o sofrimento, mas o sofrimento de um sofrer tão bem lavado de escuridões, de uma limpidez de trevas tão contaminadas, que nesse buraco negro, você que é irmã siamesa da angústia, do medo, da auto-piedade, você que é essa fossa que não fede porém é intragável, você começaria a se transformar em outra coisa, e eu, minha Tristezazar, eu deixaria de sentir dor. Deixaria de sentir dor, e mesmo assim não seria um azulejo, já que azulejos não sentem dor, mas deixaria de sentir dor e continuaria sendo um peixe, eu, peixe, Peixeu paixão. E me olharia no espelho que é você, esse abismado mar revoltoso e revoltante, mas nem mais verdes seriam as lembranças de minhas retinas nem menos fatigadas. Até que, paixão, já morto, perguntaria: espelho, espelho eu, espelho sente dor?

notas para um livro bonito

os olhos com neblina impregnados.
domingo
dia de irmos a pé para paz.
caminhar como voam os pelicanos
pairando
quando o céu é um deserto
bem dentro aqui.

domingo, 26 de abril de 2009

especulações sobre o amor simples

amor não correspondido
é doença psicossomática.
permita-me reformular: na minha opinião
amor não correspondido não é amor.
ou até, pensando melhor
acho que só é amor quando a realidade
perde a insignificância, entende?
engraçado, o amor tem ouvido absoluto
mas é surdo a certos chamados.
e se o amor for uma pedra maciça com
um oco por dentro?
agora se me confundiu tudo, ai ai ai
preciso pensar.
não! não pense.

de uma entrevista de vitor paiva para o click (in)versos

"Li dois poemas do Drummond que são definição do meu ateísmo. O primeiro diz assim: ‘E se Deus é canhoto e criou com a mão esquerda? Isso explica, talvez, as coisas desse mundo’. E o outro: ‘Tarde, a vida me ensina esta lição discreta: a ode cristalina é a que se faz sem poeta’. Eu venho de uma criação católica onde os pressupostos são jogos de poder, mas tendo a escolher o que é mais livre. Sou a favor do corpo. Paraíso é o caralho! Tenho fé, no ser humano, na existência e que o mundo pode ser melhor." (Vitor Paiva)

sábado, 25 de abril de 2009

uma epígrafe

"Quando tudo, mas tudo mesmo, irrita, é você que tem problemas, não o mundo. E o que é pior: o mundo sabe disso." (Fal Azevedo)

entrevistas

Em 16 de fevereiro de 2008 dei essa entrevista pra coluna Porque hoje é sábado, do Dante Mendonça, no Estado do Paraná. No impresso saiu com algumas edições por causa do espaço determinado, sou falastrão, acabou que o Dante teve que me tornar mais sintético. No blog do Solda saiu na íntegra, é ela que reproduzo aqui. Agradeço muito aos dois.

"E dando os trâmites por findos
Porque hoje é sábado
Há a perspectiva do domingo"
(Vinícius de Moraes)

Nome: Luiz Felipe Leprevost (e mais todas as variações e apelidos com que os outros me chamam).
Profissão: Se você perguntar se sou escritor, vou dizer que trabalho com teatro. Se você vier com essa de teatro, vou falar que sou músico. Se você disser que sou músico, vou dizer que sou (mas não seja louco de me pedir que dê uma canja).
Sonho de outra profissão, com outro nome, o que seria? Tenho profunda admiração por aqueles caras que vão de planeta em planeta cavalgando unicórnios, e também por esses mergulhadores que se casam com sereias.
Dando a sexta-feira por finda, um fim de semana perfeito: Desembarcar na Cidade Maravilhosa pra jantar com uma certa atriz, já que com ela respirar fundo é entrar no fogo da sua saliva.
Serra abaixo ou serra acima: Gélida é o meu lugar, Gélida é a minha cidade, Gélida é a minha questão.
Um sábado de chuva: Sem guarda-chuva (no verão), e o rancho de algum amigo com fogão à lenha (no inverno) — contando sempre com a certeza de que por aqui temos todas as estações do ano num intervalo de menos de duas semanas, quando muito.
Um domingo de sol: Uma boa caminhada com meu pai por bairros bucólicos (até o meio-dia), durante a tarde cafézinho e torta de limão com a turma, e talvez cinema assim que o sol se finde. Parece-me que a tranqüilidade é uma boa companhia.
O que uma pessoa não precisa para passar dois dias com você: Roupas demais.
O que você não dispensa nem mesmo com uma velho calção de banho: Um pequenino livro de poesias, talvez o Buquês de Alfafa, do Jorge Barbosa, publicado pela Kafka edições baratas.
Uma música para ouvir hoje: Blues do Guardanapo, do CD A Solidão não mata, dá a idéia, do meu bróder Alexandre França.
Outra para ouvir amanhã: Gilda, parceria do maestro Otávio Camargo com o poeta Thadeu Wojciechowski, pelo que a Gilda foi e pelo que o Otávio e o Polaco da Barreirinha tem feito de belo (sempre digo que se milagres existem, nada mais são do que algo semelhante a parceria desses dois).
Um instrumento musical gostaria de tocar numa balada de sábado: A guitarra do Hendrix... não, melhor ainda, o violãozinho do Dylan...?
Um livro na estante: O Encrenca, do Manoel Carlos Karam, e tirar de lá sempre que estiver necessitado das minhas doses de Invetral, ou com saudades da Belbeltrana, ou quando achar que sou capaz de arrancar o prego Daqui-não-saio-daqui-ninguém-me-tira daquela maldita árvore que fica dentro das dependências do About, o bar sem janelas.
Um livro na cabeceira: Senhor, do Jamil Snege, é que sou de rezar antes de ir pra cama.
Um filme de ontem: Em primorosos roteiro e direção de Leos Carax, Les Amants du Pont-Neuf, com Juliette Binoche e Denis Lavant atuando de modo tão radical, que o expectador chega a se perguntar Como foi que eles saíram ilesos dessa?
Um filme de hoje: Juno, com direção de Jason Reitman. Ellen Page é uma guriazinha dum carisma raro, ficou lindinha com aquele barrigão de grávida comendo trash food.
O restaurante de sábado: Madalosso (o grande), pra comer frango e polenta até me arrepender.
O almoço de domingo: Talvez o salmão com legumes do Cantina Jacobina.
Um copo para o espírito: Vinho tinto, que abre o canal condutor pra que se aproxime aquele que alguns conhecem por Dioniso.
Metade cheio, metade vazio: O caminho do meio (ainda assim com Dioniso).
Saudades de um sábado qualquer: Eu gostava de quando, andando igual um pingüinzinho com a cabeça cheia de neve, minha vó chegava pra almoçar.
Noite de domingo, o que lhe parece: Que àquele oco sem ecos, logo que você adormeça, restituir-se-há o sumo dos dias maquinais (que venha a segunda-feira!).
Há a perspectiva de segunda-feira, o que lhe dá preguiça: Você sabe, qualquer movimento da Preguiça leva uma eternidade, e quando a eternidade chega ao fim, então a Preguiça nos finca as unhas.
O que assusta embaixo da cama: Nunca mais ter topado com o Bicho-Papão por lá.
Uma frase para fechar a conversa: Só é ilusão aquilo que não esqueço, o resto foi real.

viva o mestre manoel carlos karam

(23 de abril de 2007)

Hoje eu não estou aqui.
Estou ao sul de Alhures do Sul.
Portanto isto é uma gravação.
...
Acabo de comer matambre com salada russa no Café Tortoni e em seguida vou ao Bar Dorrego beber sangria.
Providenciarei sardinhas para dar de comer aos leões-marinhos no zoológico.
Circulei pelas livrarias, comprei Ficciones de Borges, que eu já tenho, mas levo a sério a questão do duplo.
A altura do bife de chorizo, essa é de atacar a vertigem do detetive John Ferguson, aquele do James Stewart e do Hitchcock.
Me dedicarei também à busca do desenho do jogo da amarelinha nalguma calçada.
Caminharei pela Corrientes assobiando um tango, não posso esquecer.
...
Hoje eu não estou aqui.
Estou ao sul de Alhures do Sul.
Portanto isto é uma gravação.


Manoel Carlos Karam

notas para um livro bonito

quem é capaz de manter o sangue-frio
a ponto de se entregar de bandeja
para essa loucura diária em que tudo é incerto?
não passamos de peixes fora da água
com os olhos prestes a explodir escuridões.
aprendo levar porrada e me manter semi-ileso
feito um lutador de vale-tudo
onde tudo vale mas existem regras.
aprendo a caminhar pelas
calçadas sem ser notado, o Senhor Sombra
só que sem a sombra acompanhando.
vou deixando de ter autocomiseração.
vou me acostumando.
eis um bom começo: vou me acostumando.

sexta-feira, 24 de abril de 2009

não sou rei, sou reles

Para os meus do Rio de Janeiro.
ó protetor dos fudidos, dos famintos
dos homens-fera, dos bêbados
dos viciados, dos cuspidos da sociedade
dos desiludidos do amor
dos desiludidos do amor
dos inocentes, dos doentes de solidão
atravessa com tua lança de luz
o peitoral da maldade
o coração da injustiça
já que elas são o próprio dragão
ó torturado, meu guia degolado
ó meu padroeiro
ex-capitão romano, inimigo de Diocleciano
eu quero louvar-te São Jorge
eu quero louvar-te
santo guerreiro ginete
hoje beijo tua medalha
e pras minhas batalhas invoco
teu cavalo branco, tua armadura
cruz vermelha, teu manto, tua fé
me dá forças em minhas Cruzadas
não deixa eu cair na tentação de ser um deles
me ilumina com tuas luas de Abril
eu que não sou rei, sou reles

carta aos produtores

Caros produtores,
não é à contragosto que escrevo essas linhas. Se o faço é primeiro porque amo o teatro. Depois, para citar Constantin Stanislavski como se evocasse forças superiores, amo o teatro em mim e em todas as pessoas. Um terceiro motivo ainda é esse conhecido de vocês, o fato de que preciso e almejo sobreviver de minha arte, de meu trabalho. Vocês têm a caneta que aprova, vocês têm o bom-senso, vocês tem sido muito legais com muita gente, por que não seriam com um grupo que tem feito um trabalho sério, bonito e profundo como o nosso? E nisso não vai modéstia, claro. Saibam, tenho mais dúvidas que convicções. Mas tenho essa convicção, a de que vocês alguma vez em suas vidas tenham se comovido, experimentado um momento epifânico, algum reconhecimento de si naquilo que assistiram. Ou então, tenham se colocado diante de algum desafio, desejado conviver uma obra de arte, uma única e transformadora cena sequer, num truísmo de desvendar suas camadas (as da obra e as suas de ser humano) de compreensão. Ou até mesmo ter sido embalados por melodias, jogos e cores propostos por um grupo de atores que salvaram seu namoro, seu casamento, seu dia, ou sua vida. E vocês ficaram felizes ao presenciar aquele acontecimento. Algo que havia naquela música, naquele ritmo, naquela imagem, naqueles artistas, fizeram com que seus semblantes subitamente, sem que vocês percebessem, se desanuviassem. E dali, após a peça, vocês foram para um café, para o motel, vocês foram conversar a respeito, e aquilo que viram continuou ecoando, eclodindo em seu sangue, em seu coração, na cabeça. E já não havia ferrenhas mandíbulas por perto. Nem nada a exumar. Pelo contrário, vocês estavam completamente dispostos a exaltar a criatividade. Isso que digo não é utópico, acontece todo dia. Sei porque já aconteceu inúmeras vezes comigo. Se assim é também com vocês, ou foi, será, e se será significa que não somos diferentes uns dos outros, nós artistas e vocês produtores, que temos ligadas intrínseca e essencialmente nossas profissões. Estou escrevendo antes de mais nada para pedir que olhem com carinho para o nosso projeto, que não é iludido, embora pretenda muito. A nossa peça se chama Na verdade não era, nela vocês notarão que às vezes a profusão de como é narrada a estória faz com que se articule uma hiper-racionalização, porem tal ação tem como resposta imediata a certeza de que o último grau de lucidez também produz delírios, uma liberação entusiasmada, uma festa para inteligência e para as sensações. Isso porque as atrizes sabem contar essa estória com a voz molhada de bondade. E contar uma estória dessa forma é o mesmo que cantá-la. A nossa peça é uma cantiga de amar a cidade, com tudo que há de extraordinário nela. Mas isso de desvendar o extraordinário só foi possível depois que olhamos muito e atentamente para o ordinário, para o mundano. Ou seja, estamos na tentativa de abarcar o máximo de sutilezas e revelações possíveis. Deixe que lhes fale, o teatro é como os relacionamentos, não é possível que o desempenhemos sozinhos, exige convivência, cobra paciência, construção afetiva. Isso depende de todas as partes, estamos sinceramente tentando fazer a nossa, mas precisamos de sua ajuda, queremos repetir um sem-número de vezes a mesma ação, pelo motivo de que ela se transforma a cada dia. E por que a ação se transforma a cada dia? Porque na peça Na verdade não era as atrizes se aproximam da consciência da platéia apresentando-lhe algo que ela (platéia) reconhece imediatamente, cenários comuns a todos, estórias com desdobramentos nem tão impossíveis assim, porem surpreendentes. Intervindo na imaginação do público, promove um jogo em que a cooperação instintiva e não menos racional pede intimidade, é um pacto, como se fossem segredos que agora todos comumente compartilham. O rito é compartilhado, a aventura é de todos, cada um é autor e executador do espetáculo, cada qual levará para casa um Na verdade não era particular. Vocês sabem, só se pode afirmar a relevância de uma obra para a sociedade se a obra for uma ação. Assim, o artista instrumentado, o que passou por inúmeros processos, o que se debruçou diante de seus estudos, que treinou as técnicas, as engrenagens físicas e psíquicas, o que desenvolveu um olhar particular em relação as coisas, visão de mundo, esse para além de ser um artista pode que seja alguém mais humanizado, compreensivo. Certamente não me debruço a escrever essa carta com o intuito de fazer sucesso. Mais que sucesso pretendo fazer sossego, e isso não é só um trocadilho idiota. É que estou convencido que quando alguém me dá o privilégio de dedicar seu tempo a uma peça que escrevi, permitindo que eu retribua proporcionando-lhe acesso a ternura que há atrás de toda aquela estrutura, isso para mim é fazer sucesso e sossego ao mesmo tempo. Se o teatro, no que tange questões práticas do dia-a-dia, mesmo em termos civilizatórios, para alguns é menos relevante do que, por exemplo, a hidráulica que deu um jeito da água jorrar pela parede de qualquer apartamento, mesmo assim sempre haverá aqueles para quem não é possível passar mais de sete dias sem testemunhar um ato cênico, seja no cinema, na literatura, ou no teatro. Mais que um hábito, para esses vai que ir a acontecimentos cênicos, sem receio do clichê, é uma necessidade, quem sabe até mesmo orgânica. Daí que o teatro não funciona como um interruptor de luz, é verdade, um liquidificador, ou um travesseiro, mas certamente cumpre papel decisivo naquilo que venho chamando de tecnologia do afeto. Seres humanos pensam, riem, choram, apaixonam-se, eis o ponto nevrálgico, nisso consiste a necessidade de que falei. Sem isso, que é visceral, e o cérebro no fundo é um grande estômago, sem isso não há o ser humano. Não podemos salvar as personagens de uma peça. Talvez não possamos sequer salvar o homem e a humanidade. Mas não devemos esquecer que a desesperança é só um jeito de imaginar, é um dos vieses da criação. Há outros, talvez investir tempo em compartilhar experiências seja o melhor jeito de não deixar que as pessoas, muito mais que as estórias ou a arte, se acabem. Assim, queridos produtores, fico aqui quebrando a cabeça. É preciso escrever algo sobre mim, sobre a peça, sobre o grupo que soe vendável, comercializável. Muito bem, não sei o que pode ter mais valor, mesmo comercial, do que dizer a verdade. Com verdade nos olhos e nas mãos que dedilham o teclado, faço-me a pergunta: Por que acredito tanto na peça Na verdade não era? Porque para mim a literatura tanto quanto o teatro são a realidade. A arte é um modo possível de operar o real. A vida, creio, a estamos reinventando, reinventariando a cada dia. Pois bem, assim eu consigo viver. Assim eu sou capaz de promover uma exigente e perscrutativa declaração de amor. Não uma declaração a uma pessoa apenas, mas também a ela, tanto quanto a muitas outras pessoas e, por que não?, a seus duplos, em espírito e psique. Não obstante, Na verdade não era é uma declaração de amor à ficção, à essência de inventador de estórias que há no homem, a sua capacidade lúdica de se entreter, de seduzir o outro, de deduzir, de confiar. O que não sabemos nomear talvez seja o que nos salva, o que salva as atrizes e a platéia quando interagimos nessa comunhão pública, nesse lugar que é o que está entre nós e a platéia. Eis o lugar que como escritor almejo, eu quero ser esse lugar público. Porque em tal sítio não existe mentira, ela não se sustenta, ali é quando o labor da arte produz efeitos cirúrgicos, silenciosos no coração, no sangue, no cérebro daquele que comunga o mesmo ato, o da esperança por acreditar que de algum modo isso nos faz melhores para continuar. Nisso está minha declaração de amor, agora dissipada e, porque, artistas profissionais ou não, somos todos sensíveis, vivemos para criar e somos criados. Essa minha carta, amigos, é um bumerangue, algo que vai e volta e que não tem dono, um bumerangue poético, porém demasiado real, uma coisa chamada lugar público.
04 de abril de 2009 – domingo.
Curitiba.
Santa Felicidade
.

pecinhas para uma tecnologia do afeto

Uma fossa

O cenário é uma fossa. Ele está na fossa e a fossa ele é assim: ele tem os cílios úmidos. Ele está na fossa e a fossa ele é assim: ele dá o texto feito um afogado. Ele está na fossa e a fossa é assim: ele não é um aqualouco que fazia acrobacias e se deus mal, não é isso. Ele está na fossa e a fossa é assim: ele dá o texto com punhados de água salgada na garganta. Ele está na fossa e a fossa é assim: ele faz isso na frente de todos, ele abre um saco de sal e mistura na água que está na jarra transparente. Ele está na fossa e a fossa é assim: então ele dá o texto com punhados de água salgada na garganta.

Ele está numa fossa e a fossa é assim: ele dá o texto baixinho, como alguém que não quer espantar as ausências.

...falo baixo agora depois de levar a vida no berro agora falo baixinho que é pra não espantar as ausências acho que é assim sussurrando que a gente deve falar com Deus, e quem está ausente é assim igual Deus um dia eu cantava e fazia o nome do meu amor saltar pra fora da boca um dia eu cantava e é quando Deus é capaz de nos provar que não existe, e assim, se ele prova algo, então é porque ele existe, porque só o que existe pode provar coisas mesmo ausentes os ausente existem ausentes são isso: o complicado, o impossível complicado, impossível, dirijo-me a você, converso com, convirjo você está aqui, ausente você está aqui mais do que se aqui estivesse é um jogo de esconde-esconde não parece óbvio?

Súbito entra em cena a canção Lithium, do Nirvana, muitíssimo alto. Ele é obrigado a repentinamente berrar.

Nas horas que antecederam a alvorada de terça-feira, Kurt Cobain despertou em sua cama.

Lithium sai de cena. Ele volta pra fossa. E a fossa é assim.

...não é tão óbvio assim estando você ausente agora agora estar aqui mesmo que pra mim isso seja uma verdade porem estando ausente e por isso agora agora estando aqui igualmente me parece óbvio e inédito que nada agora a não ser o agora pode conter caralho a gente deve estar brincando de o gato mia...

Entra Lithium alto demais. Ele é obrigado a berrar qual um roqueiro alucinado.

Os travesseiros ainda tinham o perfume de Courtney. No quarto, o aroma se misturou com o cheiro ligeiramente picante da heroína cozida. Esse também era um cheiro que o despertava.

Ele cansou. Lithium sai de cena. Ele volta pra fossa. E a fossa é assim.

...você tem mais beleza que estilo um dia você ainda vai ter estilo por enquanto a beleza te vitimiza a beleza não é boa com as pessoas ela apodrece você trate de adquirir estilo estilo o mais rápido possível...

Longuíssimo silêncio. É um transe dele.

Depois, ele berra feito um visigodo alucinado.

...faaalllaaaa!!!!...

A fossa novamente. E a fossa é assim.

...se bem que eu considero que mesmo esse silêncio engolido por uma boca por uma buceta dentro de mim...

Ele dá um jeito de ilustrar para platéia essa boca-buceta dentro dele.

...esse silêncio típico das ausências cheias de cimento esse silêncio esse cimento é deveras comunicativo...

Entra Lithium ainda mais alto. Ele é obrigado a berrar como um porco ferido na nuca.

Courtney estava inconsolável. Quando os policiais finalmente deixaram o local, com apenas um guarda de...

Lithium sai. Ele volta pra fossa. E a fossa é assim. Súbito Lithium retorna, ele e Kurt medem forças.


...segurança como testemunha, ela reconstituiu os últimos passos de...

Sai Lithium. A fossa outra vez.

...eu afirmo, eu pergunto e ele responde...

Entra Lithium ainda mais alto. Ele versos Kurt.

Entrou na estufa, que ainda tinha de ser limpa, e mergulhou as mãos em seu sangue.

Sai Lithium. A fossa.

...você estando fatiar meu sofrimento em postas eu afirmo e ele responde você está tentando fatiar meu sofrimento em postas sim eu afirmo eu pergunto e ele responde sim o silêncio responde eu afirmo eu pergunto o cimento-silêncio responde responde silêncios mas responde.

Entra Lithium com Kurt. A música vai até o fim. Ele espera Lithium acabar. Depois, sussurando como que para não espantar as ausências, ele diz.

No chão, ajoelhada, ela rezou e gemeu de dor. Erguendo as mãos cobertas de sangue para o céu berrou:

Isso é quase inaudível.

Por quê?

três epígrafes

"Uma das mil razões pelas quais parei de ir ao teatro por volta dos vinte anos foi que eu me chateava profundamente com o fato de ter de ir embora só porque o autor resolvia mandar baixar a droga da cortina." (J. D. Salinger)

"A beleza não é um estilo, mas o supre bastante bem, até que apodrece." (Efraim Medina Reis)

"Não tem ternura, só cartilagens." (Jamil Snege)

balbucios de blues

Para Mickey Rourke
às vezes o futuro é um desaforado
para quem tem a alma rasgada feito um pano de chão
retorcida feito ferragens num acidente grave
esgarçada feito um pedaço de bife jogado aos leões.
tem dias em que o futuro é igual a tudo o que gasta
envelhece, enferruja.
é um moedor de ossos duros de roer.
sempre tem esses dias em que o futuro é um anestesista de
retalhos de histórias de amor viciadas em acabar e não ter fim.
em que o futuro é um blues buraco negro em que
a gente se embebeda de doses da noite branca
feito gelo na goela.
tem vezes em que é assim
a gente sequer nota os olhos roxos saltando da cara
já nos acostumamos com hematomas latejando silêncios.
o futuro, de vez em quando
é quando nossos rostos sorriem sem nos darmos conta
que estamos desfigurados.

balbucios de blues

não se anestesia a realidade
tampouco se sobrevive a tanto.
necessito redenção? não.
apenas encostar a cabeça no travesseiro
e deixar de sonhar.
mas tiros escandalosos são cuspidos
ferroadas de luz, choques fedorentos
o amargo dos sons invadem o apartamento e
também não são sonhos.
antes houvesse algumas oras diárias de
escuridão na escuridão.
mas todos só querem o mundo florido e sonoro
feito um parque de diversões.
eu devo ter comprado muitos ingressos
para o trem fantasma.

balbucios de blues

põe a agulha com cuidado em minha veia
que é para não ficar roxo — são litros e litros
de soro e medo.
mesmo morto não vou ter conforto.
antes de ligar os aparelhos respiratórios
em minhas narinas
abre a janela, quero o cheiro das buzinas e
da lingüiça do Baixo Gávea.
há luas lá fora?
luas como nos finais de tarde de outono
nos filmes rodados em Nova Iorque.
se for para morrer definitivamente
quero que seja pela manhã
não suportaria que tudo acabasse naquela hora
em que os homens retornam a suas casas
mais tristes e menos sérios
com a gravata ainda esquecida no pescoço.
escuta, telefona para minha mãe
sê sutil com ela, fala que não quero nada
apenas que venha me apertar as mãos
e me beijar os olhos, eu também sou o Cazuza.
não se preocupa, meu pai com certeza
resolverá os problemas com a gerência do hospital
caso meu plano de saúde não cubra as despesas.
e se ele esmurrar algum enfermeiro, perdoa o velho
não terá sido por maldade — são litros e litros
de medo e soro.

quinta-feira, 23 de abril de 2009

notas para um livro bonito

para meus amigos.
eles sabem quem são.
quem tem amigos sabe que a mesa do
banquete acabará pequena.
come-se mais a conversa, as risadas,
as canções do que propriamente
o leitão à pururuca.
fim de tarde, e há aquela maciez só conquistada no
desenho de alguns pássaros que o azul encardido do
céu retém para si
já que as noites são dos morcegos.
aí, quando a mesa volta a ser um imenso campo vazio
ecoando o adeus de um, o tchau de outro, o até breve
você se coloca a meditar: o que sabem afinal de pássaros
céu, paisagens, fins de tarde e morcegos
nossos famintos e falíveis órgãos internos?
mais vale rir de si para si lembrando as bobagenzinhas que
provocaram eloquentes discussões.
nisso vai uma das formas do amor, pois não: bobeiras que
viram grandes problemas que, no fundo, são ainda
ínfimas bobeiras, e ainda bem.
funciona tanto com amigos quanto com amigas
em conversas sobre política e
lamentações afetivas etc, se é que me entendem.

notas para um livro bonito

as coisas só acontecem de três maneiras:
da pior, da melhor, e igual.

balbucios de blues

gosto quando chove.
é como se cada gota fosse um recorte da noite
roçando contra o hálito das luzes nos postes.
é como a ferrugem nas cordas do violão
deflagrado por balbucios de blues
pingando nas pupilas.
a chuva me fissura a mergulhar em poças d´água
a procura do avesso dos pulmões sujos de nicotina.
eu gosto quando chove.
a chuva me conduz ao frescor dolorido
do dente nascendo na boca do neném.

notas para um livro bonito

o passo a passo vai que é epopéia homérica.
o balbucio pode que contenha rapsódias.
e a pureza sobressalta ratos, cobras, baratas
e demais peçonhentos.

notas para um livro bonito

tanto ódio quanto amor são primitivos.
mas só o amor merecia ter chegado aqui nos
vagões daquilo que
os historiadores chamam evolução.
meu coração era grande.
como foi que me deixei ser apanhado?

pecinhas para uma tecnologia do afeto

Sala vip

A luz é fluorescente. Há uma manequim em cena. A cabeça da manequim é uma caveira, não necessariamente humana a caveira. A manequim está nua. O texto que a atriz fala durante a cena, o texto está pichado à mão no corpo nu da manequim. Embora a manequim pareça imóvel, por dentro a manequim estremece. A manequim pode ser que não mexa uma pálpebra assim para quem a divisa da platéia, mas a atriz que está ao lado da manequim sabe, ela sabe que a manequim tem um sangue que se debate em meio as fibras de carbono. A manequim ela sofre, é como se ela tivesse espírito e o espírito da manequim estivesse sofrendo um ataque epiléptico. Por sua vez, a atriz que está ao lado da manequim, a atriz está demasiado calma. A atriz fuma elegantemente. A atriz está também igualmente vestida com elegância, a atriz veste terno e gravata. A atriz, embora calma e elegante, está suja de carvão, fuligem, poeira escura.

E quando eu era a menina sem sustos e eu ficava deitada na cama à noite pirando sobre as inusitadas ações que faria ao longo da vida e ia ser assim a minha vida um vaudeville serelepe ou de outro jeito não importava ainda melhor e não importava tudo seria a liberdade e mágico havia tudo pela frente e o tudo pela frente era possível quando eu era uma nenininha vestida de rosa com laços e tranças nos cabelos e o mundo era as coisas singelas que você pode encontrar no mundo e o mundo é uma doce homenagem a você e santo anjo do senhor meu zeloso guardador tenha bons sonhos e o pônei que você cuida nos finais de semana o verão chegando as férias e são tantas partículas de luz há tanta luz e sol e lua corpos celestes vega três marias sirius beta crux betelgeuse altair e o mundo todo aqui embaixo e a porta dos mares mas foram eles os extraterrestres e foram eles os terrestres extraterrestres e foram eles eu quero deus fora disso DNA engenharia genética fora disso que é um evento e tanto para biologia mas a biologia fora disso ou então os cientistas o que resolve então se a terra é redonda se a terra é azul outra vez as ondas dentro dos tímpanos é o banjo é o banjo outra vez átomos quebrados feito uma viga de concreto armado onde estão agora os cientistas os caras que ganharam o nobel da paz quando eu era a menina sem sustos eu era a menininha vestida de rosa e uau então é assim que é a sala vip prometida e eu saio de lá debaixo dos escombros e não sei quais ossos estão quebrados e vejo e identifico carcaças de automóveis freezers computers animais árvores pessoas carbonizadas e ratos sobreviventes onde estão as ratoeiras quem caiu na armadilha e mercadorias que já eram cascas de banana sacos de lixo que pingam feito magma e a música um banjo no ar e não não é música são arames farpados e aranhas e insetos e inseticida queimado gases metano carbônico e onde foi parar minha amiga satânico tudo é tão minha amiga que segundos atrás esfregava com delicadeza o batom bordô nos lábios que não eram lábios eram sorrisos e os sorrisos se nem morcegos voam por que não eu por que um avião quando o cara do seguro quis me vender um abrigo antinuclear quando eu podia ter treinado as técnicas tecnologias os níveis que eu devo saber k L M N O P Q esses são os níveis que eu devo saber 2 8 18 32 32 18 pula o 8 e vem o 2 e eu não retornei aqueles torpedinhos avisando que não que sou um cometa porque deve ter sido a cegonha ela quem me trouxe e como mas se ainda estou aqui estou aqui se é porque sou uma mulher de ferro.

notas para um livro bonito

Se Deus não existe
por que existe a frase
Se Deus não existe?

pecinhas para uma tecnologia do afeto

Algodão doce

Ela dorme em pé. Tem mais de 70 anos que ela dorme em pé. Ela tem mais de 70 anos de idade, talvez ela tenha 140 anos, mas ela parece uma menina de 20 anos no máximo. Ela é baixinha, não é uma criança, mas quando quer consegue convencer de que sim ela é uma criança que dorme em pé. Ela nunca deita. Não é fácil deitar seus 140 anos sobre um colchão. Também não é fácil carregá-los sobre os tornozelos, mas é mais fácil que deita-los os 140 anos. Certo. Além disso, há mais de 194 pacotinhos fechados em cena, são pacotinhos de algodão doce.

se quisesse
eu podia ´tar gargalhando
exultante
tem dias já
que não chove cinza nem
desaba calor demais
desse céu de

se quisesse
eu podia ignorar
meus pudores de ser feliz

Ela abre um pacotinho e come o algodão doce rosa.

mas eu
sei ser feliz?

não sei

digo, não é que eu não saiba
é só que não sei se sei
e nem vou perguntar mais depois dessa
última vez

olha

Ela levanta o vestido que é mais uma nuvem cinza do que um vestido, ela levanta a nuvem e mostra os tornozelos avariados.

eu tô satisfeita
pode apostar
eu tô muitíssimo satisfeita
em poder caminhar pelas ruas sem
perder o equilíbrio
eu tô
quem sabe
até agradecida ao universo, vai saber
por ter ossos, músculos
colágeno, nervos, tendões, gengiva
e esses órgãos

Do meio dos algodões doces ela retira um saco plástico, sujo, nojento, sanguínio.

quase
bem protegidos

e embora
eu não seja nenhum Einstein
esse cérebro, sim
é deveras aventureiro ter
esse cérebro
que me ajuda a sentir melhor
e mais profundo

esse objeto

Mostra uma edição de A Origem das espécies, do Darwin.

é o meu coração
no mês que vem não sei
o que será dele, digo
do coração
não da teoria desse autor

nesse mês
enquanto leio esse coração
meu cérebro está sentimentalóide
o livro não é sentimentalóide
objetos não são sentimentalóides
teorias não deveriam ser sentimentalóides
o meu cérebro, no entanto
o meu cérebro é sentimentalóide

por sua vez
meu coração é
um trabalhador braçal
de fato exige muque
exige braço
a leitura de um coração como esse

não pense que
peguei na minha
biblioteca
ao acaso
esse objeto grosso
repleto de magia
pesado de genialidade
não pense que
fiz isso de pegá-lo
só pra fazer uma cena
em que é necessário
um livro grosso
caudaloso
místico, não
eu
de fato
estou falando
desse coração chamado
A Origem das espécies
esse irmãozinho mais novo
da Bíblia

meu cérebro
é sentimentalóide
meu coração
um trabalhador braçal
isso eu já disse, mas
eu não disse que
sendo meu cérebro um
bobão-babão
e meu coraçãozinho
um estivador
com os dois um de bem
com o outro
eu posso filosofar
posso até bancar a poetisa
posso gritar vivas para o corpo
já que o corpo é
um brinquedo e tanto

o corpo é
um brinquedo e tanto
isso eu descobri
com meu primeiro namorado, Darwin
com ele eu tinha uma fábrica
de suco de saliva
era só juntar língua
com língua
e a gente tinha que
engarrafar e
comercializar o suco

ai ai

ai ai ai

se quisesse
eu podia mesmo
estar gargalhando

nem vou fazer
uma lista de
males que eu não tenho
e de sortes que eu tenho, sei lá
bênçãos, vai saber

lista de coisa nenhuma
vou fazer

Eis o momento para uma longa pausa.

uma lista
de coisa nenhuma
vou fazer, mas
por causa de tudo
que eu disse, acho que
se faz necessário que
eu diga que
não sofro de diabetes

Ela fala isso sofrendo, enquanto começa a tentar deitar.

não sofro de diabetes
não sofro de dia
não sofro de
não sofro
não
sofro

Ela tenta, mas não consegue deitar. Mas uma vez em 140 anos ela não consegue deitar. Ela já está chorando.

talvez seja por isso
que nesse momento eu
esteja tendo esse
surto de
algodão doce







quarta-feira, 22 de abril de 2009

duas epígrafes

“Nós dois esquecemos naquele momento que nós dois pretendíamos a paz dentro da violência do mundo, e sem perceber a chegada da paz nós dois estávamos alojados dentro dela.” (José Agrippino de Paula)

“Você se apaixona, jardineiro?
Não, só me imbecilizo.”
(Erri de Luca)

notas para um livro bonito

não é possível haver aura naquilo
que não contém algo pulsante, endógeno, enraizado.
o que é postiço não se ilumina,
tem apenas um invólucro bonito
mas ineficaz à beleza.

notas para um livro bonito

lembrar não doeria
se a lembrança não aprisionasse
o que esqueci.
o desespero da memória
é reinventar esquecimentos.