Dias nublados
E os aromas da cozinha da chácara, a galinha de panela, a polenta, os
bolos (de algum modo, ajudam na minha profissão) colados em mim por dentro. Os
cheiros invadindo a casa, impregnando cortinas, toalhas, roupas de cama. Minha mãe, tia Ruth e Elza não saiam da cozinha. Na sala,
esperavam as bocas, estômagos ávidos. Faziam o almoço de sábado sem nunca antes
terem tido dores nas pernas. As galinhadas caipiras, a macarronada. Passavam a
manhã preparando, depois nos assistiam na dança da devoração. Nas horas seguintes,
voltavam à cozinha conviver travessas e panelas, ervas, molhos, pia, fogão à
lenha. Depois, com a doença da minha mãe, isso mudou. Embora meu pai seguisse
no intuito de manter a tradição dos almoços, para ele
sagrados.
Naquele sábado estávamos todos um pouco mais animados. Ainda assim um
constante clima pesado no ar, escondendo-se atrás das cortinas. Era minha
obrigação de filho esperar unido à família a decadência da mulher que me
colocou no mundo e cuidou de mim. Apesar de quase não sair mais da cama, contente
com minha rara presença, esforçou-se para sentar à mesa conosco. O médico tinha
dado a ela pouco tempo de vida. Estava animada, conversou, fez graça. Sua
risada, embora fraca, devolvia à casa uma aura acesa. Cabelos mal penteados, cheirava
a Leite de Rosas. Fartamo-nos com a deliciosa posta acompanhada de spaghetti.
Tia Ruth perguntou se queríamos mais. E meu pai, servindo-se de vinho
estou satisfeito.
Tadeu, Manoela e eu, quase em coro
também estou.
Minha mãe praticamente não tinha tocado na comida, mas também afastou o
prato de si na direção da tia Ruth, sob os cuidados de meu pai
você não comeu nada, Gica.
estou sem apetite.
Tia Ruth raspou os restos de todos num único prato. E fez uma pilha,
colocando o que continha os restos em cima dos demais. Então levantou para
levar a pilha para cozinha. Então minha mãe
vou ajudar você.
não precisa, Gica.
sempre lavei a louça, não vai ser agora que você vai me dizer o que posso
ou não fazer.
Meu pai tentou dissuadi-la. Não teve jeito. Ela seguiu tia Ruth. Manoela
levantou e também foi para cozinha.
A cabeça de minha mãezinha não estava boa. Ela vinha tendo lapsos de
memória, apagões. Irritava-se com facilidade. Na verdade, raras vezes lavara a
louça. Quem fazia isso sempre era Elza, que naquele sábado não estava porque
tinha ido ajudar na Festa da Uva. Minha mãe e tia Ruth também estariam na
Festa, como acontecia todos os anos, não fosse a adversa circunstância que se
impunha sobre a família. Passados alguns minutos, Manoela voltou afobada da
cozinha. Minha mãe tinha desmaiado. Acorremos em sua direção. Tia Ruth estava
agarrada a ela no chão de lajotas. Saia uma espuma branca de sua boca. Meu
pomo-de-adão travou na garganta. Eu respirava ofegante. Meu pai carregou minha
mãe no colo. Colocou-a com cuidado na cama do quarto deles, onde ele já não
dormia mais. Desde que a doença fora diagnosticada e minha mãe passou a exigir
cuidados especiais, ele se mudou para o cômodo que fora meu desde a infância e
que estava vago desde que morar na chácara se tornou insuportável e me mudei
para uma república, no centro, onde eu passava os dias fumando maconha e lendo.
Isso há mais de quinze anos. Depois de ter passado no vestibular, PUC. À noite,
ia para o Cursinho. Após as aulas, vagava sonâmbulo por becos, carente,
acolhido pelo cimento dos corpos das putas, felizes, como os meus pais, por eu
ter um estágio remunerado, num dos jornais da cidade. Tia Ruth abriu o armário,
pegou um edredom e pôs sobre ela junto com o cobertor que já estava na cama.
Olhei para Tadeu e ele chorava, apertando os olhos com as pontas do polegar e o
indicador. Ele e meu pai foram para a sala. Ligaram para o Dr. Francisco. Manoela
sentou na beira da cama e segurou as mãos da minha mãe. De vez em quando
soltava uma das mãos e ajeitava a franja dela. Olhei fixamente para seus pés
mal tratados, solas secas, unhas duras, varizes nas pernas. Tia Ruth fechou as
janelas e acendeu o abajur. Saímos todos do quarto para deixá-la descansar. Meu
pai ordenou
vá chamar a Elza.
Peguei a chave da caminhonete dele e fui. Aos outros, avisou
o Dr. já está vindo.
Meu pai foi até o armário da copa, pegou e abriu uma
garrafa de vinho e começou beber. Ele nunca mais parou de beber aquela garrafa.
Quando voltei com Elza minha mãe já estava morta. Tadeu consolava tia Ruth após
ela ter ligado para o padre João. Elza com toalhas e uma bacia de água quente
lavou minha mãe. De joelhos ao pé da cama tia Ruth rezou e gemeu de dor. Dr.
Francisco chegou. Tarde demais para milagres. Meu pai disse com qual vestido
preferia ver a esposa vestida. Manoela ajudou a vesti-la. Dr. Francisco assinou
o laudo de óbito. Precisei sair de casa. Fiquei na varanda fumando. Padre João
chegou, me deu os pêsames e entrou. Eu queria ajudar, mas não conseguia.
Desejava ter feito algo por ela antes. Não fui atencioso. Não me dediquei. Não
fiz o que pude. Todos deram o seu melhor. Manoela veio até mim e colocou a mão
no meu ombro. Seus olhos um espelho, vi que ainda me considerava um monstro. Queria
abraçá-la e soluçar. Mas não. Nem eu nem ela. Nada dissemos. Manoela fez um
afago no meu ombro e voltou para dentro da casa. Por que eu não estava
preparado? O que fazer com a necessidade de fazer as coisas diferentes se não
sabemos para onde olhar, se escondemos o rosto dentro das mãos quando lágrimas
escorrem, se não sabemos quando será positivo pôr as mãos no bolso ou
depreciativo acariciar um cão? O que fazer se não temos aonde ir senão à merda?