quarta-feira, 30 de junho de 2010

conto de fabiano vianna

.
Por Brenda Biondo
.
.....Playground
.
.....Quando eu era menor costumava viajar para a chácara do meu primo Leonardo. Era bem legal lá. Tinham vacas e gansos de verdade. Um dia, enquanto explorávamos lugares inéditos atrás das colinas, avistamos um playground. Tinha carrossel, escorregador, trepa-trepa... Mesmo de longe aonde estávamos, dava para perceber que os brinquedos estavam bem abandonados. Não fazíamos idéia quem poderia ter construído aquilo. Não parecia arte do tio Nilo, nem do Neto. E o Léo também nunca tinha ouvido falar de um playground na região. Eu falei para o Leonardo “Vamos até lá!”, e ele respondeu “Com certeza, o churrasco ainda vai demorar a ficar pronto.” E fomos. Mas ao chegar, percebemos que não era um playground comum. Os brinquedos eram bem maiores que o normal. Praticamente tínhamos que escalar os degraus para chegar até o escorregador, por exemplo. Uma loucura! E o curioso é que lá de cima da colina não era possível perceber isso. Meu pai me ensinou que isso se chama perspectiva. É como avião. Parece pequeno de longe. Bem, brincamos assim mesmo. Enquanto eu subia no carrossel, o Léo empurrava de baixo. Na balança eu tinha que me segurar bem às ripas para não cair pela fresta que se transformou num buraco imenso. Nos divertíamos bastante. Até que ouvimos algo assustador se aproximando. Eram passos de gigantes. Eu falei para o Léo “Vamos sair daqui. Estou com má impressão.” Mas era tarde. Crianças gigantes apareceram rapidamente de trás das colinas. Eram três ou quatro. Tentamos correr, mas elas nos alcançaram fácil. Viramos brinquedos em suas mãos grandes e gordas. Jogavam-nos no escorredor feito insetos. Punham para equilibrar nas barras grossas do trepa-trepa. Arremessavam-nos no ar. Só não morremos porque, num momento, elas resolveram ir embora. Eu e Léo fomos jogados dentro do bolso de uma bermuda, em meio a balas e chicletes enormes. Então eu ouvi um dos gigantes gritar “Olhem, têm um playground lá longe, depois daquela colina!” E pelo movimento, deduzi que corriam. Me senti dentro de uma máquina de secar roupa. Alguns segundos depois o movimento cessou e pude ouvir um deles falando “Não é um playground comum. Os brinquedos são muito maiores que o normal."
Fabiano Vianna

domingo, 27 de junho de 2010

peso pena

.
Por morar em Curitiba fiquei distante dos preparativos da antologia Peso Pena. Infelizmente também não tive como me fazer presente no lançamento em São Paulo. Espero estar no Rio e demais cidades, dividindo a alegria por ser parte nessa reunião com tantos brilhantes poetas e amigos. Agradeço muito a Luana Vignon, ao Pierre Masato e ao Jarbas Capusso por terem enxergado valor no meu trabalho e me convidado. Também não posso deixar que conste a gratidão ao Vanderley Mendonca, o editor do livro Peso Pena. E ainda aproveito pra mandar um abraço pro meu bróder Rubens K, que dia desses me fez uma perguntra aqui nos comentários do blog e eu, na correria, não consegui responder (assim como os demais comentários de vocês que lêem essas aventuras, agradeço a todos de coração). Vida longa, pessoal.
.
.
Vejam o que o Vanderley disse a respeito da antologia
.
É um grande prazer poder materializar a poesia deste grupo num livro. Há uma simetria entre todos, não fazem discursos, nem exercícios de linguagem. Obra de amigos para amigos. Neste livro Peso Pena, a poesia fala, eu me calo. Ficarão palavras deles em mim, que um dia brotarão pela minha voz ou pela minha pena. Vanderley Mendonca (Editor).
.
.
A seguir, três fragmentos que colei do blog http://pesopena.wordpress.com/ a respeito do livro, por Luana Vignon
.
O começo de tudo
.
Em meados de 2009 meu amigo Jarbas Capusso convidou a mim e ao Pierre para juntos organizarmos uma antologia de poetas contemporâneos. Topamos. Apresentamos o projeto para o editor Vanderley Mendonça que também topou. De cara pensamos em 10 poetas e 1 ilustrador para que a antologia não ficasse muito extensa e ao mesmo tempo conseguisse reunir diversos poetas que, cada um a seu modo, refletisse a “novíssima” poesia que vem sendo feita no Brasil. O critério foi simples, pensamos primeiros nas pessoas com as quais tínhamos mais afinidades e que fossem também “estreantes”, nos sentido de terem poucos ou nenhum livro de poesia publicado. A escalação passa batida pelos médios-ligeiros e desemboca direto nos pesos pesados, concentrando-se no aspecto delicado da brutalidade de cada um.
.
Nascia assim a antologia Peso Pena.
.
Chacal
.
Quem não o conhece?
.
Chacal, o poeta, o profeta, o soldado que foi pra batalha com um escudo de cristal e uma caneta em riste. Acredito que para todos os autores reunidos nesta antologia ele representa muito mais do que um poeta marginal que agitou o coreto carioca. Não é qualquer um que consegue atravessar incólume o passar dos anos; veja só, ele consegue aproximar como uma espécie de fio condutor Alice Sant’Anna (22 ) e Jarbas Capusso (47).
.
E todos tem uma história sobre como conheceram o Chacal, e todos se sentem como um pequeno pedaço de poesia nas suas mãos, porque tudo o que ele toca vira poema. Podem acreditar.
.
Chacal é nosso padrinho, ele escreveu uma linda apresentação pro nosso livro. Orgulho.
.
Obrigada, Chacal.
.
Considerações sobre a noite de terça (22 de junho, 2010 - dia do lançamento, no Coletivo Galeria, SP)
.
A noite foi linda, os amigos todos lá se divertindo à beça.
.
Isso é o que importa, é isso que faz tudo valer a pena.
.
Queremos agradecer a todas as pessoas que nos ajudaram nessa baguncinha: Renata Forato, que nos ajudou com o blog e outras cositas; Rodrigo Sommer, pelo belo flyer; Walter Figueiredo, que filmou e divertiu a todos no fim da festa com o “sarau da cueca” (vídeos em breve); ao Mário Bortolotto e sua seleção certeira de músicas, ao Luis Felipe Ogro, que estava lá fotografando, a Fabiana Vajman e Paula Klaus, que se colocaram à disposição para qualquer perréps. Além é claro, do nosso editor Vanderley Mendonça, da Luciana, que gentilmente nos abriu as portas da galeria, e todos os membros da banda Fábrica de Animais (Fernanda D’Umbra, Flávio Vajman, Cristiano, Arara e Rubens K)
.
Vocês são duca.
Luana Vignon
.
.
Para comprar a antologia
.
Enviar e-mail para vanderleymeister@gmail.com.
O preço é 20 reais. E a entrega pelo correio.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

amanhã lançamento de peso pena, em são paulo

.
Dia 22 de junho, em São Paulo,
lançamento de Peso Pena,
antologia de poetas contemporâneos
da qual faço parte.
.
.
.....Olha o que o escritor e amigo Paulo Scott escreveu no blog dele, generosamente, a respeito do lançamento.
.
.....Em 2008, larguei tudo mais pra viver da literatura (ou “para a literatura”), sei que essa teimosia não durará pra sempre. Há um preço que se paga quando não se brinca (e quando se brinca também), e isso, dependendo de como se faz, pode levar a saúde do mais forte.
.....No universo literário, quando se escolhe a poesia, parece que se está fadado a jamais encontrar o meio-termo; ou se brinca ou não se brinca. Não é à toa que o gênero vincula (amarra, prende) tanto o texto produzido com a postura daquele que o produz.
.....Escrevo poemas todos os dias – e nem tenho mais vontade de mostrá-los -, sei que palavras vão te moendo e te amassando até que só exista a loucura, que às vezes é a própria criação. A solidão e a pressa são cada vez maiores, e não acho isso de todo mal, pelo contrário, são parte de um caminho escolhido, parte da minha relação com o mundo e as pessoas.
.....Pois bem, nesta terça-feira, em São Paulo, acontecerá o lançamento de uma antologia poética que envolve escritores que admiro e respeito profundamente e que são também amigos meus de verdade (com quem já passei poucas e boas): Bruna Beber, Fernanda D’Umbra, Luana Vignon, Marcelo Montenegro, Pierre Masato, Sergio Mello. Há também o que, mesmo não conhecendo como conheço os anteriores, acompanho o trabalho e tenho enorme interesse pelo trabalho: Alice Sant’Anna, Ana Guadalupe, Jarbas Capusso e o grande Luis Felipe Leprevost.
.....Só posso dizer que se estivesse em São Paulo não perderia a festa, que terá a discotecagem do Mário Bortolotto e show da Fábrica de Animais (banda da Fernanda com uns caras muito feras).
.
Paulo Scott

sábado, 19 de junho de 2010

bárbara kirchner e mario domingues

.
Bárbara Kirchner e Mario Domingues
hoje (dia 19), às 16 horas,
no Paço da Liberdade
.
Clique na imagem

sexta-feira, 18 de junho de 2010

morreu josé saramago

.
Todos devem tomar um porre pela morte de um herói. Vitor Paiva

quinta-feira, 17 de junho de 2010

benditos cavalos

.
.....Benditos cavalos
.
.....
Noite de sexta-feira, 23:40. Rua Cruz Machado. A BMW, vidros escuros, pára. A garota na calçada não está bem vestida, mas é bonita. Não tem mais do que 28 anos. A janela de trás do carro desce lenta. Ela se aproxima. Faz que sim com a cabeça. Depois se debruça na janela. Há pouca luminosidade no interior do automóvel. Rosto jovem, uma boca bem desenhada, pergunta: Quanto?
.....A garota responde.
.....Certo, vou querer até segunda-feira, diz o homem.
.....A menina sorri sem jeito, com os olhos apenas e diz: Vai ficar caro pra você.
.....Agora é ele quem sorri seus dentes perfeitamente alvos. Então ela se afasta um passo atrás. O vidro sobe. Seguidamente, a porta é aberta. Ela entra no carro. A porta permanece aberta sem que nenhum dos dois tome a atitude.
.....Você poderia puxar, por gentileza, pede ele educadamente, exitando em se debruçar sobre a garota.
.....O carro arranca. Ela sente o perfume caro do homem. Olha para ele, que olha a rua. Confirma, ele tem mesmo um rosto lindo. O ar-condicionado está ligado.
.....A temperatura está agradável?
.....Ahã... o cheiro também, diz ela e sorri timidamende.
.....Para onde Sr?
.....Para o apartamento da Visconde de Guarapuava, indica ao motorista.
.....A BMW cruza e centro em direção ao Batel. Ela tenta puxar papo, mas o homem parece estar com a cabeça longe. Fazem o percurso sem um pio sequer. Chegam. Os portões se abrem como que por mágica. O motorista avança e estaciona em frente ao elevador. Desce e vai abrir a porta de passageiro. A garota desce. O homem atrás. Entram no elevador, que sobe feito um foguete em direção à cobertura. É uma sala ampla, pouco iluminada. Há um sofá grande, macio. Uma televisão enorme, de plasma, ocupando uma parede inteira. E muitos quadros nas outras. O homem vai até o bar. Serve uma dose de uísque para si.
.....Gostaria de beber alguma coisa?
.....Um igual a esse tá bom.
.....Gelo?
.....Pode ser.
.....Ele coloca duas pedras e dá o copo pra ela. Bebe em silêncio, duas bicadinhas. Aí vira o copo num gole só. E prepara outra dose. Bebem calados. Ele não tira os olhos da garota. Parece que a está avaliando. Ele fica um pouco incomodada, como se houvesse esquecido sua profissão. Não admitindo a fraqueza, vira o resto do uísque e vai na direção do homem. Esfrega suas costas, o peito, o pau. Vai beijá-lo, mas ele se afasta. Ela fica ainda mais desconfortável. O silêncio pesa no ar. Vai até a janela, imóvel olha as luzes da cidade. Só então se dá conta de quão alto estão.
.....É uma bela vista, diz.
.....Venha, vou mostrar o seu quarto, diz o homem.
.....Vão por um corredor de mais de quinze metros. Ele abre a porta do quarto, acende a luz.
.....Uau, faz a garota.
.....É uma suíte maior que a casa em que divide banheiro, cozinha e camas com mais quatro amigas. A cama que está em sua frente, nela caberiam uns três casais confortavelmente. Sobre a cama há um pijama lilás de flanela leve. Escova de dentes, sabonete, shampoo, cremes. Ele vai até o banheiro, acende a luz. A garota se ilumina.
.....O paraíso deve ser assim, pensa, limpo, cheiroso, de mármore, com um ofurô bem no meio. Quem é esse homem, educado, rico, bonito? Não pode ser verdade. Ele a pegou na rua. Mesmo quando a voz dele soa grave a trazendo de volta, o encanto não é quebrado.
.....Amanhã Henriquieta vai ajudar você a se aprontar, sairemos às 8 horas em ponto, algum problema para você, digo, acordar tão cedo?
.....Na-não, gagueja ela.
.....Recomendo que acorde uma hora antes pelo menos, para podermos tomar o café com tranquilidade.
.....Tá.
.....Boa noite então, diz ele e sai.
.....Bruna.
.....Ele se volta para ela: Oi?
.....Eu me chamo Bruna, diz a garota.
.....Certo, boa noite, Bruna, diz e fecha a porta.
.....É mesmo esse o seu nome, não mentiu. Sequer queria lembrar seu nome de guerra, como se diz. Ao amanhecer, Henriquieta vem acordá-la. Abre as janelas que dão para uma paisagem com centenas de prédios. Enquanto ela urina, lava o rosto e se ajeita um pouco, Henriquieta troca os lençóis e arruma a cama. Coloca as roupas velhas da garota dentro de um saco. Tira tudo de dentro da bolsa e coloca a bolsa também nesse saco.
.....Ei, são as minhas coisas.
.....Não se preocupe, querida, vai ficar tudo bem, você vai ganhar roupas novas.
.....Mas eu gostava dessas.
.....Esqueça isso, deixe eu olhar para você, nada é mais lindo do que olhos azuis como esses numa manhã ensolarada.
.....Henriqueita a leva à copa. O café está servido, pão de centeio, geléias, queijo de búfala, leite desnatado, café, frutas e iogurtes, salmão cru em fatia.
.....E ele, pergunta a garota, não vem tomar café?
.....Daqui um pouco, querida, pediu que você fosse comendo sem ele, para não se atrasarem.
.....Depois Bruna vai tomar banho. Usa o sabonete, o shampoo, condicionador. Enxuga o corpo, passa os cremes. Escova os dentes. Olha-se no espelho. Respira fundo. Não há maquiagem alguma ali, então apenas ajeita um pêlo ou outro da sobrancelha. No quarto Henriquieta a espera com um vestido branco impecável. Ajuda-a vestir.
.....Caiu como uma luva em você.
.....Henriquieta dá para ela uma bolsa.
.....Pronto, aqui está sua bolsa nova, algumas coisas, camisinhas, a maconha, os modes, enfim, joguei fora, mas os documentos e seu dinheiro, bem mais do que tinha antes, estão na carteira nova.
.....Obrigado, diz Júlia.
.....Não precisa agradecer, aos pouco vamos nos conhecer melhor.
.....O elevador chega, Júlia se despede de Henriquieta e entra.
.....Uma BMW de outra cor e modelo, com outro motorista, a espera.
.....Onde está o...?
.....Vocês vão em carros separados, ele vai encontrá-la direto lá, Sra.
.....A BMW pega a Rodovia do Café. Perto da entrada para a cidade de Palmeira, entra numa estrada de terra. Avançam por mais de 20 minutos, até surgir ao longe uma mansão. Cruzam o enorme portão com uma placa: Haras Palud. O carro avança agora numa rua estreita de paralelepípedos com flores bem cuidadas nas margens. Há cercados de madeiras. Dentro de cada um deles, cavalos pastam, galopam, relincham. A BMW estaciona em frente à mansão. Empregados uniformizados e cães da raça Dálmata, limpos e dóceis, vêm recebê-la.
.....Bom dia, Sra.
.....Bom dia, diz ela às empregadas afagando um dos cães.
.....Dona Elizabeth a espera na estufa das flores, por aqui, por favor.
.....Ao vê-la entrar, o rosto de 74 anos de Elizabeth Palud se alegra. Larga o regador que tinha nas mãos sobre uma bancada e vem beijá-la.
.....Olá, querida, seja bem-vinda ao haras, bem que o Beto falou que você era linda, que prazer.
.....O prazer é meu, Dona Elizabeth.
.....Pode me chamar de Beth, meu bem, perdoe meus trajes não sei meter as mãos na terra sem ficar assim toda suja.
.....Ela tira as luvas de borracha, segura Júlia pelo braço e a vai conduzindo para fora da estufa, por uma alameda florida.
.....Não percamos tempo, quero apresentar você a seu sogro, aquele rabugento, ficou falando a manhã toda que vocês não iam vir, que você é muito ocupada, que ser advogada de um grande escritório é isso, ter que trabalhar no final de semana, se for preciso, viver viajando, ele me enlouquece, se você soubesse, mas que bom, que bom que vieram, pelo visto você tem cuidado do meu bebê direitinho, nunca vi meu filho tão feliz.
.....Ele já chegou?
.....Sim, está com o pai nas cocheiras, lidando com os cavalos, esses dois só pensam nesses benditos cavalos.

peso pena, antologia de poetas contemporâneos

.
Dia 22 de junho, em São Paulo,
lançamento de Peso Pena,
antologia de poetas contemporâneos
da qual faço parte.
.
Clique na imagem

sábado, 12 de junho de 2010

banhados pela luz da luminária

.
Luminária feita com caixa de CD, de Wilson Jequitibá
.
.....Banhados pela luz da luminária
.
.....
Cigarro pendendo no canto da boca. Sentou em posição de índio na soleira da porta. Um longo tempo olhando nada na rua, nem a rua. Duas tragadas fundas. E lançou fora o toco. Com a mesma mão coçou a perna. Com a mesma unha arrancou a casquinha da ferida no braço. Não doeu. Sangrou. Ainda não estava seca. Com a ponta do dedo estancou o sangue. Daí chupou o dedo. Levou o braço até a boca, chupou a ferida, fruta mínima, úmida. Saliva, o melhor mertiolate, pensou. Depois esfregou a mão toda no braço cheio de pêlos afim de secá-lo. Quantos canalhas fazem suas canalhices invocando o amor próprio. Um carro velho cuja marca para ele era uma incógnita passou, talvez retornando ao passado de onde surgiu um dia. Ele não prestou atenção devida, ou não havia ninguém dirigindo o automóvel? Tirou o isqueiro do bolso. Puxou da caixinha prateada outro dos cancerígenos e acendeu. Me perdi eu tô perdida com ele não com ele não podia não podia não podia. Ah o prazer indescritível, o corpo todo agradecia. Um novo longo tempo olhando o nada. Baforando. Ao fim, tentou acertar a nova guimba na anterior. Não era bom de mira. Coçou o mesmo lugar de sempre, a batata da perna, porém dessa vez a coceira se manifestava na esquerda, não na outra como era costume. Sabia porque a direita era com a que chutava, era com a que pisava em lugares desconhecidos para chamar a sorte. Eram pernas que apesar da função comum de auxilia-lo a caminhar exerciam cada qual outras funções específicas. Pensava nisso enquanto roia a unha que tinha acabado de usar para arrancar a casca do machucado que há três dias fora uma espinha gorda de pus e sangue. Lembrou. Como esquecer o amarelo claro mal-cheiroso, a espinha sendo espremida, explodindo no espelho do banheiro do escritório onde trabalha como auxiliar administrativo? Trabalhava, aliás. Eu sofro muito com isso eu preferia não ver o que eu vejo viver o que eu vivo me dá muito medo e sempre me dá dor de cabeça minha cabeça quase explode no começo minha mãe achava que eu estava louca mas daí eles começaram a ver que o que eu falava acontecia acontecia. Tinha sido demitido. Por isso estava em casa à tarde, de varde. Cansado da posição de índio se ajeitou de um modo que pode esticar as pernas. Ergueu os braços se torcendo, espreguiçando. Bocejou. Olhou para o céu no exato momento em que ele acinzentou. Foi como se o clima tivesse mudado ao comando de seu corpo. Pingos gordos e lentos de chuva desabaram de nenhures. Sentiu frio, um sopro suave na nuca, mas não se mexeu, pareceu-lhe tolerável. Vestia apenas camiseta branca e calça jeans. Calçava all star. Protegido pelo teto da varanda não se molhou. A temperatura no entanto despencava. A rua deserta. A rua deserta eles merda. A rua deserta.
.....Opa, nem tão deserta assim. PI pinto inimigo PA pinto amigo PO pinto oficial PL paga lanche PP pinto pai. Dois polacos calçando all stars, vestindo camisetas e jeans se aproximavam com passos largos, enérgicos. Um deles trazia uma bolsa feminina à tiracolo. Não sou uma pessoa organizada o que se vê por fora é diferente do que sou por dentro fugi. Nenhum dos dois rebolava nem carregava ares de afetação. Pelo contrário, eram até rudimentares. Ao passarem por ele o encararam. Ele baixou um pouco a cabeça os cumprimentando. A dupla não retribuiu o breve aceno. A sua passada a chuva caiu com mais intensidade. Os sujeitos abriram um guarda-chuva, girassol negro no meio da tarde negracinzentada. Dobraram a esquina. Fomos contratados para te encontrar Ana E me matar? Matar? É Então por que não te matamos ainda? Porque vocês gostam de mim vocês foram com a minha cara e não gostam de quem contratou vocês. O deserto novamente não fosse pelo canto de uma pássaro que entrou na sua cabeça e zás saiu. O isqueiro estava no chão exatamente onde havia deixado após ter acendido o último cigarro. Tirou da caixa mais um, foi um pouco difícil porque o gás estava no final, mas conseguiu botar fogo na ponta e chupar tragando. Fumou esse mais rápido que os outros, estava angustiado. Olhou para a batata da perna. Decidiu suportar o comichão sem usar as unhas para coçar. Teu pai está preocupado. Voltou a erguer a cabeça e ali estava uma moça, um pintinho escaldado, desprotegida, desprotegido.
.....Num átimo ele ficou de pé. Os seios vazando da camisa rasgada. Ela respirando mal como trouxesse um animal ferido dentro da caixa torácica. Um de seus olhos um pouco inchado, o outro azul como há muito ele não via no céu da cidade. Quantos canalhas fazem suas canalhices invocando o amor próprio pai. A moça não conseguia falar entupida de espanto que estava sua boca. Os braços com escoriações. As coxas com hematomas crescendo de dentro do shorts. Devia ter saído de casa pela manhã antes da frente fria ter vindo aportar ali. Tinha no máximo 25 anos, não mais. Menos talvez. E suplicava socorro. Ele não teve tempo de escolher, imediatamente estava acolhendo a moça. Já dentro de casa ofereceu uma cadeira para que ela sentasse. Foi à cozinha, preparou um copo com água e açúcar. Ela bebeu, ele roeu as unhas e mais não havia. Ele foi até o quarto e voltou com uma toalha, um conjunto de moletom e meias. A moça colocou o copo na mesa, ficou em pé. As imagens por causa de seus olhos ardidos de choro e porque a tarde caia e nenhuma luz tinha sido acesa lhe chegavam um tanto borradas, mesmo assim pode reparar bem que havia inúmeros retratos de família espalhados pelo espaço olhando friamente para ela. Filhos da puta eu não vou com vocês eu não volto Calma menina assim você vai se machucar Calma o caralho seu porcos de merda eu não vou voltar ninguém vai me fazer voltar Segura ela ela tá possuída Enfia a porrada nessa vaca. Ele lhe indicou o banheiro dizendo que ficasse à vontade. A moça entrou e só encostou a porta, sem trancar. Olhou-se no espelho e deu uma fungada. Lavou o rosto e enxugou. Tirou camisa, shorts, tênis, meias. Ficou apenas de calcinha. Enxugou o corpo, os cabelos castanhos. Vestiu a calça. Olhou seus peitos no espelho, são bonitos, pensou. Depois riu, lá isso eram horas de pensar essas coisas. Que sorte ter encontrado esse moço na varanda, era a única casa com alguma vida por perto. Ela ainda estava assustada, a respiração sem muito controle. Respirou fundo uma, duas vezes. Só agora a moça começou a sentir de fato o frio que tomara conta da cidade. Quando foi vestir a parte de cima do conjunto escutou duas batidinhas na porta acompanhadas de um tá tudo bem aí? Respondeu que sim e rapidamente vestiu a blusa. Abaixou a tampa da patente e sentou para colocar as meias. Ajeitou os cabelos e saiu do banheiro segurando as roupas molhadas. Ele a esperava com um saco plástico para guardá-las. Eu consegui pegar a bolsa dela O Sr. Bastos vai ficar puto com a gente como é que a gente não consegue segurar uma menina? Pelo menos eu consegui pegar a bolsa dela E daí grande merda Sem a bolsa a arma os documentos o dinheiro ela não vai muito longe Gostosa daquele jeito ela vai onde quiser. Ela colocou as roupas no saquinho dizendo que não serviriam para mais nada. Ele riu levemente do jeito dela mas imediatamente se reprimiu achando que a risada pudesse ter soada inoportuna. Sentia-se desconfortável com uma estranha dentro de sua casa. A tarde já tinha caído por completo e estava escuro ali. O meu carro está aqui perto é velho mais é um carro eu só preciso cruzar a fronteira com o Paraguai e sumir sumir eu sou jovem tenho um corpo bom sou inteligente os capangas do meu pai não podem não podem me achar não quem sabe esse cara vai comigo. Ele foi até o canto da sala onde estava uma luminária com forma semelhante a de uma aranha enorme. Apertou o interruptor e a aranha de luz verde-amarelada os banhou. Eu sou Ana, prazer, disse ela. Ele segurou sua mão. A moça começou a respirar melhor.
.
Escrevi esse conto a convite de Renato Amado,
para o blog Caneta, Lente e Pincel,
que o publicou ontem, 11 de junho, no endereço

terça-feira, 8 de junho de 2010

radiocaos ao vivo - mulheres

.

.
Programa Radiocaos ao vivo, na Grande garagem que grava, em Curitiba, 2009, dentro do projeto Video Escuta. Captação de vídeo: Andrea Lago. Direção, vídeo-cenários, trilha sonora, mixagem de áudio, vídeo ao vivo e edição desse vídeo HD: Samuel Lago e Rodrigo Barros. Escute o Radiocaos em www.radiocaos.com.br.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

escritor wilson bueno

.
Escritor Wilson Bueno (1949 - 2010)
Fotografado (tenho quase certeza) por Eliana Borges
.
Osso para Wilson
.
Penso em Wilson Bueno
como um osso ao relento,
nu e núbil como um osso
a esmo.
.
Osso que se bastasse
de sua óssea alvura,
nu e núbil de sua própria
lua.
.
Osso que se recusasse
à sina que o paparica
e se adornasse de sua
própria adrenalina
.
Osso à deriva, a dedilhar
seus venenos como uma
visita.
.
Osso Wilson Bueno.
Ouço sua cítara.
Jamil Snege
O jardim, a tempestade