quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

sábado, 11 de dezembro de 2010

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Fragmento da segunda novela da Trilogia da Geada
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Tenho 35 anos. Estou infeliz. E desempregado. O desemprego pode ser ótimo, umas férias de verdade, quando temos para onde voltar, a casa dos pais, dos avós, ilhas paradisíacas. Não é o meu caso. Estou paralisado. Talvez bebendo demais. Não encontro perspectivas de futuro. Não tenho descendentes. O que poderiam herdar se os tivesse? Os meus casos são com balzaquianas entristecidas, abandonadas, ou que abandonaram, em nome do feminismo, da independência da mulher contemporânea, a história pequena e tranquila que um dia suas mães sonharam.
O que estou fazendo da vida? Estou lendo, abrindo e fechando a janela. Estou descascando limões e esfregando nos olhos. Estou bocejando. Estou perseguindo insetos. Estou pregando as pálpebras. Estou na obscuridade. Um dia vou meter a cabeça numa serra elétrica, a mesma serra que matou Tati.
Por ter consciência desse quadro lamentável, numa manhã dessas acordei decido a virar o jogo. Sou escravo dos meus humores. Vesti um blazer e fui falar com ele. Os seguranças e as secretárias não me conheciam pessoalmente, tampouco tinham ouvido falar de mim. Fazia mais de seis anos que eu não ia ali. Foi difícil chegar à sala da diretoria. Tive que fazer cadastramento, pendurar um crachá no bolso, ser anunciado e esperar. A secretária abriu a porta e me encaminhou. Tatá não pareceu surpreso ao me ver.
A que devo a honra? Aceita uma água, café?
Ali estava meu primo, grisalho como meu pai.
Café, eu disse.
Ele pegou o telefone: Dois expressos. E em seguida: Quanto tempo, Jassei, o que tem feito?
Ele estava ansioso. Falava sem deixar intervalos que permitissem que minhas respostas fossem mais do que vazios pois é, estou por aí, correndo, etc. Bateram à porta. A copeira entrou carregando uma bandeja com as xícaras. Com um ar desdenhoso, ele disse: Pode deixar aqui, nós mesmos nos servimos.
A copeira pediu licença e se retirou. Tatá serviu as xícaras.
Açúcar ou adoçante?
Puro, respondi. Depois eu disse: Vou trabalhar aqui.
Tatá me olhou pela primeira vez nos olhos e se deteve. Seu olhar era escuro como um poço. Então sorriu encolhendo os ombros como quem pergunta como é?. E disse: Você nunca gostou de marcenaria, Jassei.
Nunca gostei de marcenaria... é verdade. Mas nutro desejos audaciosos, só não consigo colocá-los em prática. Sou o primeiro que me diz não. Eu não tenho admiração por mim. Tatá, Tati e eu não éramos inseparáveis, embora estudássemos no mesmo colégio. Eu tirava notas baixas. Tatá não. Dizia a dona Leda, nossa professor de língua portuguesa, que eu vivia fugindo do tema. E eu fugia mesmo. Mas acreditava que deveria tirar notas boas pela minha capacidade de fugir do tema. Eu sabia ir longe, mas era um tempo em que a escola nos queria adestrados. Meu pai me quis adestrado por um tempo, depois desistiu de mim. Tatá adestrou a si mesmo logo de cara. Agora já estava na hora de eu mostrar quem eu era, ser firme com ele. Não fugiria desse tema. Eu disse: Vou trabalhar no setor de comunicação.
Eu não tenho como colocá-lo na empresa assim de uma hora para outra, nossos quadros estão inchados, estamos passando por um momento crítico.
Preciso trabalhar, Tatá.
Você está devendo dinheiro para alguém?
Há anos venho me guiando pela bússola da contramão. Avião para os negócios, como dizia tia Ruth, o sacana do Tatá estava querendo saber o meu preço.
Estou devendo para o banco.
Quanto?
Não é da sua conta.
Meu tom era amargo. O dele tinha gosto de meia suja.
Se você vem me pedir emprego, é da minha conta, baixou o voz tornando-a ainda mais áspera.
Não vim pedir nada, essa empresa é tão minha quanto sua.
Jassei, você nunca quis fazer parte dela, fui eu quem a transformou no que ela é, além do mais, você recebe sua parte mensalmente.
Mil reais?
Nada mais justo.
Não vou discutir com você, Tatá.
De quanto você precisa para quitar essa dívida e sumir da minha frente?
Você me enoja, Tadeu.
Não somos mais crianças, Jassei, vou aumentar o seu pró-labore de não fazer nada para 2.500 reais, está bem assim? Além de dar a quantia necessária para você quitar suas dívidas, em troca peço que suma da minha vida. Quanto você deve?
Sete mil.
Tatá abriu uma gaveta. Ele se transformou num sujeito bem estruturado, funcional, que provoca admiração pela sua eficácia nos negócios e posição social. Ele e Tati eram um ano e meio mais novos do que eu. Lembro-me bem da vez em que incendiamos o galpão das festas, onde funcionava a churrasqueira, quase que fizemos churrasco de Brennelli quando inventamos de acender o resto de carvão que sobrara. Tia Ruth tinha guardado ali fantasias carnavalescas de várias mulheres da vizinhança (não sei por que logo no galpão) que acabaram servindo de comida para a fome incontrolável do fogo. Eu levei toda a culpa e Tatá saiu de vítima. Cada um de nós levava vida própria. Tentando deixar algum rastro de fogo e brilho por onde passasse. Tatá conseguia, eu não, por mais que incendiasse um galpão inteiro, logo tudo eram cinzas. Às vezes fazíamos programas juntos. Num sábado de manhã, um amigo do vô Breno que tinha vindo fazer o aperitivo lá em casa, perguntou se a gente já tinha ido na zona. E nos explicou direitinho como fazer. Era só chegar lá e dizer que ele nos tinha indicado. Na sexta-feira seguinte Tatá veio com a proposta.
Vamos.
Topo, disse eu.
Melhor não, é perigoso, alertou Tati.
Convencemos Tati e fomos.
Agora eu estava sendo a puta de Tatá.
Ele tirou um talão de cheques da gaveta em sua mesa de trabalho. Vale mais o dono da carteira do que a carteira, por mais que o dono da carteira não valha nada? Tatá viu o cavalo passar encilhado e montou, o mesmo cavalo que agora me escoiceava. Ele assumiu o lugar que era meu por direito e eu nunca quis. Preencheu o cheque, arrancou do bloco e estendeu para mim. Eu disse um obrigado baixo. O fracassado da família.
E fui saindo da sala da diretoria.
E você se casou com esse filho da puta, Mana, pensei. Ele me roubou muitas coisas, mas você ele não podia ter levado. Vieram-me à mente imagens da gente com doze, treze anos. Eu saltando nas costas de Tatá, ele se debatendo, eu o espancando, depois o abraçando com força, prendendo seus movimentos. Derrubando Tatá. Ele tentando fugir e, ainda no chão, me dando as costas. Eu subindo nas costas dele, como ele fosse um bezerro desesperado. Então eu empurrando a cabeça de Tatá na direção do chão e gritando come grama, lazarento, come grama. E de repente eu sentindo alguém me puxar com força, arrancando-me de cima dele, dando bronca em nós dois: Estão de castigo, cada um para seu quarto, agora.
Mas foi ele quem começou, vô.
Não interessa, não quero ver dois primos brigando, isso é muito indigno, já para dentro.
E então eu indignado e ao mesmo tempo envergonhado porque vô Breno, que vivia nos dando ensinamentos pacifistas, de tolerância, tinha sido obrigado a se meter entre mim e meu primo. Eu me remoí, considerando-me o pior ser humano sobre a face da terra. E fiquei um tempo buscando um mínimo olhar de arrependimento de Tatá que, pelo contrário, tinha um risinho de escárnio na boca suja de terra e grama.
Agora eu estava ali em seu escritório, diante do mesmo risinho porco. Abri a porta. E senti um impulso incontrolável. Me virei e perguntei: Como ela está?
Saia faísca da gente. Tatá franziu a testa e me encarou com raiva. Um dia vou chutar a cara desse filho da puta, pensei, vou esmigalhar os joelhos dele, vou arrancar seus braços fora. Não, não vale a pena. Se tem uma coisa que aprendi com os anos é essa: não escoiceie se você não é burro, jegue ou mula.
Saia daqui, disse ele, antes que eu chame a segurança.
A gente se encarou por um tempo. Então saí do escritório também como que arrancado dali pelos braços já frágeis de vô Breno. Cruzei os corredores e a portaria. Tinha a cabeça pensa e os olhos ardendo em fogo.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

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Dias com mais sol
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a sombra imita
meus movimentos
parece suplicar
que eu a tire da parede
da prisão do chão

a sombra não tem
nervos ossos
musculos coração

a sombra é feita
de feixes de escuridão

às vezes até serve de farol
quando aparece melhor
nos dias com mais sol

a sombra habita
em cada pessoa
parece colada
mas se vou olhar cadê
eu vim com o seu fim

a sombra não tem
sequer destroços
crepúsculos sim

a sombra se deita
bem embaixo de mim

às vezes se funde ao arrebol
e aparece melhor
nos dias com mais sol

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

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Naquela manhã, numa Flip em que estive como público (foram duas, ou três, não sei exatamente), entrei na enorme fila de autógrafos da escritora Adélia Prado. Eu já havia lido a poesia completa dela e alguma prosa. Mas não trazia livro debaixo do braço no momento. Eu era um dos últimos e, depois de mais de 1 hora na fila, quando chegou a minha vez, ela disse em seu conhecido sotaque mineiro: Uai, ficou nessa fila imensa só pra me dar um abraço? Sim, respondi, e pra dizer que sua poesia é fundamental pra mim. Havia ênfase na palavra, como se “fundamental” pudesse abarcar uma infinidade de sensações, sentimentos, experiências de minha vida. Então ela perguntou: Você também escreve? Escrevo, mas..., e completei a frase com um profundo suspiro. Ela apertou a minha mão e disse: Posso pedir uma coisa a você, filho? Nessa altura eu já chorava. Pode pedir sim. E ela: Promete que não vai parar de escrever? Aconteça o que acontecer, não pare, tá bem? Não vou parar, prometo, eu falei. Ela sorriu. Então dei um beijo em sua bochecha, agradeci com o meu melhor coração e saí caminhando sobre as pedras tortuosas das ruas de Parati.