segunda-feira, 30 de novembro de 2009

um poema de eugénio de andrade

Eugénio de Andrade
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Pier Paolo Pasolini
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Requiem para Pier Paolo Pasolini
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Eu pouco sei de ti mas este crime
torna a morte ainda mais insuportável.
Era novembro, devia fazer frio, mas tu
já nem o ar sentias, o próprio sexo
que sempre fora fonte agora apunhalado.
Um poeta, mesmo solar como tu, na terra
é pouca coisa: uma navalha, o rumor
de abril podem matá-lo – amanhece,
os primeiros autocarros já passaram,
as fábricas abrem os portões, os jornais
anunciam greves, repressão, dois mortos na primeira
página, o sangue apodrece ou brilhará
ao sol, se o sol vier, no meio das ervas.
O assassino, esse seguirá dia após dia
a insultar o amargo coração da vida;
no tribunal insinuará que respondera apenas
a uma agressão (moral) com outra agressão,
como se alguém ignorasse, excepto claro
os meretíssimos juízes, que as putas desta espécie
confundem moral com o próprio cu.
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O roubo chega e sobra excelentíssimos senhores
como móbil de um crime que os fascistas,
e não só de Salò, não se importariam de assinar.
Seja qual for a razão, e muitas há
que o Capital a Igreja e a Polícia
de mãos dadas estão sempre prontos a justificar,
Píer Paolo Pasolini está morto.
A farsa, a nojenta farsa, essa continua.

Eugénio de Andrade
de Homenagens e outros epitáfios, 1974.

uma epígrafe

Pier Paolo Pasoline está morto. / A farsa, a nojenta farsa, essa continua. Eugénio de Andrade.
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*dedico essa postagem a
atriz Claudete Pereira Jorge,
que comeu um cigarro em cena
como protesto à proibição de fumá-lo.

atriz claudete pereira jorge alerta

Claudete Pereira Jorge por Gilson Camargo
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Nota que saiu no Caderno G da Gazeta do Povo de sábado, 28/11/2009
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Atriz interrompe cena e protesta contra “censura”
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A apresentação de estreia do espetáculo Os Três Espelhos, de Maureen Miranda, no Mini-Guaíra, na noite da última quinta-feira (26), contou com um “manifesto”.
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A atriz Claudete Pereira Jorge interpreta a mãe de Samuel (Ro­­dri­­go Ferrarini) e essa personagem, na concepção original da mon­­tagem, fuma continuamente em cena.
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No entanto, a direção do Teatro Guaíra avisou ao elenco, e à diretora Maureen, que, devido à Lei An­­tifumo, não seria permitido que a atriz Claudete acendesse ne­­nhum cigarro no palco.
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A peça começou e, quando Clau­­dete entrou no palco, ela in­­terrompeu a sua fala, pediu para que as luzes fossem acesas, pegou um microfone e fez um pronunciamento.
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Se hoje eu não posso fumar um cigarro, daqui a pouco vão de­­cidir qual o livro que eu tenho que ler, como tenho que me portar em cena. Já passei por isso (censura) durante a ditadura militar e agora tenho de passar por isso (censura) de novo em 2009. Isso é um absurdo, disse Claudete.
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A atriz chorou e, posteriormente, a peça teve continuidade.
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domingo, 29 de novembro de 2009

especulações sobre o amor simples

Sabe o que eu queria? Jogar tudo fora e não me lamentar. Mas a língua nos olhos, seu paladar, seu mau gosto me cegaram. Algo assim: ela me deixou, voltei a fumar dois maços, a passividade dela me embruteceu. De tanto ser mais burro que romântico já não enxergo nada, só burrice, só burrice, só burrice. Digo, esse não é o meu primeiro caderno de clichês de amor. Se a vida fosse fácil não existiria teatro, só burrice, só burrice. Algo bem assim. Até hoje não queria ter experimentado essa garota mais do que três vezes. Na primeira, os cheiros brotados feito flores do corpo. Na segunda, ela sem calcinha derretendo sob o arco-íris saído de uma palma e de outra palma das minhas mãos cujas linhas desconhecem os destinos. Depois, na terceira: a mastigação das línguas como fossemos vacas ruminando tesão. Mas nada disso está ok quando queremos ir mais longe. Digo, é sempre uma viagem pedregosa até a praia deserta da burrice. A praia deserta da burrice onde nossa historinha morreu. E lá ficamos, esquecidos no tempo ruim feito alimentos totalmente apodrecidos. Algo assim: uma historinha mastigada, depois vomitada, um delírio fétido que agora até mesmo os amigos mais íntimos têm nojo de pegar do chão e jogar na lixeira dos orgânicos. Pelo menos a chuva lava.

sábado, 28 de novembro de 2009

uma epígrafe

Meu amor essa é a última oração pra salvar seu coração, coração não é tão simples quanto pensa, nele cabe o que não cabe na dispensa. Cabe o meu amor, cabem três vidas inteiras, cabe uma penteadeira (espreguiçadeira), cabe nós dois. Leo Fressato.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

notas para um livro bonito

Perguntas que me sobem à pele: Quais ações fizeram com que cada ser vivo que por mim tenha passado durante esses anos imediatamente lançasse olhares de admiração ou reprovação? Sou, fui um cara do bem? Não? Um tolo, quem sabe? Não tenho sido extremamente gentil na maior parte de meus atos? Não, claro que não. Mas e se... olhando por esse ou esse aspecto... E meus arranjos de carinho, em quem fizeram efeito? Mas e se não busquei efeito algum? E se fui arrebatado como na última sexta-feira ao ver uma atriz jovem em cena despencando todas as vezes em que ouvia alguém dizer que a amava? Isso não foi o que de mais importante me aconteceu nesse ano? Não tenho como avaliar. Acordar no dia seguinte já é uma quantidade de milagre significativa, mas não suficiente, não mesmo. E meus arrojos sexuais, não serão também verdadeiros milagres? E por que com essa ou aquela mulher? Por que mesmo com as quais eu preferia morte, distância, até nunca mais? Mesmo com elas posso considerar o milagre? Qual delas me ajudou a esquecer? Qual a querer mais? Qual me revelou novamente a vida a vida a vida a vida? Em qual me curei ou adoeci? Qual delas hoje sou eu? Será que tive mesmo aquelas em quem penetrei? Será que fui daquelas a quem disse querer passar o resto da minha vida ao lado? Mas então por que não estou ao lado dela nesse momento? Terá acabado minha vida? Será que sempre vou querer lembrar de nossos pios e arrepios, das corredeiras de suor, da lama transparente do choro? E mesmo se eu quiser lembrar, será que vou conseguir? Será que posso afirmar não ter sido amado por aquelas com as quais tomei um café ou um sorvete no fim de tarde e isso foi tudo? E isso foi mesmo tudo? Olha, parece que tenho motivos de sobra para ser feliz e infeliz e feliz e infeliz. Mas será que tenho motivos de sobra para ser feliz? E infeliz? Se sim, deverei a quem, digo, a felicidade? Ou a infelicidade? Aos amigos? A minha pequena biblioteca? Ou foi que os amigos me condenaram aos livros quando eu já não suportei mais ter amigos? E por que não suportei? Por que de fato não suportei ou por que me tornei incompetente para fazer novas amizades? Mas, oras bolas, não é que amizades verdadeiras toleram a incompetência? E os livros verdadeiros, eles toleram leitores incompetentes? Mas os livros são verdadeiros? Se não, poderei eu dizer que alguns livros são meus bons amigos? Mas eles, os livros, por acaso não me condenaram ao me transformarem num obsessivo por literatura? Amigos fazem isso? E se sou mesmo (sou?) um obsessivo por literatura, por que ainda não li uma linha sequer do “em busca do tempo perdido”? E o tempo, digo, o tempo que passei não lendo o “em busca do tempo perdido?”, mas fazendo outras coisas, ou mesmo não fazendo nada, esse tempo foi mesmo perdido? Mas é possível que não estejamos fazendo nada se ainda estamos vivos? Ou não fazer nada é só uma maneira de dizer? E para que dizer? Você acha que alguém te escuta só porque possui duas orelhas? Ou... E, afinal, o que isso importa, não é mesmo, não é mesmo, não é mesmo?

se te conto uma mentira

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chove sem parar chove sem parar sem parar sem parar mesmo quando existem tantas outras palavras com as quais se pode dizer adeus

um guarda-chuva que fala: às vezes eu queria ser um bueiro pra engolir a chuva quando a chuva desaba

ao violão, amor, minhas mãos e o coração vibram, não as cordas e a madeira... é que os dedos se habituaram a acordes e arpejos no seu corpo

agora chega, vou desligar esse maldito computador e vou ver o sol lá no verde do quintal... bj a todos

conto de terror: o menino tinha demasiado as cores cinza, o sangue, lesma, lama, musgo, enclausurados nos olhos, de modo que os vazou

conto de terror: ri, algo se debate entre os dentes, língua profanada, me aproximo e sou atacado por morcegos com remela cuspidos dos olhos

uma, digamos, celebridade: o que foi mesmo que ele falou, que celebridades com silicone não podem dormir de bruços?

um tiozinho tocador de viola, cantando assim: meu coração é um punhado de uva passa / que ela pôs na boca e mastigou

ai, que somos dois louquinhos que nem nunca se encontraram pessoalmente mas sentem saudade um do outro

se não me engano, foi Marty Mcfly quem disse uma das mais importantes frases do cinema mundial: ninguém me chama de franguinho
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1: mudança assim na vida, é absurdo não ter champanhe pra comemorar. 2: mas comemorar o quê, idiota, se ela tá indo embora. 1: pois é
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aquela guria é assim: seio bom, seio mau... fazer o quê?

que cachorro bonito, ele morde?, pergunta a moça. não, ele fede, responde a velha

e adoro os efeitos sonoros de quando você sussurra absurdos no ouvido do meu coração

e então os carros assustados feito cardumes abriram espaço

estranho como as coisas são, o resgate nunca consegue acompanhar a velocidade do desespero

de repente, apertou os olhos, contraiu o rosto pra conter, sei lá, uma torrente de choro que ia afogar nós dois, a casa, talvez até o bairro

eu choro dando risada... sabe quando você tá chorando e quem ouve não identifica se é riso ou pranto? eu choro assim

o velho comedor (fazendo um mea culpa): ao longo da vida não fui conquistando e acumulando mulheres, mas as perdendo uma a uma, todas elas

não diga que ele não é um músico, quando tem horas, anos que ele está aqui escutando, o mais que pode, o arrulho dos pedregulhos

não diga que ele não é um poeta, quando tem horas, anos que ele está olhando o mundo, o mais que consegue, aqui do mirante das miragens

um amigo sobre a namorada do outro: ela não é bonita, né, mas é tão inteligente que chega a ficar sexy já nos primeiros minutos de conversa

tô em casa, observando a natureza... sei, não vou resistir muito, logo, por volta de 16:30, um shopping center deverá bocejar, me engolindo

logo mais um shopping center bocejará e me engolirá assim como acabo de fazer com esse mosquito, agora um nada em meu estômago

primavera... abundância de luz, cores, canções sertanejas e latidos vizinhos, (paz?) passarinhos, tintas e sotaques da paisagem curitibana

garoa na primavera de Curitiba... um começo da ausência das tintas na paisagem cinzentinhazulada... ó tarde inconstante

chove agora um pouco no bairro de Santa Felicidade... admito, gosto de Curitiba com chuva... queridas minhas, odeiem-me por isso

admito (outra vez), saudade do inverno, quando a neblina vem se aninhar em nossos pés em busca de edredom e cobertor

na primavera curitibana, edredons e cobertores são ursos esquecidos hibernando em armários cavernosos

assim: cê vai ali no Dentadas Pub ouvir aquelas velhas canções, e elas são diuréticas... sério, quem as ouve tem logo que correr se aliviar

bem, no banheiro do Dentadas Pub, o cheiro de limão no gelo se mistura às canções mijadas, entrando no teu nariz empapuçado de versos tristes

a morte não tem face, mas tem disfarces... a foice é só um dos disfarces da morte sem face

um vereador aos jornais: tenho preocupações sociais, claro, não sou nenhum alienado, pensa bem, de certo modo, o que é roubado é divido

um ladrãozinho que lê jornais: pô, chefe, não sou nenhum alienado, tá pensando o quê, de certo modo, o que é roubado é divido

até é comum toparmos com tantos talentos deslumbrantes, mas (que remédio?) quantos acabam deslumbrados

um fã, digamos (e bêbado): gosto mesmo mesmo quando a banda para e a cantora sangra sangra o seu solo de boca

ele: tá quieta. ela: tô comigo mesma, pensando, bem lá no fundo, sabe. ele: posso entrar em você?, é que não quero ficar sozinho aqui fora

ele: não faço mais aquelas coisas, fazia no tempo que eu babava. ela: e agora? ele: agora?, é o que tô dizendo, agora eu não babo mais, ué

ela: ein, chuchu, fui doce, não fui? eu: foi, mas mesmo assim tomo cuidado, é que açúcar demais também pode matar

olha, é todo ele uma complicação de elásticos o instrutor de yôga

beibe, se eu tivesse olhos na nuca não te virava as costas nunca... é que não consigo parar de olhar

objetos tantofaz: paninho lustra-olho, cardápio de cardápios, tatuagem-sabonete

é necessário sacudir a barriga pra dar risada

imagens de múltipla aplicação para se escolher à gosto: rastros do homem gosma, overdoses de preguiça, terremotos de febre

imagens de múltipla aplicação para se escolher à gosto: colibris de fundo de garrafa, congestionamento de bexigas, passarinhos de fumaça

imagens de múltipla aplicação para se escolher à gosto: cavalos com cascos de geléia, a caveira de uma lesma, jardineiro de livros

imagens de múltipla aplicação para se escolher à gosto: postos de adrenalina, luzes de cimento, dunas de escadas, farmácia de brinquedos

leva nove meses pra alguém ficar grávida

xô óvni / choveu / teu véu de luz / e eu vi

dia desses o cara que criou a estética do breganejo experimental me disse: eu sou uma dupla sertaneja... hum, só então entendi tal vanguarda

manifesto: o direito de se reconstruir... se você vem, corpo fechado de pêlos, fazendo úúúú,
sinceramente, vou trata-lo como a um gorila
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segunda-feira, 23 de novembro de 2009

duas coisas boas com boas pessoas

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Esse é o myspace do meu parceiro Thiago Chaves
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http://www.myspace.com/thiagozpchaves
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Esse é o blog da espetacular Mostra Cena Breve
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http://mostracenabreve.blogspot.com/

sábado, 21 de novembro de 2009

notas para um livro bonito

meu quintal, meu quintal
só o meu quintal e
não essas outras ruínas florescidas
pois que ruínas, como as
plantas ou as feridas no
corpo humano
também florescem e
se não cuidamos
acabamos por colher e
nos alimentar do fruto de
detritos apenas, embora nossos
dentes, estômago, cu não
estejam preparados para isso

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

se te conto uma mentira

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manifesto: Hélio Oiticica não é adocica, meu amor

olhou-se no espelho e saiu com essa: muita gente não gosta de mim... se isso me incomoda? (longo silêncio) me incomoda

sabe, às vezes o ônibus expresso atravessa a canaleta do meu olho e eu sequer reparei o atropelamento

sei, logo mais, 7 da matina, Barigüi assim de saúde... mas pondera, amigo... pode que os novos sádicos do mundo sejam os personal trainers

escutava vozes... uma dizia assim: sei bem que você fabrica o que chamam de “poemas”, mas eu chamo de “outras paisagens do amor”

vivo criando coisas... então criei a tecnologia do afeto... tecnologia do afeto é assim: você não precisa fazer nada, só gostar das pessoas

o telefonema da amada te chamando para ir até a lua é irrecusável, de modo que estou indo

o telefonema de um amigo te chamando para ir até o sol é irrecusável, de modo que estou indo

os fantasmas têm sorte, não são como nós... de noite, não trazem o domingo pesado feito um calzone quatro queijos tamanho família no coração

aos domingos, o tempo não tem margens

não se é feliz no domingo, ele não foi feito pra alegria, mas pra angústia do descanso... daí a razão de todos se excederem tanto no almoço

ontem, no meio da noite, não me segurei, acabei falando: de repente é isso mesmo, sou um piá de bosta, romanticão, meio punk, meio vanerão

boca roxa de vinho, agorinha mesmo, voltando da balada, ela me disse: é só minha a culpa se me afoguei dentro de um peixe no escuro do blues

em Curitiba, o girassol tem torcicolo, as pedras mais duras pedem colo, e os roqueiros mais tolos tocam o pau

o twitter? essa espécie de monólogo coletivo

objetos tantofaz: beijos-chocolate, xícaras de orvalho com adoçante, regadores de suspiros, cigarros de oxigênio

objetos tantofaz: metralhadora de algodão, motores de pelúcia, porta-cachoeira, água-cobertor, manteiga-corrimão, pneus de sabonete

3:56 da manhã: ela e seus olhinhos sujos de entorpecentes, chapados de coisas insuportáveis... vou ninar minha menina má, velar seu sonho

imagens de múltipla aplicação para se escolher à gosto: os ossos das paredes, montanhas dentro dos bolsos, capítulos de fatias de salmão

imagens de múltipla aplicação para se escolher à gosto: beijocas-oiquebomquevocêveio, bolhinhas de fogão, cardumes de trevas

imagens de múltipla aplicação para se escolher à gosto: arco-íris ton sur ton, galáxias inteiras apodrecendo na fruteira

um garçom recém empregado num restaurante fino de Curitiba: eles comem mesmo essas lesmas?, até nos países de primeiro mundo?

um vegetariano norte-americano: é bem diferente ser uma vaca no Brasil do que ser uma vaca na Índia... no Brasil eles comem vacas, né?

um gourmet europeu: não deve ser assim tão diferente ser um vira-lata na China do que ser um vira-lata no Brasil... na China eles comem cachorros?

ainda o gourmet enojado: não deve ser assim tão diferente ser um rato na China do que ser um rato no Brasil... na China eles comem ratos?

objetos tantofaz: trampolim de avião, granadas de neve, galo-relógio, gravata de baba de sopa, livros de casca de cebola

objetos tantofaz: almofadas de lasanha, controle remoto de paisagens, transatlânticos de banheira, coleção de pão de queijo

imagens de múltipla aplicação para se escolher à gosto: espaçonave no céu da boca, pacotinhos de deserto, mandíbulas de papel

imagens de múltipla aplicação para se escolher à gosto: eclipse de amantes, oceano de gaveta, dores de azulejo

objetos tantofaz: pastilhas de dinheiro, violinos de trovão, formigas-trator, guilhotina de plumas, ampulheta sem cintura

o pogobol foi inventado pelos sacis, que (mas isso não lhes faz falta) não podem usá-lo

me fiz antigo quando na escultura de meu fôlego certa vez publiquei meu fogo

toda via, meu fôlego começará de novo quanto mais eu já for outro

engodo brasilis... teus ancestrais são teus antecedentes criminais

congestionamentos, todos os congestionamentos, os congestionamentos vão virar um único estacionamento

era uma outra vez o “era uma vez”

um diretor: por que você faz teatro? uma atriz: porque posso trabalhar descalço

o mesmo diretor: por que você faz teatro? outra atriz: porque isso não é para qualquer um

ainda sobre teatro: Beto Bruel... o cara que ilumina o ator por dentro

Deus opera, mas só o médico tem diploma

cabotinos, uni-vos e prestigiai-vos uns aos outros

os dentes são os únicos ossos expostos do corpo... o sorriso é o começo de uma caveira

penso, logo desconfio... digo, penso, logo desconfio se penso ou não

uma namorada: a nossa relação é como um puff vazando bolinhas de isopor... fofo, é verdade, mas faz a maior sujeira

uma filhinha: mãe, verdade que quem faz bastante fezes fica com a pele boa? a tia da escola que disse

ela: não pode ser, ficar amargurado assim só porque escorpiões cavaram o seu sangue e morcegos se engancharam qual cabides nos sentimentos

ele: tenho muita pena das pessoas. ela: não se preocupe, as pessoas também tem pena de você

tem palavra que cabe perfeitamente na boca, tem palavra que não... xoxota é palavra que cabe

gosto de quem conta estórias, não de quem conta vantagem

abismos são bocas, a Terra, mesmo dormindo, precisa respirar

vulcões não são bocas, são espinhas, podem estar inflamadas ou não

oceanos só têm fome de terra terra terra terra e mais nada

os navios afundados? são só farelos com os quais os mares se engasgam

e os afogados? nunca antes se levou tanto em consideração a evidencia de serem 70% feitos de água

vale mais o dono da carteira do que a carteira (por mais que o dono da carteira não valha nada?)

carteira é somente um lugar para se dormir papel e algum plástico

a carteira de dinheiro dorme e ronca ao meu lado, sobre o criado mudo que, por sua vez, nem sequer pisca a boca, pois não

às 7:15 não é o despertador, mas a carteira de dinheiro quem me acorda

sim, a carteira, sobressaltada em fazer sua atividade física matinal, tomar seu banho frio, ávida por estar até no máximo 9:30 no centro comercial
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quarta-feira, 18 de novembro de 2009

mostra cena breve curitiba

Foi publicada no Caderno G da Gazeta do Povo de hoje (18/11/2009) matéria sobre a Mostra Cena Breve Curitiba. Assina o artigo o jornalista e crítico literário Marcio Renato dos Santos. Confira.
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Cena de Burlescas Boogie-Woogie,
da Companhia Silenciosa: 15 minutos de experimentação
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Vale-tudo em quinze minutos
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A Mostra Cena Breve Curitiba chega a sua quinta edição, reunindo 14 companhias de teatro de quatro estados e tendo como desdobramento apresentações no Teatro da Praça, em Araucária.
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Dez dias dedicados à experimentação, exibição e discussão da dramaturgia contemporânea. Essa é uma maneira de definir a 5.ª Mos­­tra Cena Breve Curitiba, que acontece de hoje até a próxima segunda-feira (23), no Teatro da Caixa (com ingressos a R$ 6 e meia a R$ 3), e de 25 a 27 de novembro no Teatro da Praça, em Araucária, na região metropolitana, com entrada franca.
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O acontecimento cênico tem como ato inaugural a apresentação do espetáculo Apropriação, da Companhia dos Atores (RJ), que terá duas sessões hoje, às 19 e às 21 horas, no Teatro da Caixa.
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Mas é a partir de amanhã que a Mostra Cena Breve Curitiba passa a operar em seu formato já consagrado. A partir das 21 horas, o público terá a oportunidade de conferir, na sequência, as seguintes cenas, cada uma de 15 minutos, de três trupes paranaenses: E Ela Abriu os Olhos Embaixo D’Água (da Companhia de Alguém), Coração de Congelador (da Súbita Companhia de Teatro) e Burlescas Boogie-Woogie (da Com­­panhia Silenciosa).
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Na manhã de sexta-feira (20), as três cenas apresentadas na noite anterior serão discutidas a partir das 11 horas, por Francisco Gaspar (PR), Francisco Medeiros (SP) e Gladis Tridapalli (PR), na sede da CiaSenhas, na Rua São Francisco, 35, no Setor Histórico – a entrada é franca.
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As interlocuções acontecem até segunda-feira (23) e as quatro me­­lhores cenas, escolhidas em conjunto pelos especialistas e pelo público, serão exibidas na próxima semana no espaço cênico de Araucária (é a primeira vez que o evento tem um desdobramento em outra cidade).
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Um festival diferente
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A Mostra Cena Breve surgiu em 2005, depois que integrantes da CiaSenhas conheceram o Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine Hor­­to, em Belo Horizonte. No mesmo ano, a trupe curitibana idealizou, na capital paranaense, um e­­ven­­to similar ao realizado em Minas Gerais: a exibição de cenas, de até 15 minutos, seja de espetáculos que estão em processo de montagem ou mesmo de cenas idealizadas especialmente para a mostra.
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Algumas cenas exibidas em edições anteriores da Mostra Cena Bre­­ve Curitiba desdobraram-se em es­­petáculos. Na Verdade Não Era o Sinal de Vai Tomar no Cu, texto de Luiz Fe­­lipe Leprevost, com direção de Nina Rosa Sá, foi apresentado na edição do ano passado e, posteriormente, desdobrou-se na montagem Na Verdade Não Era, que teve temporada recente no Teatro José Maria Santos.
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Outros frutos
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Marcia Moraes e Greice Barros, da CiaSenhas, comemoram não apenas o exemplo de Na Verdade Não Era, um experimento real que passou pelo evento, mas também ou­­tras conquistas. Primeiro, a oportunidade que grupos de Curitiba e de outros pontos do país têm de se encontrar durante o evento – neste ano 14 companhias, de quatro es­­­­­­tados, participam da Mostra.
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“Depois, e o que é muito bacana, é que o público tem acesso, em um mesma noite, a pelo menos três montagens, de companhias distintas, com linguagens variadas. Isso atrai tanto atores, diretores, como também curiosos”, co­­me­­mora Marcia Moraes.
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Toda a movimentação, relatos de cenas, resumo dos bate-papos e informações exclusivas serão veiculadas, com atualização constante, por meio do blog mostracenabreve.blogspot.com.
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Paralelas
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Saiba mais sobre a 5ª Mostra Cena Breve Curitiba
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Viabilização
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Nesta 5ª edição, é a primeira vez que a Mostra Cena Breve Curitiba acontece por meio dos dispositivos da Lei Municipal de Incentivo à Cultura de Curitiba. Nas edições anteriores, a Caixa Econômica Federal era a entidade que apoiava diretamente o evento.
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Bate-papo
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O bate-papo da próxima segunda-feira, dia 23, no Teatro da Caixa, e as apresentações que acontecerão de 25 a 27 de novembro, no Teatro da Praça, em Araucária, terão entrada franca. Também não será necessário pagar ingresso para acompanhar as discussões, que acontecem de 20 a 23 de novembro, a partir das 11 horas, na sede da CiaSenhas, na Rua São Francisco, 35.
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Festa
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No próximo sábado, dia 21, acontece uma celebração: a festa da 5ª Mostra Cena Breve Curitiba, nas dependências do Original Beto Batata (R. Professor Brandão, 678), no Alto da XV, a partir das 23h, com discotecagem de André Abujamra.
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Márcio Renato dos Santos

otavio linhares

Linhares

Aos (meus) amigos
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porque são vocês que estão aí, sentados
com os olhos cheios de lágrimas
de alegria
de ver espelhado em meu peito
as suas próprias fotografias
porque são vocês
que desse lado amam sem pedir
trocado
são só doação
que abnegam seus desejos por causa dessa
maldita dor que é comum a nós todos
que possuem um colo tão grande
de deitar
cafuné toda noite
em meio a toda essa nossa boemia
que nos sustenta
que alimenta com migalhas polvilhadas
nossa alma vadia
porque se eu ainda vivo e tenho
vontade (porque) existir
se eu ainda amo e tenho
essa pobre inocência de ridicularizar
a mim mesmo
é porque é em vocês que vejo
todos os meus desejos
todos os que são meus e que são seus
que se bastamem todas as nossas rodadas
nossas latas amassadas
pelos corpos uns nos outros
sorrindo
da vida adoidado
na beira do fio do meio
no meio da vida uns dos outros
se tudo o que tem um sentido
tem um sentido
é só por causa
dessa nossa réu ação
culpada em todos os casos
descasos
percalços
nossos olhos descalços
que só encontram paz
quando se entrelaçam na noite
bandida dos nossos dias

Otavio Linhares http://otaviolinhares.blogspot.com/

terça-feira, 17 de novembro de 2009

uma epígrafe

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meu coração foi surrado por uma corja de borboletas
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Rodrigo Madeira

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

alexandre nero e leprevost, amanhã, terça-feira, dia 17, no wonka


http://www.alexandrenero.com.br/ http://twitter.com/alexnero

http://twitter.com/LFLeprevost

Amanhã, terça-feira (dia 17), eu e meu bróder Alexandre Nero estaremos no Wonka Bar, a partir de 21:30/22 horas, apresentando uma série de canções e poemas.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

alexandre nero e leprevost, terça-feira, dia 17, no wonka

Clique no desenho pra ver maior
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O Nero (http://www.alexandrenero.com.br/) divulgou assim lá no blog dele (virou nosso release, hehe), veja aí que legal:
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O Wonka Bar (local que gosto muito aqui em Curitiba) me convidou para participar do projeto Terças Experimentais, composições de primavera. Onde cada terça-feira do mês de novembro apresentam-se dois compositores.
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Nessa terça, dia 17, estarei eu e meu compadre-parceiro-e amigo bom de briga LF Leprevost.
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Será uma apresentação íntima, pequenininha... apenas nós dois, só dois violões. Desarmados (e perigosos), mostrando canções inéditas, parcerias, poemas e algumas gracinhas (porque ninguém é de ferro).
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Eu irei cantar algumas músicas que estarão no novo Cd. É pra sentar, beber e ouvir. Nem se animem muito, pois não será um show com balanço e pra dançar. É show pra gente boa da cabeça e doente do pé.
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A apresentação começa por volta das 21:00 (22:00 pra ser mais exato, eheheh).

uyara torrente cantando lobotomia, de leprevost e troy

Olha o que achei no YouTube: Lobotomia, uma composição de Troy Rossilho e Luiz Felipe Leprevost (eu mesmo). É um registro do primeiro show d'A Banda Mais Bonita Da Cidade, do dia 09 de maio, 2009, no Teatro Municipal de Paranavaí. A banda na época era formada por Uyara Torrente (voz), Thiago Chaves (guitarra e voz), Vinícius Nisi (guitarra, baixo e programações), Gleyson Menegucci (baterias) e Diego Placa (baixo). Lígia Oliveira era a responsável pela produção executiva da coisa toda. Quer mais? Vai lá no www.myspace.com/abandamaisbonitadacidade.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

revista lama na fnac

Clique na figura que ela fica maior

se te conto uma mentira

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há muitas maneiras de se referir a um amigo alcoolizado... uma delas: estava podre de bêbado. e outra: saiu daqui miando

ele: tô caminhando todo dia. ela: no Parque Barigüi? ele: não, na esteira. ela: í, é o pior. ele: por quê? ela: não leva a lugar nenhum

um farmacêutico genérico: alô, opa, e aí dona, o que vai hoje?, sei, pó, uns ansiolíticos, pó, uns psicotrópicos, pó, sei, pó e uísque

a barba, daí o banho, perfume, roupa nova, prepara-se com esmero para o encontro que, por alguma razão alheia a sua vontade, não acontecerá

um morto iludido: eu nunca devia ter aceitado vir parar no fundo da terra... esse não é um bom lugar para os vivos

a gente nunca volta, a gente só vai, mesmo voltando a gente nunca volta, só vai, e é por isso que o metrô tem duas frentes

é o que sempre digo para atores e escritores muito jovens: uma só palavra e será salvo de viver o real

não perca tempo nem energia, não escoiceie se você não é burro, jegue ou mula

ele lhe fala de vez em quando de modo grosseiro, e ela gosta... é que ele é uma mistura de canalha com poeta

porque não parava de olhar outras na festa e saiu com essa “meu bem, os olhos são solteiros, mas o coração não”, ela lhe bateu com a bolsa

há escuridões que mordem, há os bisturis da bruma... o medo é isso: não ser possível andar mais rápido do que as próprias pernas

os últimos níveis de lucidez também produzem delírios

dentro do frio faz frio

eis outro roteiro possível: o mesmo

não dava frutos, só frustros

ela pede abraços para o amante, carícias no clitóris, beijo na boca, mas ele só quer sexo anal, sexo anal, sexo anal

tudo é absurdo: o orvalho e a ferrugem, a sedução e o desprezo, as aves, os bichos do fundo do oceano, as ramagens, as bromélias, as janelas

tudo é impossível: a simetria, as dádivas, a esmeralda, as espumas, a neblina, os ossos, as catedrais, as janelas

fim de tarde, ao baixar me faz apaziguado o sereno... Santa Felicidade... ah Santa Felicidade

é óbvio que você conhece a fama das belas praias da cidade de Curitiba

Seu Jarbas... todo dia cachacinha ali no Bar Stuart depois do expediente na imobiliária

você é uma mulher feliz?, lhe perguntaram. claro que não, ela disse, imagina uma mulher feliz, que coisa mais fora de moda

um lutador: passei a guarda, mata-leão, a melhor chave de perna, soco no nariz, fiz cuspir o protetor, pedir água, aí ele me beijou, na boca

uma avó: a tv é minha caixinha de primeiro socorros, quase que não enxergo, mas se o volume estiver no máximo, aí dá para ver alguns vultos

posso dar carona. posso dar carinho. também posso dar carona e carinho

ele: detesto tua poesia, deveriam decepar tua mão. eu: odeia tanto assim? ele: falta depuração. e eu: falta depuração mas tem perturbação

um dia eu entendi, aquilo era o butô do mick jagger

sabe, houve uma época em que tive miragens nos olhos em vez de pupilas e retinas

sempre achei que a gente devia vir como que com aquelas barras antipânico dentro da gente

um carinha: ê, olha aí o boy querendo tirar onda de bandido

não notaram ainda que sou um exagerado mínimo

não notaram ainda que sou um minimalista do exagero

imagine um gato num dia de muito calor, ele acabou de cair do 13º andar, suas vísceras vão explodir em instantes

ele: porra, quase soquei a velha, só não fui pra cima porque é mulher, senão, vai se fudê, me chamar de drogado na frente de todo mundo

os infectologistas deveriam conhecê-lo, ele é sujo, fétido, doentio

PÉM PÉM PÉM PÉM PÉM (isso é a incontrolável, e em caixa alta, onomatopéia de um alarme)

ANHE, ANHE, ANHE, AIEEE (isso também é a incontrolável, e em caixa alta, onomatopéia de um alarme)

solidão, velha morada, como vai você?

a solidão não é um dos melhores lugares para se estar

se bem que a solidão pode ser últil, todavia

digo, para aquele que é fútil a solidão pode ser útil (auto-conhecimento, aquela coisa toda)

é sério, acabei de ver um elefante dentro de uma caixa de fósforos em chamas

uma mãe: olha, filhinha, se alguém quiser pegar no seu bumbum ou na pererequinha, você não deixa, e vem correndo contar pra mim, viu

há anos ele vem se guiando pela bússola da contramão

o verdadeiro exterminador do futuro é o presente

escrever, escrever, escrever para alimentar esse cãozinho interior chamado alterego

acabou de se despedir com beijos, que julgaria suaves, não fosse isso de estar me sentindo um peixinho preso ao anzol por um fiapo de lábios

o mormaço se espreguiça no terraço, aí o gatinho chega e recebe seu abraço

enquanto se vai perdendo os dentes, vai-se perdendo a memória, pois não

arriscar tudo como pisasse em gelo fino sobre o lago frio

ela: tô muio doente. ele: todos estamos, mas posso fazer algo por você, além de desejar melhoras? ela: pode sim, para de me envenenar

excesso de realismo ainda é realismo?
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manual de putz sem pesares

O vilarejo (pequenos estudos)
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Vilarejo
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Dez anos após ter subido aquela Serra uma última vez para ir ao enterro de Consuela, eu agora a olhava novamente e não a reconhecia, sua floresta tão esverdeada feito pêlos espessos por sobre um corpo repleto de curvas, montes, secretos oásis. No entanto, a mim me via a Serra não como a um desconhecido, mas como alguém que de si se desconhece. Assim, após uma década, botei dez fugentes olhares, dez olhares estapafúrdios, dez olhares com dez pupilas cada, dez vertigens enfim sobre a Serra e seus aclives, vales, entremeios, caminho único para se retornar ao Vilarejo, aproximadamente a 120 km da cidade onde moro.

Apesar do forte cheiro de mimosa, logo que se desembarca no Vilarejo, percebe-se que algo não veio junto. Ali as coisas são assim: Você não duvida que tenha morrido um pouco, morre-se ao entrar naquele região, morre-se, aliás, com a mera intenção de visita-lo. Sobre a morte mesma, aquela da qual ninguém voltou, não há o que ser dito. Mas essa morte de quem ingressa no Vilarejo, essa tem variados aspectos. Um que ocorre é o de que a morte é quando não nos acompanha nossa sombra. Conto, entenda-se, não porque esteja morto, mas porque em dias cinzentos como esse é impossível que nos acompanhe nossa própria sombra, pois não. Daí a dúvida: Estamos vivos, mas pode ser que inseridos em algum modus dos já desencarnados, já que não nos acompanha nossa mais fiel companheira. Um ser humano sem sombra esqueceu-se de si, perdeu seu lugar. Alguém sem sombra é alguém assombrado.
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Armazém
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Quando cheguei, após essa década, entrei no armazém, diferente de como lembrava que ele era, com sua bruxuleante luz amarela, modorrenta no teto e seu quase nada de produtos a venda. Fui atendido por uma senhora cujas rugas mastigavam, despudoradas, o rosto, sem cessar. Pedi cerveja preta, serviu-me. E no que fazia a ação de despejar o líquido em meu copo, pensei reconhecê-la. Puxei pela memória, mas não, diluía-se quaisquer resquício que teimasse em disfarces passadistas. Não puxei conversa e a senhora foi atender suas moscas clientes, servi-las doces e restos de refrigerante. Fiquei ali, quieto, escutando o que a cerveja me dizia cada vez que trazia o copo à boca. Então olhei para velha como que a examinando: sim, trata-se de uma mulher somando para além dos oitenta anos de existência, não resta dúvida. Todavia, os espelhos da parede oposta ao balcão onde estou ainda parecem lhe ser úteis, mesmo que exponham para ela mesma a precariedade de sua presença física, caroço humano que era, porém não oco.

Até que: Me Deus, já sei quem é a velha do decadente armazém, aquele protocolo carimbado por ninguém menos que o tempo. Mas como, se hoje estou com trinta anos e quando a conheci, dez anos atrás, ela não passava de 16 aniversários compilados. Então era verdade, a maldição. Contava-se de uma enfermidade herdada dos claustros do Sanatório, que algumas mulheres que por lá estiveram contraíram algo inexplicável, causador de envelhecimento precoce. Mas quando conheci Cília o Sanatório já estava desativado, era quase impossível que ela houvesse se contaminado com tal doença. E eu que sempre suspeitara fosse pura crendice, ou folclore. Agora tudo tinha clareado: os cabelos grisalhos de Cília, mesmo ainda jovem. E também os cabelos de Consuela, aliás, foi disso que Consuela morreu, de envelhecer mais rápido que a linha normal dos anos. O destino agia apressado para as mulheres daquele Vilarejo.
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Habitantes
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Nem sei como recordo de todo aquele branco. A lembrança é espessa mancha derramada, não na escuridão, senão nos buracos do esquecimento. Não sei como ou por que me recordo. O Vilarejo, onde me encontrei e depois perdi-me no que dele perdi. Cília, frioerenta Cília. Como apagar da memória uma paisagem que quando a vislumbramos uma primeira vez, tudo o que dela vimos era de um teor branquíssimo, como se uma borracha houvesse já sido esfregada por ali? Pois, branca é a geada. Branco é o sol que derrete geadas, tão branco que há quem o confunda com os luares mais claros, levando-se em conta que não menos claras eram as noites no Vilarejo. Não sei se eram todas as luzes ou se nenhuma delas, mas quanto conteúdo havia ali, um lugar cheio de dedos e dentes. Brancos os dentes (daqueles que os ainda possuíam) também o são, mesmo estando fechadas as bocas, especialmente daqueles que por anos estiveram sob os cuidados do Sanatório e hoje cavam iglus nos barrancos de terra roxa, que lhes servem de habitação para lá de certos cafundós. E brancas são suas peles (como, aliás, de toda a gente nativa do lugar), excluindo a pele das anciãs que se constituem do cinza que as abraçará quando de seu falecimento. Brancas suas unhas são, até que estejam pintadas de terra quando tanto cavarem. Mesmo seus ossos, certamente, apresentam das transparências a mais esbranquiçada (soube graças a série de exumações ordenadas pelo governo, pelo suposto de que houvesse ouro debaixo do cemitério em que esquizofrênicos, psicóticos, bipolares etc foram enterrados sem pompa ou rito). Branco, branquíssimo. As veias, porém, comumente bordôs, o que garante que não deviam de ser confundidos com fantasmas os moradores do Vilarejo, já que algum sangue derramara-se por sobre suas gramas esbranquiçadas de geadas. E vai que o céu expunha um teor ardido em contraste com o frio de lâminas no que tanto a tarde quanto a noite e a manhã se igualavam em tons marfim, diante das estáticas escuras janelas, duas no máximo em cada dos aproximadamente mil setecentos e nove casebres que constituem a coletividade, onde só não eram pequeninos os jardins porque cercados não existiam ali, excetuando os indevassáveis muros do Sanatório, tudo interligado por ruelas de chão batido, algumas de barro que ao secar mais pareciam sangue coagulado, e outras ruazinhas com redondas pedras que, às vezes, surpreendiam os transeuntes com coaxares, pois se assemelhavam com gorduchos sapos arroxeados, de tal modo que o trânsito de vira-latas e jegues, ambos espécimes cobertos por pelagem de coloração que lembra o gelo, quatro patas em cada qual a concorrer com dúzia e meia de bicicletas, tudo ao fim se alargando para além de um amplo deserto também níveo, posto que de brancos grãos a totalidade dos desertos se compõe, assim como brancas as almas deviam de ser (a minha, a de Consuela e a de sua irmã Larissa, a de Cília, e mesmo a de Bigorna), assim como a paz no Vilarejo branca certamente não era.
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Sanatório
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Contar que o Sanatório era um dos lugares mais assustadores da terra é contar pouco do óbvio. Bem, eu precisava fazer uma visita, mesmo ciente de que a maioria dos moradores do Vilarejo evitavam passar por ali perto. O Sanatório era um lugar que doía, você adentrava suas dependências e uma força centrífuga sugava sua energia em segundos. O que se conta é que logo após ser desativado, em uma das alas, o Sanatório abrigou, por intentos de Gregório Leite, um Cinema, que não vingou e colapsou após os entusiásticos três primeiros dias de exibição das películas. O curioso foi que, por artes de Gregório, as projeções voltaram a iluminar o Vilarejo, desta vez nas dependências da Igreja, também desativada. Cine Colírio, o nome de batismo, que para sua inauguração dizem ter sido lavado com água benta. O padre que se ocupou da cerimônia foi chamado de Ponta Grossa, pois há muito não havia presença de religiosos no Vilarejo, há anos a Igreja estava obsoleta, sabiam que não encontrariam Deus lá dentro, pois Deus era decepcionado com o lugar.

Vá de retro! Vá de retro!, o que se ouvia quando pus pés e sentidos nas dependências daquele prédio fundo feito um navio soterrado, longo feito um túnel com uma entrada e sem saída alguma, escuro feito a garganta de uma fera sacrificada. Uma galeria de amaldiçoados: Conta-se haver uma paciente que mais do que linda fosse eterna, linda e eterna. E isso não podia, então trancaram-na. Tinha um outro que estimava-se a si tanto que vaderetro! E trancaram igualmente aquele que sorria e era todo gengivas, um rosto-sangue. Vá de! Que havia meia dúzia de meninas peraltas, buliçosas, pérfidas até que. Trancados, trancados todos. E os bocós de mola, os de paladares oblíquos, os de sopitosa audição, os que grunhiam, os rútilos olhinhozinhos, as mandíbulas marrons, vá de! Que são os desígnios da quimicamente remediada solidão, assim que naquele pântano de antiséptico concreto excrescências triplicavam em odores a memória de espectros e seus estertores. Aquela lutuosa edificação por onde esquisitos homens, atônitas fêmeas, andrajos seres e agora eu, branco bratáquio visitante, apertava-me de frio e curiosa náusea. Havia com meus ímpetos aventureiros, de espantado pesquisador, de ler nas paredes dos quartos: “Isto aqui é um o pomar das dores, tubarões e morcegos perfuram tímpanos, e os joelhos retorcidos...” Sim, era interpelado pela cruenta galeria de seres e sua memória que, incendiavam-se incidindo em minha direção, descortinados, e há muito sem a medicação dita necessária, vaderetro! Ali estava eu com o cu na mão, como dizem, sem autorização de ofício, sem acompanhamento de enfermeiros ou guardinhas noturnos. E ali estava o monumental Sanatório. Em contiguidade ali estávamos nós, todos os insanos.
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Consuela e companhia
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Deixe-me voltar ao passado, estou me precipitando. Foi assim: A bordo do último ônibus da Viação Cometa, eu Rubinho Spalman, cheguei a primeira vez no Vilarejo altas horas da noite. Consuela estava atrás de uma cortina que a escondia, mas (de tão fina) a mostrava mais do que ocultava, formas que lembravam flores na ventania. Ao lado, um cachorro desajeitado com cara de jegue trombando nos móveis da grande sala e cozinha, um ambiente só dividido em dois. Havia também três homens, com trajes brancos bastante puídos, jantavam e riam. Conversavam, e me soavam desconexos os assuntos. A pensão toda estava iluminada por velas, que pareciam pingar sutis em nossos olhos marejados de neblina e chá preparado pelas mãos feiticeiras de Consuela. No outro dia, após reforçado café matutino, saí passear por regiões afastadas do perímetro urbano. Fui pela periferia que resistia, sempre fui desses de gostar de contemplar esses lugares de antes de haver existidas as metrópoles. Quero morar em regiões assim, o saudosismo angustiado de não ter havido casas de madeira, samambaias na varanda e hortênsias as cercando. Nasci em meio a prédios e automóveis, e vivi sempre na zona central de Curitiba. Próximo ao Vilarejo havia bosques desvairados, estradinhas brancas que levavam até vacas distraídas pastando lá na idade da pedra, ruminando paciência. Patinhos tristes no escuro da lagoa. A planta ainda era viva. E para sombra lilás de galhos e nuvens uma gralha retornava ao noturno do inverno carregando uma sacola que vazava estrelas. Queria conhecer o Vilarejo a fundo, mas meus pais me proibiram de me hospedar na velha cidadezinha, com o argumento de que hoje em dia só marginais transitavam por lá. Por lanchonetes escuras, armazéns de madeira úmida. Refúgios de gentes falidas. Ruas ruidosas, barulhenta, buzinas de motocicletas. E os teclados sintetizadores misturados com sanfonas na madrugada. Estragadas mulheres tagarelas. Tantos gatos pretos, porém, que funcionam como manchas de óleo a correr as ruelas do Vilarejo. Fora isso, meus pais estavam errados. Ali conheci Boca Grande, Larissa, Cília, Gregório, tão bacanas que só o que faziam era se beijar o tempo todo, parecia que desejavam um engolir o outro. Consuela era já demasiado velha. Eu pensava que Larissa, que claramente não teria mais que 16 anos, fosse sua neta, mas não, Larissa não era neta de Consuela, era sua irmã. Bigorna, o cão, que ficava solto, circulava livremente pelas dependências da pensão. Sempre que Bigorna estava por perto provocava certa tensão, eu o temia mais que aos dragões que dizem bater asas lá nos bosques. Pensava que a qualquer momento Bigorna abriria suas asas, mostraria a língua para nós e alçaria portão afora gargalhando chamas enquanto Consuela tirava os pratos da mesa de jantar. Curioso o Vilarejo, mais curiosa ainda a pensão. Uma lagartixa, não com X, mas com CH, segundo Larissa, espreguiçava-se recém acordada de um sono sem relógios e defendia os tijolos da parede de ataques aéreos dos mosquitos que, não obstante, pareciam ter sido treinados para fazer-nos coçar. Então, sentindo nó por nó meu sangue se desmanchar comecei escrever algumas impressões na toalha que revestia a mesa escalpelada sobre a qual fazíamos as refeições. Era uma série de poemas sobre a cidadela tomada por lupanares, comércios ilícitos e tudo o mais. O pessoal do Vilarejo não sabia mais que resoluções tomar, tentavam evitar que o trânsito de pessoas vindas de lugares inóspitos atracassem em seu porto de geada. Eu não sabia, tampouco perguntei, o que pensava disso minha anfitriã Consuela, no entanto, quase ensurdecia de medo quando aquela besta denominada Bigorna resolvia me interpelar com seu próprio focinho e presas à mostra. Ele queria meus pratos de barreado, segundo um dos enfermeiros aposentados moradores da pensão. Então eu pegava o prato com a mão e de algum modo detinha poder sobre Bigorna, e chegava a acreditar que saberia adestrá-lo à minha maneira, caso optasse em fazê-lo. Mas deixava para lá, embora houvesse reparado que nem os nativos Larissa e Boca Grande, e mesmo Consuela, ficavam constrangidos por presenciarem essa minha perversão incontida. Em resumo, estava sendo aquele um frutífero feriado. É claro que era impossível não achar graça quando um novo hospede chegava e em sua direção Bigorna lançava seus guturais latidos. A graça, no entanto, estava não nos latidos, porém no fato de que um dos homens, um coxo, apoiou-se sobre uma perna só e mirou a bengala na direção de Bigorna, e assim pudemos reparar que aquilo não era uma bengala e sim uma espingarda de duplo cano. Bigorna, para minha surpresa, calou-se imediatamente, abanou o rapo e fugiu para o jardim. Na manhã seguinte eu iria embora, por esse motivo o chá preparado após o jantar era de especial teor, disse-me Consuela. Após a segunda xícara eu não escutava mais nada das conversas desconexas e sem lógica dos enfermeiros aposentados. As velas em segundos começaram a ser decapitadas pela lâmina de um vento escuríssimo. Lembro-me apenas vislumbrar um tanto ao longe Consuela e Bigorna de mãos dadas cantando um rock melodramático. Nada mais.

E assim passei a frequentar o Vilarejo de quinze em quinze dias. Aquele era meu paraíso. Aquelas pessoas, meus únicos amigos no mundo. Por isso, quando Bigorna ficou doente e Consuela se viu obrigada a procurar ajuda médica em Curitiba, já que o Hospital local sofria reformas há mais de quatro meses, foi para mim que ela enviou uma carta: Venha logo, Bigorna está morrendo, preciso de sua ajuda. Para o bem do Vilarejo, diga-se, o que outrora fora um Sanatório, com mínima ala destinada a problemas gerais da população que não houvesse relação direta com a loucura, acolhendo-se em tal ala improvisada clínica veterinária, inclusive, agora o governo promovia sua reforma. De qualquer modo, estava inconsolável a minha amiga. Bigorna fora seu mais íntimo companheiro. E agora estava no porta-malas do carro que um dos enfermeiros aposentados nos emprestou para levarmos o cão a algum lugar que merecesse que ali o enterrássemos, segundo palavras da própria Consuela. Veja, o trânsito vai como um afluente, às vezes quase seco, em outras trasbordando ferocidade, disse-me ela durante essa única e última vez em que esteve em Curitiba. Porém naquele dia o trânsito estancara. Talvez por culpa da massa pesada de calor que o sol derrubava sobre nós. No rádio do carro tocava uma melodia que hoje traduzo por água mansa raspando pedra de fogo. Ao longe uma ambulância desesperava músculos e gargantas, vinha cortando as águas daquele rio caudaloso de lata e asfalto. Os carros assustados feito cardumes de peixes abriam espaço. Quando se pensa em sangue e morte as pessoas respeitam respirando para dentro, disse-me e sorriu manso a anciã Consuela. Olhei para ela, que contemplava o ir das pessoas na calçada, e lamentei: Sirene sempre me comove. Jamais haveria sirenes ao socorro de tipos como Bigorna, retribui-me Consuela. Anos depois, no dia em que a própria Consuela faleceu a ambulância demorou demasiado para vir socorrer sua despedida. Seria ela da mesma estirpe que Birgorna? Era madrugada e quase não havia trânsito de vivos. O telefone tocou lá em casa, intrometendo-se no sonho de toda a família. Larissa era quem trazia até mim a notícia. Consuela do alto de seus 126 anos estava passando mal, alarmava-me sua irmã de 16. Em mim um oceano se atormentou. Minhas roupas correram ao socorro da amiga velha antes de eu me dar conta completamente. Peguei mais outra vez emprestado o carro de meu irmão e acelerei em direção ao Vilarejo. Foram duas horas de viagem angustiada, minhas mãos suavam segurando a direção, pois me assombrava a idéia de que seria a última vez que veria Consuela, autora de tantas alegrias que colecionei durante a vida desde que havia, à revelia da família, começado a freqüentar a região. Cheguei e a pensão de Consuela respirava com dificuldade. Peguei suas mãos apoiando sua morte e chorei, nada mais poderia fazer contra aquilo que não se explica. Estranho como as coisas são, o resgate nunca consegue acompanhar a velocidade do desespero. Os médicos chegam com a sirene das pálpebras ligadas, porém cansadas. Parece que vêm buscar alguém para um passeio. Parecem não querer despertar o sono derradeiro e infinito a que se encaminha o que precisa de socorro. Quando conheci Consuela ela já tinha cabelos brancos, e os raspava. Rugas na face e o corpo encurvado. Nunca vi ninguém desrespeitá-la. Dizem que esteve à passeio no mundo. Por conta disso não encarei como erro grave o atraso dos médicos, os mesmos médicos que ela hospedou e alimentou durante anos, desde quando o Sanatório fora instalado próximo a sua pensão. Ali ia embora depois de ter olhado esse mundo como quem vai ao circo a minha amiga. Como quem senta em uma varanda e contempla o enorme lago sitiado no coração do Vilarejo partia Consuela, sem que jamais houvesse reclamado das picadas dos mosquitos que, talvez, tenham sido seus mais fiéis companheiros após a morte de Bigorna e a partida de Larissa para não se sabe onde. Quem sabe ela tenha vivido por aqui apenas como quem patina sobre o gelo e ri depois com a perna engessada. Era como se a geada aparada de seus cabelos tivesse mantido por toda vida sua cabeça fresca. Daquela vez comigo no carro, quando procurávamos a cama do descanso eterno para Bigorna, quando coincidentemente por nós passaram os escândalos apressados de uma equipe de salvamento, Consuela disse sem indiferença: Como dirigem mal estes motoristas de ambulância, um dia ainda matam alguém de tanto que correm. A Velha Consuela era esperta. Tricotou direitinho toda sua vida em um pano branco e limpo. Pressentiu sua despedida. Foi embora como quem pressente o odor da chuva se armando no céu claro. Fez-se a neblina em seus cabelos perfumados pelo orvalho das manhãs. Fizeram-se molengas seus tríceps, abraços de água sem correnteza. Trazia sempre para a mesa o almoço feito um discreto e alegre pinguim. Personagem de fábulas que se apagam em um dia intacto. Agora está lá a velha, retida no coração fosfóreo da terra, habitando o escuro. E aqui vamos nós iludindo a idade dela não estar mais por perto.
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Cília e Larissa
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No armazém olho para a senhora. A juventude de Cília se foi, foi-se a rigidez das fibras de quando ziguezagueava montada em sua bicicleta. A juventude dela derreteu feito um cubo de gelo sobre a frigideira. Cília, aquela tão cheia de alma, hoje pensando que viver é apenas uma quimera, uma piada sem graça, essa senhorinha que só conversa comigo porque nesse momento me igualo às moscas, suas únicas ouvintes. Ela busca-me outra cerveja lá na geladeira vermelha que pede socorro. E se faz o que faz é porque está viva, e se ainda está viva pode que ainda lhe sobre algo armazenado daquela Cília que conheci há dez anos e que se mostra aqui como que se eu a conhecera há mais de oitenta. E se ainda é Cília, para mim ainda é bela. Cília, essa triste senhora no balcão de um armazém, que era uma das que galopavam bicicletas. Em tardes ensolaradas, via-se, Cília era loira. Contudo, somente nas tardes de sol, já que na maioria dos dias, que eram de um acinzentado pós-apocalipse, a cabeleira grossa de Cília ostentava a antiguidade da cor grisalha, assim como a das mulheres que somassem anos para além dos noventa, assim como devia ser a cabeça de Consuela, caso não fosse raspado à zero. Os músculos de Cília, em contrapartida, expunham a mais potente das vitalidades. Ao pedalar Ladeira do Mercadinho acima não havia pernas que ultrapassassem as da menina. Eram dois pernões bem definidos, saídos com petulância da bermuda. Esse é meu pensamento cheio de lembranças: Cília pedalando a bicicleta ladeira abaixo vinha agora, faceira, as orelhas surdas de vento, as bochechas coradas, rubras sardas. Da blusa os peitos tentados a saltar fora. Vinha que vinha a nem sei quanto por hora. Não conseguiu fazer a curva, derrapou, de nada lhe serviu o freio. Os aros, entortados. Dobrado em Z o guidão. As duas coxas em frangalhos. A vi essa primeira vez quando acompanhei o tombo que levou à porta no Mercadinho. Embrutecida, em carne viva joelhos e cotovelos, Cília fincou-me seus olhos amarelazuis de não mais que 16 anos inchados de paixão. E foi ali que se deu. E eu cedi.

Será que ela se lembra de mim? Do que vivemos? Cília, chamei-a. Ela se virou como que tendo que dobrar algo quase não dobrável, demorada como quando foi buscar as cervejas. Ela sabia que era eu, e sabia mais quem era eu do que eu mesmo. Cília, é você? Ela se aproximou: Talvez, por quê? É que anos atrás eu conheci uma menina, pensei que... Nesse Vilarejo já não existem meninas, e o fenômeno não é de agora, as que ficaram foram infectadas. Cília, você não me reconhece?, disse a interrompendo. Ela fez uma expressão de dúvida bastante dissimulada, depois: Reconheci-o desde o primeiro segundo que colocou os pés aqui. E por que não falou nada? Cília estava a fitar a rua como se de lá viesse a resposta. E veio: Vergonha, tive vergonha de você, Rubin. Então era verdade, Cília, a maldição? Você já respondeu, querido. E Lari onde anda? Então Cília passou as mãos sobre a mesa com toalha de plástico com flores apagadas como que limpando farelos de comida que ali não havia, depois disse: Larissa... nunca mais soube dela.

E Larissa, Rubin?, desta vez foi Cília quem perguntou, você nunca mais a encontrou? E deixando escapar um resto de mágoa, antes que eu pudesse respondê-la, Cília, ao abrir-me uma terceira cerveja, disse: Foi passar uns tempos fora, nunca mais voltou. Lembrava, sim, da última vez que eu encontrara Larissa. Ela estava trabalhando como vendedora em uma loja do centro, em Curitiba, e certamente a sua juventude ainda a acompanhava, apesar de ter nascido no mesmo ano que Cília nasceu. Foi um papo ligeiro, mas Lari não parecia feliz. Ela me perguntou como iam as coisas. Tudo calmo, Lari. Ela quis saber se depois da morte de Consuela eu também nunca mais havia estado no Vilarejo. Eu disse que jamais tinha colocado os pés no Vilarejo novamente. Lari sorriu e disse: Aposto que o Vilarejo todo ainda tem aquele cheiro de mimosa, depois foi atender um cliente que acabava de entrar na loja. Quando ela se virou eu ainda dizia o meu claro que tem, Lari, o cheiro de mimosa nunca vai nos abandonar.

E você, Rubin, o que o trouxe de volta ao Vilarejo?, quis saber Cília enquanto despejava cerveja no meu copo. Trabalho para uma empreiteira, Cília, são pessoas importantes, têm interesse em instalar um fábrica no prédio onde funcionava o Sanatório, enviaram-me para uma avaliação. Ah, uma fábrica, balbuciou Cília, de quê, de velhas precoces?

domingo, 8 de novembro de 2009

se te conto uma mentira

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o silêncio são horrores de palavras

melhor fechar as persianas, me transformei em alguém que os vizinhos não poderão suportar

o velho hipocondríaco não aguentava mais esperar, já era mais do que chegada a sua hora

a treva e o amanhecer são um pacto de há séculos

a bruma é uma coisa que cria esconderijos no ar

em nosso país muita gente foi analfabetiza

os primeiros livros que ele leu foram encartes de cd

uma mãe: se não calar a boca e parar de incomodar tua irmã, te largo na rua e você vira mendigo, quer ver? ein? então fica quieto, piá chato

na cozinha, abriu a geladeira, pegou o iogurte, fechou a geladeira, rasgou o lacre do iogurte, voltou pra sala, o bigode lambuzado

e então criei uma marca de roupa chamada despe-te

você piscou e eu desapareci. meu deus, pra onde ele foi? fui pra dentro da sua cabeça

o instinto não é uma casa, é uma selva

meu pau não é dos maiores, mas sei usar bem

meu fraco são as axilas

e a nuca... a nuca também

o carro é para o posto, o cavalo para o pasto... para nossos dias, bicicleta... ou vai de pedestre

vagalumes são a bússola da noite que navega até aportar na manhã, que, por sua vez, é a união de trilhões de vagalumes — daí sua claridade

a solidão é boa conselheira, mas se a ouvirmos por longos períodos, ela passa a exercer uma péssima influência

nunca sofri influências de grandes artistas, gozei essas influências

naquela noite, encharcado de rum, ele era uma espécie de rimbaud ribombando uma rumba bem ruim

se a ciência um dia conseguir uma geração inteira de humanos não perecíveis, o que será da humanidade?

esses troços, os paradoxos

primeira aula do curso de masoquismo: disfarce-se de lombada e deite numa estrada

o que mais vendia naquela esquisita sorveteria era o sorvete de rabanete

não me impressiona muito mais haver por aí essas mulheres que botam o pau na mesa

a solidão é boa conselheira, mas se a ouvirmos por longos períodos, ela passa a exercer uma péssima influência

curioso, deveras curioso, sinal dos tempos, aquela era uma tartaruga com muita pressa

foi assim, quando deu por si, estava lá, andando nos andaimes do abandono

amor, felicidade, sentimento de vingança e tudo o mais, apenas vagas vagas vagas idéias se desmanchando na memória da velha

tá certo, num país como esse a gente é alcoólatra ou evangélico

síndrome de lagartixa: a pessoa dá, dá, dá, mas finge que o rabo está inteiro

tudo o que trazia era um motel mental sob o cabelo sujo naquele cérebro de minhoca, por tal motivo, pensava mais com a cabeça de baixo

o anel não tira nunca, nem para dormir. só tira o anel para cagar. o relógio não tira para cagar, mas tira para dormir

não é meu caso, já que não uso anel nem relógio

lê feito quem come, natural que escreva feito quem vomita

sou um maldito cão que não respeita o dono... e olha que eu mesmo sou o dono

era um homem todo errado... que fazia um baita esforço para se manter assim

a taça de vinho é um sol negro sobre a mesa

a felicidade é a única máscara que não mascara

ternura, ternura mesmo, é chorar lendo um poema do vinicius de moraes

não conseguia dançar música que não entendesse a letra, é que na verdade não dançava a música, dançava a letra

se te conto uma mentira, ela aconteceu

eis que presencio pombas raivosas atacarem um pipoqueiro

velho poeta debruçado sobre a escrivaninha... autor premiado, para quem cada página preenchida é motivo de comemoração e intervalo para o café

a busca exagerada pela simplicidade também é uma espécie de megalomania

não sei até quando vou aguentar, infelizmente algumas pessoas nunca acabam de me destruir

se fosse escrever o diário da minha vida, escreveria apenas sobre as coisas das quais não me lembro

dalton trevisan é o inventor do twitter
.

sábado, 7 de novembro de 2009

pomplamoose

Pomplamoose http://www.myspace.com/pomplamoosemusic, coisinha mais direita que encontrei no blog da minha querida Bruna Beber http://didimocolizemos.wordpress.com/

alaranjado das pombas

Estripulia

dele não se diz feio, porém complexo
contraditório, exótico
seu recheio não orna nada com nada
nem é lógico
precisa não o que adorne
porque tem o raro na forma e
o sarro no biótipo
precisa não melancia no pescoço
não rezar Pai Nosso
não comprar consórcio ou
consultar I-ching
ou vestir piercing
tem a cara de pato
pata sem botinha ortopédica
pés tortos
porém, torto, vai no caminho certo
mesmo com tronco de corpo de
porco ele é o mais fofo
e o fofo o bumbum não empina
ele é o esperto do rabinho chato
prático para cavar perto da
água, para botar os ovos
é mesmo esquisito
quando chega com afinco, finca-se.
é bom de briga, ruim de ginga
ruim de apostar corrida
perna de pau para partidas de futebol
gorduchinho de tanta preguiça
o colesterol lá no alto
tem um tantinho de espinhas
e um probleminha nas narinas
necessitará logo de um otorrinolaringologista
agora está com mania de artista
quer ficar erudito
ser rico de intelecto
o estrambólico da turma
é ainda o que era em outra era
sem choro ou choramingo
carrega em si três bichinhos
três em um, quem me dera
é bonito, Estripulia, o ornitorrinco?

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

alaranjado das pombas

Cru

a carne vermelha como que o
enojava, de modo que
alimentava-se com grãos de
afeto apenas, os mais variados
assim, jamais deglutiu um
amor inteiro, cru, sangrento
lutando feito a jibóia e o
boi dentro de sua bocarra úmida

alaranjado das pombas

Alaranjado das pombas

é claro que o doutor está atrasado
da janela do consultório avisto a
revoada de pombas laranjas
que ocupação a das pombas: cagar a
paz em nossas cabeças
estou aqui há horas
quem sabe há séculos
com toda essa aparelhagem que
me ajuda a respirar e
mais parece um equipamento de mergulho
se o doutor demorar mais
cinco minutos para me atender
juro que mergulho no alaranjado das pombas

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

fragmento da minha novela a neve não tem gosto de algodão doce

..........Ao acaso, encontrei com Eldorado uma segunda vez na fila do Circo Voador.
..........Pode me chamar de ÉL, não tolero formalidades, me disse.
..........Sempre que eu estava no Circo por livre associação chegavam-me à mente imagens do globo da morte com suas motocicletas velozes e barulhentas. O show da noite era com Tom Zé. Chovia. Àquela altura eu já tinha bebido todas no Arco-íris e fumado pelo menos uns dois baseados, então quando fechava os olhos Tom Zé virava um motoqueiro alucinado. O som da banda era o motor das motos. Eu suava.
..........Espremido no meio da multidão, dividi um novo baseado com ÉL, enquanto sons e luzes explodiam entre intervalos de segundos. Tom Zé detonava versos clássicos como “a Brigitte Bardot está ficando velha.”
..........Revezávamos, ele buscava cervejas no bar, depois era minha vez de trazer caipirinhas. Viramos bons amigos naquela noite. Da outra vez no Hospital eu tinha reparado que ÉL era todo ele mãos e braços que gesticulavam feito pipas que combatem no céu dos subúrbios, montado em seus um metro e oitenta de altura. Um coroa de cabelos grisalhos um pouco longos e cuidadosamente desleixados.
..........Depois daquele noite passamos a conviver quase diariamente. ÉL era bastante vivaz e enfático. Seus 60 anos de idade não lhe pesavam no corpo, à exceção dos óculos de grau, mas que usava apenas quando queria conferir a conta nos restaurantes, ou ler para mim o trecho de algum livro que o tivesse comovido. ÉL estava com a vida ganha. Definia-se como um andarilho urbano.
..........Ao fim do show, a chuva contribuiu com a gente. Diminuiu até se tornar apenas um bafo gelado. Na saída do Circo paramos para um “espetinho de carnes nobres”, segundo o vendedor, que mais tarde me fez vomitar uma a uma as canções do baiano.
..........Agora ÉL, que costumava andar pela cidade de calça de pijama e tênis, o excêntrico que ficou viúvo porque a esposa sofreu uma overdose na década de 80, era um amigo com quem pude contar inúmeras vezes. Ele realmente não me deixava abater. E essas linhas difíceis são muito também minha homenagem a ele.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

notas para um livro bonito

Foto de Juliana Zardo
a idade é uma
filha que eu tenho
.
e a manhã seguinte
sempre essa insistência
de ressurreição

domingo, 1 de novembro de 2009

fragmento da minha novela a neve não tem gosto de algodão doce

No Rio eu não aceitava que me falassem de flores. Naquela época preferia que me considerassem grotesco. Dois olhos deviam saber enxergar mais que o nariz. A creolina das ruas do Rio era o meu guia turístico. Eu estava treinando o olhar para coisas ínfimas e mundanas. Via coisas como a baunilha de um sorvete jogado na areia a se desmanchar. Caminhava pelos bairros e era como se tateasse sua decadência com o olfato. Pensava no horror da assistente do atirador de facas, o calor era o atirador e meus poros recebiam aqueles golpes que penetravam e corriam dentro. Eu não levava comigo proteção mística, apenas me acompanhava o odor imemorial uterino da minha cidade natal, eu nunca tinha sido abandonado em latas de lixo, caixas de leite vazias não eram minha mãe. Baratas, ratos, abutres não eram minha irmã. Apenas, por ser curioso, vivia como a folhar um caderno de enigmas em cada esquina. Sabia que do lado avesso daquela balbúrdia havia algo belo e limpo, um lugar de vidas e respirações que não tinham ainda apodrecido.
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Talvez eu fosse uma espécie de criminoso, um brutamontes que sentia errado e demais, alguém em quem todos os sentidos eram lama, suplício. O inchaço de meu fígado não queria rezas, cocaína ou a lua equilibrada feito um comprimido na ponta da língua. Mas apenas costurar minha tristeza como costurasse uma barriga. No entanto, tudo era em vão e eu sabia. Beijava costas, nucas, lambia cabelos onde quebravam ondas secas. As flores para mim eram fóssil no rochedo dos pulmões dos comedores de cigarros. Flores lavadas com trezentos chopes por semana em botequins abarrotados de gente.
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Naquela época eu queria muito. E tanto. E talvez não ligasse de ter as próprias vísceras expostas ao sol.