quarta-feira, 28 de dezembro de 2011


apontamentos sobre o verão: 1. o que aqui começa, o que continua? 2. meu fraco são as axilas, e a nuca, também a nuca. 3. esforço-me para ser um bicho de estimação, sou indomado. 4. veja os pombos, tendo os pés no chão ou nas alturas se faz muita cagada. 5. o verde é um personagem, o vermelho outro. 6. é sobre um coro de bêbados também. 7. a tarde e a noite, a primeira finda, a outra se estica, tudo escurece, o poema de hoje. 8. a urgência não dá espaço para escolhas. 9. a beleza está aqui na minha frente, ela dança intercalando sofreguidão e a mais morna e macia das ações. 10. parabéns aos Hércules que fingem suportar. 11. deixa a tristeza escorrer.12. sabe aquela música Doody IV, do Nei Lisboa? 13. toda fragilidade é na primeira pessoa. 14. meu pau não é dos maiores, mas sei usar bem. 15. sempre estamos aprendendo outras coisas do mesmo das coisas. 16. que alternativas tenho eu? 17. as folhas são ferrugem nos galhos, o fim de tarde colhe a luz azulejada, começa a chover, o centro alaga, devo chamar isso de cenário? 18. o poema narrativo está se reinventando. 19. a luz parece deslocada no meio do cinza do dia. 20. a poesia é erro. 21. há aqueles que sorvem catástrofes feito sorvetes sorvessem. 22. o corpo é o começo do meu texto é o meu nome completo.

sábado, 24 de dezembro de 2011


herdamos de nossa avó uma fitinha cassete com canções natalinas cantadas em italiano. todos os anos, esta é a hora em que meu pai a coloca para tocar. já tenho idade para uma dose de uísque. bebo comovido, as canções são algo de que nunca me livrarei. em minutos vou tomar meu banho e colocar a camisa nova. todos começarão a chegar com seus pacotes. sempre tenho a sensação de que não vou ganhar nada de ninguém. e por que deveria? ficaria feliz se conseguisse alguma vez ser um bom homem. de todo modo, no final, alguém aparecerá com um livro, com uma camiseta alguns números menores, um vidro de perfume embrulhado com meu nome na etiqueta. sabe, o italiano é uma lingua e tanto, e a poesia de Eugênio Montale um dia deve ter me salvado. sinto muita saudade da dona desta fitinha, aquele pinguinzinho com neve na cabeça, meu verdadeiro papai noel. todos os anos, esta é a hora. nada pode ser mais belo, triste e necessário.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

peça de teatro

muitos, infelizmente, sentiram tão somente o cheiro do linóleo, porém outros, como eu, o dos atores. percebia, sentado na platéia, miúdas sutilizas que eram assombros. o elenco. desejava saber o que ia datilografado nas folhas que vez em quando as personagens trocavam ao gosto do acaso, efeito igualmente construído. todo livro, o sagrado. os intérpretes decoravam e abandonavam as folhas. alguém distraído que por ali passasse. ou transeuntes apressados. os ônibus não especulam, vão, retornam em quarenta minutos. palavras para serem esquecidas. eu permanecia a decodificar o bilhete do namorado ao abraçar a moça por trás como que fazendo seu adeus. foi assim. numa cidade velha em que morei. o adeus mais duro é olho no olho, diziam, e eu já sabia. apostava-se no trabalho dos topógrafos. êxtase da companhia teatral. encenavam a memória, acumulo de esquecimentos. o vento também era personagem. ao perder o chapéu, junto, o homem, perdia a cabeça. ia buscar, estava enterrado. não sabíamos de onde vinham os bebês. não digo que ao partir tenhamos saído ilesos. o nariz do velho apontou e caminhamos rumo ao sul. viver para fundar e abandonar, dizia. o risco, única opção, dizia. os atores. meus pés vivos, a carne sem pele. só vim porque você veio, sussurrei em seu ouvido. ela havia amadurecido sua característica dramaticidade de sempre. não era a primeira vez em que me deleitava com tamanha capacidade cômica.
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clique na imagem, ela fica maior

sábado, 10 de dezembro de 2011

a pensão

só marginais transitam por lá, diziam
refúgio das gentes falidas
ruas sem ruidosas buzinas de motocicletas
sem teclados sintetizadores misturados com
sanfonas nas madrugadas
estragadas mulheres
enfermeiros aposentados
gatos pretos que funcionassem
qual manchas de óleo a correr ruelas
ela
atrás de uma cortina fina
mostrava-a mais que ocultava, flores na ventania
ao lado, cachorro desajeitado com cara de jegue
trombando nos móveis da sala e cozinha, um ambiente só
eu o temia mais que aos dragões que
dizem bater asas nos bosques
a qualquer momento abrirá suas asas
mostrará a língua para nós
alçará portão fora gargalhando chamas
enquanto tirarmos os pratos da mesa
a besta resolvia me interpelar com seu focinho e presas à mostra
querendo os pratos
também três homens, trajes brancos, puídos,
riam e jantavam desconexos assuntos
pensão iluminada por velas que pingavam sutis em
nossos olhos marejados de neblina
e o chá preparado por feiticeiras
no outro dia, após o café matutino, passeei
regiões afastadas do perímetro urbano
a periferia da periferia resistia
lugar de antes de haver metrópoles porque metrópole
casas de madeira, samambaias na varanda, hortênsias as cercando
estradinhas brancas que levavam até vacas distraídas
pastando a idade da pedra
sombra lilás de galhos e nuvens
quero-queros no noturno do inverno carregando uma
sacola ampla vazada de estrelas
o armazéns de madeira úmida
e a lagartixa recém acordada de um sono sem relógios
a defender os tijolos da parede de ataques dos mosquitos
nascidos para fazer-nos coçar

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Lançamento da minha primeira novela

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Olha aí, a capa do meu livro novo E se contorce igual a um dragãozinho ferido. Editado pela Arte & Letra Livros. Um primor o trabalho deles. O design todo é do Frede Marés Tizzot. E meu maninho Botika colocou uma orelha no bichinho vomitador de fogo. Dia 17, sábado, a partir das 15 horas, faremos o lançamento na Livraria Arte & Letra (Rua Pres. Taunay, 130 - fundos da Casa de Pedra - Batel). 

cinema

há anos a Igreja obsoleta

era um lugar que doía
você adentrava suas dependências
uma força centrífuga sugava a energia dos segundos

o padre veio de outra cidade, há muito
não havia religiosos
para a inauguração, água benta

hoje, o Cine Passado

projeções a iluminar
não souberam um jeito de encontrar Deus lá dentro

Deus, este decepcionado lugar

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

rugas despudoradas

entrei no armazém amarelo, modorrento. bruxuleante luz no teto. quase nada de produtos a venda. uma senhora. as rugas mastigavam, despudoradas, o seu rosto: protocolo carimbado pelo tempo.
cerveja preta, pedi.
foi buscar. nunca mais voltava. despejou o líquido em meu copo. pensei reconhecê-la. teimavam seus disfarces. foi atender as moscas, únicas clientes. o espelho da parede oposta ao balcão onde estava me eram úteis. expunham ainda mais a precariedade daquela presença: caroço humano.
lembra-se de mim?, pensei.
chamei-a. virou-se, quase não dobrável.
ela sabe que sou eu?, pensei.
anos atrás eu conheci uma menina, 14 anos.
ainda bebê, deu-me de presente.
não me reconhece?, perguntei.
fez uma expressão de dúvida fitando a rua como se de lá a resposta. passou as mãos sobre a toalha de plástico com flores apagadas limpando farelos de comida sobre a mesa.
nunca mais, filho, ninguém soube de mim, ela disse.


seus órgãos

a doença são seus órgãos
quando chegar o momento quero estar longe dessa corja, cospe
militante político outrora
antes morresse numa biblioteca, diz, não é lugar de
vai-vem, mas de permanência
ou nalgum canto onde vaidades houvessem findado
se não em paz, ao menos pra lá dos predadores
mesmo o banal exige rito
despede-se
não antes de experimentar uma última vez o sabor
censurado pelos filhos, do alto de sua sabedoria, nada reclama
noutro dia pensa vapor é o que serei
aquém da infância a eternidade já faleceu
nós velhos devemos temer os mortos, estes terão
que se mudar para outro lugar quando chegarmos lá
morremos e somos os bebês do falecimento, diz
ai o pai já à beira dos delírios
chamam uma mulher, último pedido
o senhor está muito doente?
ele afaga seu braço você, doce, é meu médico, sorri e
tosse os ossos
o senhor é gentil, não queria que
meu bem, todo cardápio obriga a fome, diz o velho
cofia a barba e tomba
os filhos, cinco diante do leito
coitado, ter entrado os dois pés na loucura antes de
cemitério
é jogado para as marés dentadas da terra
a vida de um homem, mergulhar na respiração dos afogados

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

habitantes
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exumações ordenadas pelo governo. a lembrança é espessa mancha derramada, não na escuridão, nos buracos do esquecimento. o que encontrei depois que me perdi. frioerenta, ela era. como apagar a paisagem? quando a vislumbramos, o branco, como se uma borracha houvesse sido ali. branca, a geada. branco o sol que derrete a geada. brancos os luares, nossas noites. não sei se todas as luzes ou se nenhuma delas. um lugar cheio de garras e dentes: os que por anos estiveram sob os cuidados do sanatório e hoje cavam iglus nos barrancos de terra, servem-lhes de habitação. brancas suas peles, excluindo as cinzas anciãs. dos que se foram, a transparência dos ossos. o céu expunha-se ardido em contraste com o frio de lâminas. a manhã quanto a noite se igualavam em tons marfim diante de estáticas escuras janelas, duas, no máximo, em cada casebre. ruelas de chão batido. chuva, barro que ao secar é mais sangue coagulado. tudo ao fim se alargando para além de um amplo deserto também níveo. de brancos grãos a totalidade dos desertos se compõe. os vivos e os outros, num mesmo.

domingo, 4 de dezembro de 2011

vá de retro!

vá de retro!
o que se ouvia quando pus pés e sentidos nas dependências do prédio fundo: navio soterrado, longo túnel, entrada sem saída, escura garganta de fera sacrificada, geladeira de amaldiçoados. haver uma paciente que mais que linda fosse eterna. não podia, trancaram-na. um outro que estimava-se a si tanto que
vaderetro!
igualmente o que era todo gengivas. um rosto-sangue e
vá de!
meia dúzia de meninas peraltas, buliçosas, pérfidas até que
aaaaaahhhhh!
e os bocós de mola. paladares oblíquos. sopitosa audição. e os que grunhiam. rútilos olhinhozinhos. mandíbulas marrons
vá de!
desígnios da quimicamente remediada solidão. pântano de antiséptico concreto. excrescências triplicavam odores. memória de espectros e seus estertores. lutuosa edificação por onde esquisitos homens, atônitas fêmeas, andrajos seres, agora eu, branco bratáquio visitante. apertava-me de frio e curiosa náusea. meus ímpetos, espantado pesquisador, nas paredes dos quartos, lia-se
aqui o pomar das dores, tubarões e morcegos perfuram tímpanos, os joelhos são retorcidos.
era interpelado pela cruenta galeria e sua memória que incendiavam em minha direção, descortinados. há muito todos os habitantes sem a medicação
vaderetro!
ali estava eu, sem autorização de ofício, sem acompanhamento de enfermeiros ou guardas. no monumental sanatório, todos nós, os insensatos.

domingo, 30 de outubro de 2011

Ivan Justen Santana

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Procura-se desesperadamente:

Pessoas boas que consigam festejar.
Que falem o que sentem bem como o que querem.
Que saibam ser gentis. Respeitem lar e bar.
Mantenham bom humor. E as que vierem e derem.
Que venham sim. Sutis. E demonstrem prazer.
Tanto em cumprimentar quanto em reconhecer.

Gente que leia mais. Frequente lançamentos
No veneno de ler. De avaliar as artes.
De verdadeiramente ampliar conhecimentos
E divulgar o que acha bom por quaisquer partes.
Um público que veja os genuínos artistas.
Que aplauda sem ligar se assim vai dar nas vistas.

Alguém que não precise do choque de agora.
Que leia isso e tolere este tapa na cara.
Que entenda o que é linguagem. Som. Tom. Dor. Cor. Fora
Tudo isso que não cabe em rima pobre ou rara.
Quem ofereça a face. A fuça. A carapuça.
Fure-se a carapaça. Engula. Cuspa. Tussa.

Ivan Justen Santana
(27-10-2011)
http://ossurtado.blogspot.com/

terça-feira, 16 de agosto de 2011


a mão selvagem pássaro-livro da febre
a mão selvagem chão de águas tormentosas
a mão selvagem montanhas crescendo dos dedos
a mão selvagem abismos do arrancar das peles
a mão selvagem faca que estapeiafaga dentro do sangue
a mão selvagem desvairado polvo gozando tintas
a mão selvagem mais a argila que deus a mãe do mundo

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

não há luas quando olho pela janela da casa. nem amor demais nessa cidade. se você está aqui, com teu inferno pessoal penetra a terra, mas dentro há menos paz do que se pensa.

transatlânticos fervem sem oceano. grotescos esqueletos de arranha-céus não terminados rangem. a cauda do dirigível faz sombra sobre a Lagoa Seca. não há amor demais nessa cidade.

chove nas folhas das árvores amarelas. chuva de fragilidades. um dia te dedilhei com o olfato feito tocasse piano. tudo alaga. o rio, a praça, a cama.

a liberdade é um jogo de xadrez no qual habita um cara obcecado por uma garota que o despreza admirando e só se entrega de olhos bem abertos. ela deu o bote. agora preciso de um tipo de ódio que venha engarrafado, antídoto tomado em doses homeopáticas.

sabe, vez ou outra há amor, mas aí a tua passividade me embrutece. estou tão fraco. se ao menos isso eu conseguisse, perguntaria: estamos participando de um banquete para urubus?

sábado, 30 de julho de 2011

um músico

está de casaca e sanfona pendurada por ganchos no coração. e quando não tem ninguém para brigar, briga consigo mesmo. sim, tem gente que nasce para abrir a boca e comer pipoca em filmes da Discovery Kids, então...

ele trai a música para desistir de ser perdoado. desembrulha o novelo da algazarra em um piano que é aberto como alguém abrisse a tampa de um túmulo, e há tumulto lá dentro. por isso, às vezes canta com voz de mostro acalentando fogo e espinho. em outras ocasiões o canto é limpo igual um peixe de águas doces. o músico é um bicho com bem mais de sete ouvidos. e talvez haja dias em que carregue a Gertrude Stein dentro deles.

diz-se que suas canções podem trazer argumentos tão inteligentes que você vai pensá-los patéticos, e está explicado o que não pede explicação. também acham que são tristes suas melodias, mesmo as alegres, e se dane o carnaval. na verdade, umas não permitem nem que se dance assim agarradinho com nosso amor, pois começam acontecer umas coceiras esquisitas dentro do sangue. não que não permitam que se mova os quadris, claro que você pode fazer isso, mas e o risco de se dar nós em si mesmo?

vai que vai da galhofa ao batidão. do punk ao business. dos hits ao... ei-lo, carne boa no meio das autoridades industriais. algumas dessas canções falam de biscoitinhos com tarja magnética Américan Express. algumas sobre rush nas férias. mas não se engane, em sua obra, a efemeridade ronda e não aporta. como que numa rasteira, as músicas falam de dólares nas sunguinhas. falam daquelas coisas que são ditas no vestiário feminino. falam do sub-total mais o serviço com dez por cento incluído. falam dos miolos e do monóxido de carbono que mastigamos.

tem canções que funcionam como uma partida de ping-pong. e tem a imperfeição que todos almejam para a maturidade artística. uma mosca que abordasse o seu iPhone não sabe o que está perdendo. nós sabemos.

domingo, 24 de julho de 2011

.....às vezes você acha que está fazendo algo bacana, generoso, pra você e pros outros. aí algo se inverte e você vê que acabou de foder sua vida, tendo de certo modo, mesmo involuntariamente, salvado a vida de alguém. aí você sofre igual a um porco que sabe que está sendo abatido. mas você segue, se debatendo, é verdade, mas segue. e com o tempo se resolve, supera. e até fica feliz, talvez, por ter tido a intuição de ter, de certo modo, salvado a vida de alguém, mesmo que involuntariamente. aí o tempo anda e, quando todos achavam que tudo estava certo, calmo, perfeito, algo se inverte e, porra, você se dá conta que não salvou a vida de ninguém, nem ninguém mereceu seu sofrimento. você que achou que ia morrer, saiu de tudo quase ileso, e está agora praticamente imune. ao mesmo tempo alguém acabou se dando muito mal. onde aquela calma, aquela felicidade e perfeição? e você até poderia se culpar por isso, por ter ajudado a foder a vida de alguém que você ama pra caralho. mas é tarde demais pra qualquer tipo de culpa e arrependimento, venha do lado que vier.

terça-feira, 14 de junho de 2011

.....Hoje moro em cima da famosa e loquaz Boca Maldita. A Boca Maldita é uma espécie de clube da terceira idade. Clube, mas sem mensalidade e carteirinha, pois fica na calçada, na Rua XV, em frente ao prédio onde moro. Talvez seja ainda algo como um Senado, um Senadinho em que os frequentadores, músicos, comerciantes, juristas, políticos, jornalistas, em sua maioria aposentados, discutem política, futebol, sexo, contam piada e, até, fazem negócios. No meu apartamento, jornais, revistas e livros comprados em sebos dividem espaço com latas de suco e embalagens de comida pretensamente saudável. Faço alguns planos e de vez em quando dou umas voltas no Parque Barigüi. Noutras ocasiões, me perco na neblina de dentro dos próprios bolsos feito um chaveirinho separado da chave de casa. Tem vezes em que dou aulas particulares de geografia e história para adolescentes da sétima e oitava séries. Nos fins de semana peço pizza cortada em oito. Vivo na nave do sofá vermelho, ora dentro da novela pilotando a televisão, ora roncando baixo enquanto meus ouvidos se contorcem com uma canção fudidamente triste cantada por Nina Simone. Lá fora, buzinas e mais buzinas para que eu não esqueça onde estou. Janto sozinho. Posso lavar a louça agora ou mais tarde. Depois me dedicar a compreender de que maneira amanhã vou me reinventar. Praticamente não tenho e-mails para responder, telefonemas a atender. Tenho de ir ao banco para as contas de água, luz, gás. Farei isso amanhã antes do almoço. A cidade inteira vai estar lá pagando, depositando, sacando. Depois devo ir ao vegetariano (tenho evitado carne vermelha) comer repolho com molho branco. Tudo o que tenho para hoje à noite são dentes para escovar. Minha escova não é das mais macias, já me acostumei. Tenho que cuidar desse corpo que me presenteia com pequenas dores diárias. É verdade que já não posso estufar o peito, levantar a cabeça. Talvez nem mais seja preciso espelhos que me digam que há alguém a quem devo pedir desculpas. Você. Adoro as madrugadas, quando os gatos miam alto nos becos e ninguém presta atenção. Moro no oitavo andar do Edifício Tijucas, no miolo da cidade. E meu problema é que vivo mexendo num vespeiro repleto de insetos sentimentais, com ferrões que injetam o veneno da saudade. Olho uma foto minha no porta-retrato, tenho três anos de idade. Bermudinha preta. Coxas grossas. Joelhos intactos, engruvinhados. Meias brancas. Sapatos brancos tipo botinha ortopética. Camiseta azul escura por baixo do casaquinho de fio azul claro. Na mão esquerda, esparadrapo num dos dedos. Sou loiro, penteado para o lado direito. Olhos verdes. A boca num ângulo levemente emburrada. Narizinho assim. Rosto redondo. Bochechas avermelhadas, dá vontade de esmagar, diria minha vó. Estou no pátio de uma casa. Não dá para saber se é a nossa casa, a casa da infância. O chão se constitui de azulejos quebrados, colocados não como mosaico, mas aleatoriamente, ainda assim respeitando os encaixes. Atrás de mim há uma trepadeira verde escura, que importuna 90% da parede branca. E é só o que consigo ver, a mim na fotografia. Fragmento de paisagem maior e mais complexa. O que está fora do quadro gostaria de esquecer para sempre. Mas lembro bem que no meu aniversário de nove anos ganhei uma caixa de ferramentas. E aos poucos a fui equipando. Era um investimento à médio prazo. Tanto Tatá quanto Tati também ganharam as suas e rapidamente aprenderam a diferenciar os tipos de madeira. Aprenderam como protegê-las para que não estragassem. Quais produtos usar e como usar. Qual a melhor tinta a ser utilizada para a preparação das madeiras, as técnicas para se fazer decapê. Quando uma vez a tábua da cozinha onde eram amassados os pães quebrou, Tatá de um dia para o outro confeccionou uma nova, de qualidade superior a que havia estragado, que era obra de meu pai. Ali estava revelado o talento do meu primo. Diferentemente de Tati, Tadeu vivia se vangloriando por saber confeccionar banquinhos, criados-mudos, armários com perfeição. Não tardou até que fizesse a pátina melhor que o próprio vô Breno. Sabia usar como ninguém os berbequins. Aplicar os moldes para fazer perfurações. Era bom em laminação, compensados. Um talento nato. Como é que você consegue, Tatá?, eu perguntava. A madeira, apesar de sólida, Jassei, é de fácil manejo, é elástica, porque está viva, repetia os ensinamentos do vô Breno. Como marceneiro a única coisa que consegui fabricar foi um violino cuja acústica nunca se viu pior, com uma curva no fundo completamente tosca. E ali morreram minhas ilusões em relação a uma possível carreira musical, pois não era só o violino que era ruim, o violinista tampouco servia. Desacreditado da música ainda tentei mais um pouco investir na marcenaria, mas com a morte de Tati minha incompetência e consequente desinteresse só fez crescer. Sempre odiei as serras. Elas não tem como considerar se a madeira contém nós, partes falhas, áreas macias e outras mais duras. As irregularidades dos anéis de crescimento do tronco de uma árvore podem resultar em forças de desequilíbrio quando a prancha é serrada, fazendo com que ela tencione para dentro e para fora. Chovia naquela manhã de junho. Eu gostaria de falar mais detalhadamente sobre a tradição de marceneiros criada dentro da família Brennelli. Mas não posso, pois sou o responsável pela quebra de tal tradição. Sou o que não sabe absolutamente nada do ofício. E mais do que não saber, passei anos odiando a marcenaria com todas minhas forças, pois ela levou Tati de nós. Ele era o que sequer usava luvas para segurar espinhos. Tudo que sei sobre marcenaria é que a madeira também sangra. Sangra a madeira cerrada, lixada, empilhada. Naquela manhã Tati inventou de adiantar um serviço para meu pai, chegou antes que o restante do pessoal. Ligou a serra elétrica que, feito uma loba faminta, mastigou seu corpo. Não sei como aconteceu. Ninguém jamais saberá. A assassina serra circular cortou o braço. E entrou pelas costelas, chegando ao abdômen dele. Rompeu a alça intestinal. Atingiu o pâncreas. A dor e a hemorragia mataram Tati em minutos, nada pode ser feito. Por que você foi fazer uma bobagem dessas? O menino que nunca teve luvas nem armadura, agora retirava do próprio intestino oceanos marrons. A face trancada na respiração da dor, aguentou ainda por algum tempo, até desabar exangue. Vejo ainda seu corpo destroçado sendo carregado para a caminhonete, com seu velho pulôver azul, feito por vó Bia, não mais identificável, com urgência de hospital, porém, já morto. Tatá logo virou o braço direito e depois passou a dirigir a fabriqueta de móveis Brennelli, o que, na verdade, foi acontecendo da maneira o mais natural possível. Quando chegou a época do vestibular, fui ser jornalista. Ainda sou. Embora, cada vez mais preguiçoso. E que, no momento, após praticamente a redação inteira ter sido mandada embora, tem se virado como assessor de imprensa freelancer. Bom, mas me formei e depois quis fazer especialização. O jornalismo trabalha com a realidade de um modo que não me parece justo, dada sua insuficiência. Já que o registro de um fato é apenas uma das visões possíveis desse fato, então o jornalismo também produz peças ficcionais de algum modo. E se um jornalista começar a pensar assim ele será seduzido pela ficção e aí, quem sabe, se tornará antiético, porque um jornalista não pode escrever inventando, ele tem que acreditar piamente que aquilo que está escrevendo é o retrato fiel do ocorrido, ou então não será imparcial. Era um pensamento que me ocorria com frequência durante o período em que estive no curso. O duro é ficarem colocando goela a baixo regrinhas como cabeça, gravata, em perguntinhas como o quê, quando, onde, etc. O jornalismo para mim era inviável. A não ser que eu fosse uma espécie de Hunter Thompson, ou um Hemingway. Ficaram daquela época algumas aulas de filosofia, uma introdução à semiótica, o carinho por um ou outro professor, amizades que nasciam e acabavam em bares ao redor da faculdade. Mesmo morando no centro, não me transformei num urbanóide. Embora hoje tudo seja concreto e plástico, ainda sei ler a lição da terra no apodrecimento de um fruto ignorado na fruteira. Sei quão lógica é a natureza que amolece o coração da terra para fazê-la condutora da fertilidade. As correntezas dos mares qualquer marinheiro conhece. As correntezas da terra são tão complexas quanto, mesmo contendo menos movimentos. Respeito a terra, sei se tratar de nossa cama mais macia. A terra é o oxigênio das flores.

sexta-feira, 10 de junho de 2011

.....Você não sabe mentir por muito tempo. Então o que você está fazendo agora? A falsidade é a mais perfeita denúncia. Banhos de fogo lavam mais do que água, mas o preço que se paga é muito alto. Vez ou outra queimamos as solas dos pés vasculhando bibliotecas de navios afundados, furamos as palmas das mãos com espetos, vazamos os olhos em tragédias gregas exemplares. Sempre que alguém está prestes a desesperar chora baixo, tranca-se num cubículo qualquer. E o dia lá fora não é exatamente um bibelô azulado e limpo que até parece de mentira. A nudez que encontro em mim corre feito um o rio e a cada dia me sinto mais feio a apodrecer. Então sons de alaúdes soarão em excessos de balbúrdia, que são o meio possível para contribuir com esquecimentos momentâneos. De resto, só as contrações inexprimíveis. E é isso o que você conhece porque é isso que existe. E é isso que existe porque é isso que você inventa. Uma nudez que vem por baixo da nudez. Os olhos abertos feito lanternas que procuram alguém perdido na escuridão, o céu lá fora. E esse alguém é você mesmo com olhos que também são lanternas a procura de alguém perdido na escuridão. Tudo como um apelo. No apartamento, livros e vídeos de histórias. Quem sabe nada disso seja possível ou verdadeiro, ou até mesmo plausível de ser cogitado. Você reconhece os silêncios cujos meandros não são perscrutáveis, eles desejam sair ilesos dali, mas se convenceram que a tua tartamudez é um privilégio porque podem bebê-la nessa tarde cinzenta do mês de julho. E é claro que há o risco de cães latirem no lado de fora. Me dá um só dedo de maldade e lavo as mãos. Sobreviver talvez não seja o mesmo que permanecer humano. Me dá um só dedo de maldade e... Não, isso não. Esquece. Não sou um canalha. Nem a porcaria de um robô. Que confusão dos diabos. Recebo um telefonema da tia Ruth. É esse quase estóico cidadão em quem você se transformou, o que entra em pânico ao ouvir o telefone soar. Você é justamente este, o que jamais será feliz. E você, o tolo, até poderia perguntar a cada um: o que é terrível, amigos? Para você? Você? E você? A resposta chegaria em uníssono: a treva tentando entrar  por baixo das cobertas, criaturas bestiais do desejo a se proliferarem nas gavetas, lágrimas que rasgam as faces feito hélices de helicópteros, etc. Eis um rascunho do medo. O que é terrível? Só o que é terrível. Daí que você pode entender que tudo o que não for péssimo, desastroso, nauseabundo, será apenas o mundo se abrindo em bondade sem que sejamos capazes de descrevê-la em especulações sobre o amor simples, ou até mesmo nos darmos conta. E, afinal, talvez o bem jamais venha dos que se fecham em seus frágeis casulos. O que dizer dos que são eles seus próprios bunkers? É claro que a felicidade, esse último capítulo das sessões da tarde, é uma balela. Mesmo assim, apesar do clichê, é imperativo a todo momento nos perguntarmos se estamos ou não alegres e não esperar resposta alguma. E, analisando de longe, seguros (seguros?) em casa, termos a sensação que sem umas gotas de ódio ninguém teria conseguido. Recebo um telefone dessa minha tia: Jassei, há alguém interessado na chácara, um comprador em potencial, e eu estou cansada, aquilo virou um elefante branco, eu não tenho mais idade para me incomodar, Tadeu está na Europa, preciso que você cuide do assunto. Cuide do assunto? É com você que ela conta, com o que se decepciona consigo e vive patinando. Agora mesmo dá para ver seu rosto se retorcendo como se tivesse mascado limão. Tia Ruth fala rápido e alto ao telefone e eu não consigo entender, eu ainda nem acordei direito. Assim que faz uma pausa, pergunto: e Mana? O quadro dela é estável, Jassei, não podemos fazer nada, só esperar. E, como que liquidando o assunto Mana, ela volta imediatamente ao assunto chácara, como se fosse possível separar um do outro. Então você pensa em qualquer personagem da literatura com a qual tenha absolutamente se identificado. Eis, monstrinhos semióticos. Jamais serão felizes. Você os vê sussurrar entre lábios enquanto na sala do apartamento soa alguma balada do Nick Drake, pairando como morcego ferido sobre o tapete rubro. A chácara é um dos últimos bens restantes do espólio de nossa família. Por isso que, após a esbaforida intimação de minha tia, se antes de devolver o fone ao gancho tivesse caído no erro de não dizer enfaticamente um “sim, senhora, providenciarei tudo, pode ficar tranquila”, ela teria ficado uma fera comigo. O telefonema me angustiou. Cutucou com vara curta uma série de fantasmas. E agora já sou meu pai, a maneira abrupta com que minhas mãos acabam de abrir a porta fazendo o trinco sofrer, e o tambor dos passos dentro dos meus calcanhares a entrar nos azulejos da cozinha. E sou minha mãe, a música de uma voz violeta, os alarmes que há em mim, a cantiga de água que meu corpo embala. Agora meu primo, o modo e horário em que me sirvo no filtro, antes do primeiro gole, as tossidinhas, e o copo d´água escorregando da minha mão. E o outro primo, o mais novo, se dissimulo um acordar cantado por sonhos clarividentes. E então me sei nosso cão, perpetuando uma presença na casa com cheiros fortes e ganidos contínuos para lua. Então, sou meu avô chegado dos aperitivos pelo bairro aos sábados por volta de meio dia, o vozeirão, o jeitão de galã do interior com muitos braços e conselhos. E minha avó, se compreendo esse silêncio alargado no ar, ela chegada como se aqui não estivesse, tão digna na dor, tão adornada com flores, risos, brincos e colares. E sei que sou meus sobrinhos, pois só estou nascendo agora, amanhã, amanhã, amanhã. Vou acontecendo o que ontem me aconteceram, seres de meus outros aniversários, biologia, galerias do meu peito, meus múltiplos corações trovejando. A conversa com minha tia não foi amigável o quanto deveria entre um sobrinho e sua tia, talvez pelo fato de que em algum momento, sem esconder o tom de decepção, acabei perguntando: então vai ser assim, tia, vamos simplesmente vender o que restou da chácara? A chácara, a casa da minha infância. Abacate, mimosa, mamão e outras luas apodrecendo na fruteira. Damasco e castanhas nos potes pintados à mão por minha avó, senhorinha sem pressas. Na casa da minha mãe lavava a louça ela mesma e os pratos assobiavam junto com suas unhas que faziam isso por gratidão de anfitriãs, não por responsabilidade de funcionária. Minha mãe, tia Ruth e Elza não saiam da cozinha. Faziam o almoço de sábado sem nunca antes terem tido dores nas pernas. Eram as galinhadas caipiras, as macarronadas. Ou não havia final de semana, durante o verão, que minha mãe não reclamasse do cheiro dos peixes. Passava a manhã os preparando. Assistir a volúpia com que devorávamos as bandejas, reiterava a indisposição para alguns pratos. Mas no dia seguinte voltava à cozinha conviver travessas e panelas, ervas, molhos, pia, fogão à lenha. Minha mãe dava banho na gente com mãos de água que envelheciam 30 anos e depois não voltavam totalmente ao normal. Um de nós tossia e o termômetro era todo ele a casa da minha mãe. Esperávamos a Páscoa porque ninguém tinha desistido ainda, enquanto era tempo. Elza molhava as plantas cantarolando “cheguei na beira do porto / onde as ondas se espáia / a tua saudade corta / feito aço de naváia”. E tia Ruth vestia camisola, roupão de flanela e calçava pantufas. Uma ambulância passava ao longe, abafada pela chuva. Tomávamos chá, um antídoto contra a gripe. Sim, estou tentando, mas sou incapaz de confiscar as lembranças. Elas chegam. Vou pegá-las, fogem. Sei que conferíamos portas e janelas. E se a noite continha musgos, os olhos cansados da minha mãe também. É claro, Jassei, que vamos simplesmente vender a propriedade, ou, por acaso, você vai ficar com ela?, me disse há pouco ao telefone ti Ruth, que tanto me odeia. Ficar com ela? Coitado de mim, um pobretão, quase não tenho dinheiro suficiente para pagar o aluguel e me alimentar ao mesmo tempo, há meses que preciso escolher se como ou se continuo morando no meu quarto-e-sala precário. Ao menos se Tadeu, o rico da família, comprasse a propriedade, mas não pode sequer ouvir falar daquele, como ele mesmo chama, elefante branco.  A velha chácara não interessa aos seus projetos. Lastimável no que ele acabou se transformando. Muito diferente de mim e meu pai no centro. Numa manhã de sábado. Ele me levando pela mão. Vamos entrar aqui, comprar um sapato para você. Compramos. Meu primeiro par, de couro – canoa em dia de chuva na Rua XV. Eu tinha oito/nove anos. Boca Maldita. O prefeito discursava idiossincrasias em um palanque improvisado. Homens públicos nunca serviram de bóia salva-vida. Meu pai conhecia o engraxate. Ele esfregava com ritmo o escuro dos próximos passos que eu daria vida afora. Chuva. Pano. Sapatos. A cadeira do engraxate era ilha no mar de transeuntes e ambulantes. Meu pai pagou. Levou-me. Paramos para um frapê na Confeitaria das Famílias. Com a imagem como que tive um alumbramento, sem pestanejar, observei um homem gordo que na mesa em frente olhava para um objeto de papel. Olhei os pés do homem, sapatos pretos, brilhantes. Um leitor?, perguntei a meu pai, que assentiu. Igual o vô Breno, completei. Saímos dali. Guarda-chuva aberto. A graxa preta nos meus pés exalava o sabor das longas distâncias. Voltamos para casa em Santa Felicidade pisando paralelepípedos encharcados. O que é raro, bem sei, atua com as mãos. Incrível, só não é ilusão a página trágica na qual o tempo nos rabisca. Raspa a neblina, traça rotas. Desenha feito aranhas que infestam com teias porões que não se querem esquecidos. O tempo, sim, sua ferocidade vem à jato. Inspiro fundo antes que me faltem escolhas. Posso até ter pressa, mas sei que não me ultrapassarei. Em certa altura a vida congestiona feito um nariz constipado, isso é que é. Os próprios familiares já disseram de mim: este é o que atravanca. Bem, cada um com sua fama. Devo ser o quê? Um colecionador de fragilidades naufragadas. Mesmo com sapatos bem engraxados? Agora, no lugar das mãos, também tenho pés. E com esses pés, de quatro, caminho pisando os olhos da terra, sugando seu sabor. E aqui, nesta terra, estão minhas tias, a avó na horta. Meus primos em meus olhos impregnados de um tempo que nem mais sei se radiante ou não. Pisco, esfrego o rosto como quando se acorda de um enterro, os olhos ardem. Nos salões da cabeça meu mundo particular pesa. Preciso espremê-lo como a uma esponja com água de anos retida. O coração é um vaso rústico arrebentado pelas raízes que não se contentaram com o espaço restrito.

quinta-feira, 9 de junho de 2011

.....Saíamos com ele pela manhã para ver amigos, ou ir a algum mecânico, ou ainda buscar alguma encomenda. Dava mais ou menos onze horas e a gente se dirigia à barbearia. Meu pai dizia: pode cortar bem baixinho. Entro. Dou bom dia. Seu Paulo não me reconhece. Fazia anos que não pisava ali. Sento. Ele joga o guarda-pó sobre mim. O que vai ser? Pode passar a máquina quatro, e a zero na barba. Terminaria o serviço em casa com a gilete. Seu Paulo insiste que será melhor passar a gilete ele mesmo, que já está com a mão na massa. Assinto. Ele enche meu rosto de espuma e começa a raspagem, enquanto conversamos. Ele se lembra do meu pai. Pergunta sobre ele, se está bem. Digo que meu pai já morreu. Ele lamenta. Seguimos conversando amenidades. Ao final me dá um desconto. Entro num ônibus e volto para o centro. Cabeça e barba raspadas. Sinto-me nu. Chego em casa. Respiro. Minhas pernas formigam, doem. O coração, um pouco acelerado. Bocejo sem parar, uma, duas, sete vezes. Meus olhos não admitem mais permanecer nessa dimensão. Não durmo há quase 42 horas. Vou me entregar. Não tenho escolha. Entro no banheiro e ligo o chuveiro. Tomo um banho demorado. Me visto com minha melhor roupa. O que você pensaria disso, Tadeu. E saio para almoçar. Mas é já fim de tarde na Boca Maldita. Então eu lembro, já almocei. Tinha decidido visitar Mana à tarde. Mais uma vez adiei. A última vez em que a vi foi quando sofreu o acidente. Lembro: intermináveis vinte minutos de espera. Não eram nada se comparados aos sete meses da sua permanência ali. Vinte minutos, e fui chamado. Colocaram-me um crachá e me conduziram pelos corredores com paredes de cor magenta. Esperei um tempo mais, diante de uma porta fechada, até que ela se abriu. Você estava fria, branca como uma paisagem coberta pela geada. Os curativos em seu rosto, que jamais voltaria a ser o mesmo. Na treva do quarto, desenhada por feixes de luz com partículas de poeira no ar, você levantou da poltrona e veio até mim. Por causa do excesso de medicação, você veio dando curtas braçadas no ar, debatendo-se, procurando talvez o modo como começar um abraço há muito não praticado. Sonâmbula, como se recortada pela iluminação da veneziana semicerrada dançasse sobre os seus outros eus, sobre aquela que um dia conheci e agora parecia morta de tão triste. Seu corpo me encontrou. E a força e forma, necessárias para o equilíbrio de quem se cola no outro, estavam em nós, depois de agoniados vinte minutos de espera. Que saudade, você disse e tossiu. Sabe, o cheiro de uma pessoa pode ser um desespero. O toque de uma pessoa pode ser um desespero. Até o desespero de uma pessoa pode ser. Que saudade, eu repeti. Por baixo dos odores de remédio, meu nariz que em outros tempos percorrera mesmo o seu avesso, reconheceu o cheiro, o sabonete, que era o mesmo. Ao me afastar um pouco pude estudar suas feições. Os cabelos curtos e secos como fossem trigais que há muito não bebiam chuvas e sol. Seus olhos, janelas com espelhos azuis que não permitiam ver o lado de dentro. E foi ali naquele quarto de hospital que você me contou. Apesar de ter sido difícil conversar com você, pois não havia palavra que não viesse fragilizada pela sua condição física. E, à minha revelia, você me obrigou escutar: Tatá tinha 18 anos recém feitos. Eu, 16. Era sábado. Você não estava em casa, Jassei. Se estivesse, provavelmente eu não teria ido. Tatá conseguiu que Seu Lírio emprestasse o carro. Fomos dar uma volta. Conversando, dando risada chegamos no centro. Final de tarde. Era verão. Eu estava vestindo camiseta regata e uma bermuda curta. Faltavam dois dias para o Natal. A Rua XV cheia. Os garçons trazendo chopes. As lojas anunciando promoções. Circulamos um pouco por ali. Subimos até a floricultura na praça ......................... Tatá me presenteou com um botão de rosa amarelo. Agradeci com um beijo na bochecha. Você merece muito mais, ele disse e me beijou na boca. Retribui. Então nos abraçamos. Ele estava tão cheiroso. Uma brisa geladinha começou a soprar. Meus braços e pernas se arrepiaram. Ele me enlaçou. Voltamos para o carro. Ele sugeriu que voltássemos para Santa Felicidade pela Rodovia do Café. É um caminho mais longo, eu disse. Assim a gente pode ficar mais tempo juntos, ele respondeu. Cortamos pelo Parque Barigüi. E entramos na rodovia. Quando me dei conta estávamos imbicados num portão de ferro grande. Um quarto, por favor, disse Tatá à atendente. Ela nos deu a chave, o portão se abriu e o carro avançou. Não acredito que você me trouxe num motel, que cara de pau. Quer ir embora? Vamos pelo menos conhecer o quarto, eu disse. Depois refleti melhor e falei: mas não vou fazer nada, não queira dar uma de engraçadinho. Você é quem manda, Mana, disse Tatá. Era a primeira vez que eu entrava num lugar daqueles. Meu coração latejava na garganta. O Tatá suava. Havia uma cama grande, espelho em todos os lados, um banheiro com banheira. É o mais simples, disse ele. Ficamos um tempo sem ação. Então ele foi até o frigobar e pegou uma garrafinha de vodca. Abriu e bebeu num gole. Daí pegou outra, abriu e me deu. Bebi no gargalo. Quis tossir, mas aguentei. Meus olhos lacrimejaram. Tatá se aproximou e nos beijamos. Foi me despindo. Me deixou só de calcinha. De repente me senti deslocada. Não era justo com ele, nem com você, Jassei. Ele me deitou na cama. Beijava meus peitos ao mesmo tempo em que ia se despindo. Eu era uma mentirosa. Ofegava. Ele tirou minha calcinha e veio. Devagar, pedi. Ele foi entrando aos poucos. Perdi a virgindade entre lágrimas, vodca e remorso. Mas querendo estar ali. E depois eu engravidei, não sabia se de você, ou se de Tadeu. Exatamente, Mana, como muitos anos antes mesmo deste episódio eu sempre esperei por você, por seu abraço, por seus beijos. Sempre esperei, mesmo quando minha boca se fez arma de caça que derrubava a presa de imediato onde eu fosse. Às vezes em que estive com outras, Mana, foram só porque não pude estar com você. E se outras bocas beijava, fazia com um beijo matemático, megálito, medroso. Nunca algo como naquela noite de nossa adolescência, em que você entrou no meu quarto para me devolver um livro e a gente começou a falar sobre a estória de Holden Caulfield, que me fazia lembrar o Tati. Foi assim: eu abri num leque as palmas das mãos e como colhesse um fruto grande segurei de leve seu rosto quente. Você beijou minhas palmas, a direita, depois a esquerda. Seus olhos umedeceram como se pupilas e retinas, aos poucos, fossem sendo sobrepostas pela luminosidade do abajur. Mas, de repente, passos imprimiram um peso e ritmo no assoalho que eu conhecia bem. Minha mãe com o camisolão que alcançava os calcanhares vinha pelo corredor. Você se escondeu atrás da poltrona verde musgo. Você não piscava. De apreensão, não respirava. Minha mãe entrou no quarto sem bater na porta: o que está fazendo que ainda não dormiu? Lendo, mãe. É muito tarde para leitores da sua idade. Já tenho 14 anos. Jassei, não me retruque. Só queria acabar o capítulo, mãe. E já acabou? Acabei. Então agora durma. Tá bem. Então me virei na cama dando as costas para ela do lado de fora da porta: boa noite, mãe. Durma com os anjos, filho. Apaguei a luz do abajur. E ela se foi. E você, meu anjo, lívida, saiu de trás da poltrona. Três anos se passaram desde aquela noite em que quase fomos flagrados. Então prestamos vestibular eu, você e Tadeu. E um dia você me disse que estava grávida de mim. E não quis contar para ninguém. E é um segredo que trago comigo até hoje. Sim, fomos juntos à clínica na Vila Isabel. Voltamos, você se recolheu em seu quarto, muito triste e machucada. Na manhã seguinte, entrou no meu quarto e disse que entre nós não existia mais nada. Um calafrio subiu feito peixe elétrico em minha espinha. Tentei argumentar, ponderar. Conversamos e era como mastigássemos os cubos de gelo de nossos laços sendo desfeitos. Você estava decidida. Três meses depois, você havia me trocado pelo Tadeu. Isso acabou comigo para sempre. Morar na chácara se tornou insuportável e me mudei para uma república, no centro. Passava os dias fumando maconha e lendo. À noite ia para Reitoria. Após as aulas, perdia-me por madrugadas que duravam finais de semana inteiros, no centro, nos subúrbios, nas praias, pelo interior do estado. Tanto vaguei sonâmbulo, maloqueiro, por entre os becos das bocas da carência, entre o cimento dos corpos das putas, que nunca me recuperei. Nunca me perdoei. E mesmo a perdoando, perdi você. E assim eternamente. Lembro de tudo isso ao mesmo tempo em que você me contava a história com Tatá. Mana acaba de me contar. Me contenho. Me seguro dentro de mim. Saio do quarto e pergunto a um enfermeiro: quanto tempo ela ainda vai ficar aqui? O enfermeiro encolhe os ombros e deita um pouco a cabeça para a esquerda lamentando. Saio do hospital. Será o amor uma espécie permanente de injustiça desejada?, penso. O primeiro a recuar, será esse o que mais ama? Chove. O céu não está nem aí para o insuportável sofrimento humano.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

.....Apesar de quase não sair mais da cama por causa da doença, naquele sábado, contente com minha rara presença, esforçou-se para sentar à mesa conosco. O médico tinha dado a ela pouco tempo de vida. Naquele sábado, ela conversou. Fez graça. E sua risada, embora fraca, devolvia a nossa casa a aura que há tanto se perdera. Cabelos mal penteados. Ela cheirava a Leite de Rosas. Após nos fartarmos com a deliciosa posta acompanhada de spaghetti, tia Ruth perguntou se queríamos mais. Estou satisfeito, disse meu pai se servindo mais uma vez de vinho. Eu também estou, falamos quase em coro você, eu e Tatá. Minha mãe praticamente não tinha tocado na comida, mas também afastou o prato de si na direção da tia Ruth. Você não comeu nada, Gica, disse meu pai. Estou sem apetite, mais tarde como alguma coisinha. Tia Ruth raspou os restos de todos num único prato. E fez uma pilha colocando o que continha os restos em cima dos demais. Então levantou para levar a pilha para cozinha. Vou ajudar você, disse minha mãe. Não precisa, Gica. Sempre lavei a louça, Ruth, não vai ser agora que você vai me dizer o que posso ou não fazer. Meu pai tentou dissuadi-la. Não teve jeito. Ela seguiu tia Ruth. Você levantou e também foi para cozinha. A cabeça de minha mãezinha não estava boa. Ela vinha tendo lapsos de memória, apagões. Irritava-se com facilidade. A doença estava corroendo sua mente também. Na verdade ela raras vezes lavava a louça. Quem fazia isso sempre era Elza, que naquele sábado não estava porque tinha ido ajudar na Festa da Uva.  Possivelmente minha mãe e tia Ruth estariam na Festa, como acontecia todos os anos, não fosse a adversa circunstância que se impunha sobre a família. Então alguns minutos se passaram e você voltou afobada da cozinha. Minha mãe tinha desmaiado. Acorremos em sua direção. Tia Ruth estava agarrada a ela no chão de lajotas. Saia uma espuma branca da boca de minha mãe. Meu pomo-de-adão inchou na garganta. Eu respirava ofegante. Meu pai carregou minha mãe no colo. Colocou-a com cuidado na cama do quarto deles. Onde meu pai já não dormia mais. Desde que a doença fora diagnosticada e minha mãe passou a exigir cuidados especiais, meu pai se mudou para o cômodo que fora meu desde há infância até o dia em que virei as costas para a família. Tia Ruth abriu o armário, pegou um edredom e pôs sobre ela junto com o cobertor que já estava na cama. Olhei para Tadeu e ele estava chorando, apertando os olhos com as pontas do polegar e o indicador para as lágrimas não lhe embaraçarem a visão. Ele e meu pai foram para a sala e começaram a ligar para o Dr. Francisco. Você sentou na beira da cama e segurou as mãos da minha mãe. De vez em quando soltava uma das mãos e ajeitava a franja de minha mãe. Tia Ruth fechou as janelas e acendeu o abajur. Saímos todos do quarto para deixá-la descansar. Jassei, vá chamar a Elza, ordenou meu pai. Peguei a chave da caminhonete dele e fui saindo. O Dr. Francisco já está vindo, avisou aos outros. Meu pai foi até o armário da copa, pegou e abriu uma garrafa de vinho e começou a beber. Ele nunca mais parou de beber aquela garrafa. Quando voltei com Elza minha mãe já estava morta. Tatá consolou tia Ruth após ela ter ligado para o padre João. Elza com toalhas e uma bacia de água quente lavou minha mãe. De joelhos ao pé da cama tia Ruth rezou e gemeu de dor erguendo as mãos para o céu. Dr. Francisco chegou. Tarde demais. Meu pai disse com qual vestido preferia arrumá-la. E você ajudou a vesti-la. Dr. Francisco assinou o laudo de óbito. Precisei sair de casa. Fiquei na varanda fumando. Padre João chegou, me deu os pêsames e entrou. Eu queria ajudar, mas não conseguia. Desejava ter feito algo por ela antes. Não fui atencioso. Não fui dedicado. Não fiz o que pude. Todos deram o seu melhor. Eu era um bosta. Por que ao menos eu não estava preparado? O que fazer com a necessidade de fazer as coisas diferentes se não sabemos nem para onde olhar? Se não sabemos quando será positivo pôr as mãos no bolso ou depreciativo acariciar o cão? O que fazer se não temos aonde ir senão às favas? Você veio até mim e colocou a mão no meu ombro. Em meus olhos derretendo com as lágrimas vi, como eles fossem um espelho, que você ainda me considerava um monstro. Eu queria abraçá-la com força e soluçar pedindo “por favor, me ajuda, tô desesperado”. Mas não. Você apenas disse: teu pai está chamando. E entrou. Estou vendo tudo isso. É tão nítido. Subo a Comendador Araújo. Sim, quem mais amava está comigo, na lembrança. Posso ouvi-los na sala a tagarelar, o hálito alegre falando sobre nada. Sempre fico melancólico nesta época do ano. Ouço os pingos na calha, a chuva de todos os meses. A chuva, o frio, a geada não me deixam esquecer. Não se pode prender para sempre os instantes. Que passem. Plenitude é o que vai, some. Esquecer talvez seja o jeito humano de guardar. Não quero reter os momentos de felicidade, como alguém que pretendesse o raro de si mesmo. A felicidade me atravesse, não como eu fosse um túnel, mas lama que não admite modelação. Atravesse, não suportaria encarcerá-la. A vida acontece conforme se sucede, não como preferimos. O tempo passa para fazer com que as pessoas amadureçam e se tornem melhores, mais justas, sábias, compreensíveis. Se você envelhece com pesares e lamentos, o futuro aparecerá como um serial killer, destruindo você para uma a uma das pessoas que ama. Talvez a maneira mais eficientemente tola de abjurar o passado seja não permitir que a vida nos faça esquecê-lo. Mana. Pensei que você tivesse esquecido totalmente de mim, quem dirá da data de meu aniversário. Mas recebi seu presente, com o cartão e tudo mais. Eu queria retribuir. Tinha que estar de cara limpa quando fosse vê-la. Não corto o cabelo nem faço a barba há meses. Escondo a pele demasiado branca sob meu modo rústico de sempre me vestir. Bem diferente das roupas de corte exato do Tadeu, que contrastam drasticamente com as peças quase rotas de nossa adolescência, o que, mesmo para quem não conhece nossas diferenças, faz com que visualmente as intua. Subo à pé do centro, onde moro, até a Pracinha do Batel. Uma quadra adiante, a barbearia do seu Paulo. Uma vez por mês, meu pai nos levava ali, aos sábados.

terça-feira, 7 de junho de 2011

.....Hora do almoço. Pizzaria Itália. Rua Carlos de Carvalho, meia quadra abaixo da Biblioteca Pública. Debruçado no balcão de alumínio, como uma fatia mussarela, massa grossa. Olhando os azulejos brancos com motivos amarelos nas paredes, como segurando com as mãos, me lambuzando com a gordura do queijo. Tenho pressa. Por quê? A ansiedade, a angústia. Saio da Pizzaria. E caminho. A gordura pesa em meu estômago. É sexta-feira, a cidade e seu típico cheiro de festa junina no ar. Atravesso a Praça Osório. A feira apinhada de gente. O vento, leve feito beijo de mãe. Estou lembrando de quem descendo e tento fingir que posso ficar em paz. Não espero o destino feito esperasse o troco. Sinto saudade dos velhos da família que aos poucos foram saindo de cena, fugidos da vida para dentro da terra. E assim será conosco. Nascemos de novo dos nossos filhos quando nossos filhos nascem, dizia minha mãe. Os Brennelli, dizia, descendem de rezas. Sinto muita falta dos aromas da cozinha da chácara. As massas e carnes. A galinha de panela, a polenta. Os bolos. Os cheiros invadindo a casa toda. Impregnando nas cortinas, toalhas, roupas de cama. Estou pensando no dia em que meu pai passou a beber com obstinação. Sabendo da presença assídua de Tadeu e Mana, eu quase nunca aparecia. Mas agora era diferente. Comíamos ruidosamente, falando pouco, menos que os talheres e os pratos. Eu já não morava mais na chácara, desde a época da faculdade. Tatá e Mana também viviam em sua própria residência, num condomínio próximo ao Parque Barigui, desde o casamento deles. O casamento em que não fui. O casamento que me fez rastejar feito um asqueroso roedor por ambientes sórdidos em busca de consolo. Como se álcool, crack e lençóis manchados pudessem servir como substitutos. Mas não. Por causa disso, ainda hoje falo baixo, como alguém que não quer espantar as ausências. Como quando criança, na época em que eu achava que sussurrando a gente podia falar com Deus. A ausência é modo mais eficaz que Deus tem para provar que não existe. Os ausentes são o impossível. Por isso me perco ainda hoje em túneis de neblina, soterrando o amor que não deu certo. Se às vezes o amor é menos que uma piada de mau gosto, noutras ele é a desgraça. Não penso no que dançou dúzias de rosas. Nem naquela que com risadas não permitiu mofar meias de seda. Ou no que palmilhou estriptosas canções de areia grossa e danças. Nem penso numa espécie de armistício. Ou ainda na corriqueira hora do lanche de corpos que se comem. Não. São as traças sem vagido, piolhos, lêndeas, pulgas, os mais ínfimos, pífios, nulos seres que comparo ao meu amor falhado. E ainda me pergunto como anda sua vida. Será que seu marido cuida bem de você? Será que a ama do jeito certo? Qual é esse jeito? Será que você sente muita saudade dele no verão, quando fica a semana inteira com os filhos num apartamento na Praia Mansa, em Caiobá, esperando ele chegar na sexta-feira a noite, vendo-o partir na segunda por volta de cinco da manhã. E meus sobrinhos, eles terão puxado mais a mãe ou o pai? Você fala de mim para eles? A menina, você já está se vendo nela? Penso naquele outono quando, dois anos após seu casamento, você bateu em meu apartamento. E disse que estava farta, que não suportava mais minha família. Você estava farta dos Brennelli, e correu para os braços de um deles. Por mais desgarrado que eu fosse, o sangue era o mesmo que dos outros. Sabe, o Tadeu chegou depois de mim em tudo e sempre se deu melhor. Era como eu fosse a cobaia, para então ele gozar tranquilamente. Você primeiro casou comigo. Mas foi com ele que jurou amor eterno. A aliança que você usa, veio dele. Com ele não foi uma mera brincadeira de criança, como você me disse certa vez. Sim, uma brincadeira. Foi no dia em que eu e meus primos nos vestimos com camisas com babado e gravata borboleta, confeccionados por Dona Zilá. Para o casamento de quem? Você veio em meu quarto, divina, com um vestido amarelo, laço nas costas. Os cabelos, o frescor do condicionador que você acabara de usar no banho. Minha mãe falou: o que é isso, Mana, vai de Botas Sete Léguas na festa? Olhei para seus pés e lá estavam, azuis, rudes, contrastando com a delicadeza do vestido. Meu sapato estava me matando, dona Gica, justificou-se você. Eu que há horas vinha brigando com minha mãe por causa do par envernizado que mastigava meus pés, corri colocar também galochas. Quer saber?, desisto de você, Jassei, gritou minha mãe, se quer ir mal vestido, vá, lavo as mãos. Sou o gato de botas, mãe, disse eu num tom brincalhão, exibindo-me um pouco para você, que riu. Eu queria mostrar que éramos cúmplices daquele crime de etiqueta. Onde já se viu ir a um casamento calçando Sete Léguas? Não nos importava muito se minha mãe já saia puta da vida em direção ao quarto dela praguejando: melhor eu ir ver teu pai, do jeito que vocês são, é bem capaz dele querer ir de botas também, aí é que todo mundo vai mesmo ter motivo pra dizer “esses Brennelli são um bando de jacus”. Eu tinha 12 anos, Mana, você 11, e o futuro inteiro pela frente. No entanto, nenhum de nós sabia ainda que há vezes em que o futuro é um desaforo para quem tem a alma rasgada feito um pano de chão, retorcida qual ferragens num acidente grave, esgarçada, um pedaço de bife jogado aos leões. E não só por isso a gente estava achando a cerimônia do casamento do Dr. Francisco muito chato. Fomos para o jardim atrás da igreja. Você olhou para meus pés, daí deu um chutezinho leve nas botas. Erguemos os olhos e eles quiseram falar algo muito íntimo, que só os seis (eu usava óculos de grau já naquela época) deveriam saber. E a sombra do futuro que, só hoje sei, é tudo o que gasta envelhece enferruja, moedor de ossos duros de roer. Sempre tem esses dias que são anestesistas de retalhos de histórias de amor viciadas em acabar e não ter fim, que são blues buracos negros dos quais a gente se embebeda de doses da noite branca feito gelo na goela. É assim, sequer notamos os olhos roxos saltando da cara, já nos acostumamos com hematomas latejando o futuro. De vez em quando nossos rostos sorriem sem nos darmos conta que estamos desfigurados. Mas naquela época ainda éramos bonitos e meu rosto sorria para tua boca, que veio e deu um beijo no meu rosto, bem no filé mignon da bochecha. Minha boca ficou com ciúme da bochecha e foi beijar a tua bochecha. Mas imediatamente tua boca avançou e entrou na frente, querendo mastigar meus dentes de leite. Aceita casar comigo?, perguntei. Você ficou um pouco de perfil, olhando de viés para mim. Era aquela hora do lusco-fusco. E você se destacava na tarde cinzenta feito um girassol, só que bem mais humano do que a maioria dos girassóis. Demorou mais do que eu podia aguentar para que viesse a resposta. Mesmo assim, temendo a negativa, aguentei. Os sinos da igreja começaram a ir para lá e para cá com seu blémblém. Por baixo daquele som condutor de milagres e glórias, veio enfim sua voz clara feito um copo de água: aceito. E foi assim que nós, crianças, casamos. Mas isso foi há tanto tempo. Bem antes do seu casamento. Aquele que você chamou de casamento de verdade. E esse era apenas um dos motivos que me faziam não gostar de ir à chácara. Ter que suportar você e Tadeu sorrindo de dentro de sua vida perfeita, que, eu e você sabíamos, de perfeita não tinha nada. Mas os almoços de sábado eram sagrados pra meu pai. E daquela vez estávamos todos um pouco mais animados do que nos últimos meses. O mínimo que eu podia fazer era estar lá, mesmo que dividindo a mesa com você e Tadeu. Claro que havia um constante clima pesado entre nós. Mesmo passados seis anos da noite em que eu e Tatá tentamos assassinar um o outro com socos, chutes e até faca em punho. Mas era minha obrigação de filho esperar unido à família a maldita doença aniquilar a mulher que me colocou no mundo e cuidou de mim.

sábado, 2 de abril de 2011


Débora Vecchi e Ciliane Vendruscolo em cena de O Butô do Mick Jagger. As fotos são do Rosano Mauro. Últimas apresentações no Festival de Teatro de Curitiba. Hoje (sábado) 21 horas. E amanhã (domingo) 15 e 19 horas, no Teatro da Caixa (Rua Cons, Laurindo, 280 - Centro).

sexta-feira, 1 de abril de 2011


Débora Vecchi e Ciliane Vendruscolo em cena de O Butô do Mick Jagger. Foto: Duke Wellington


A jornalista Helena Carnieri, da Gazeta do Povo, publicou esta pequena crítica sobre O Butô do Mick Jagger. .


O Butô do Mick Jagger desnuda dependência agressiva


A encenação de O Butô do Mick Jagger, no Fringe deste ano, lança holofotes sobre o texto. O cenário se resume a uma cadeira e uma poltrona, além de alguns objetos. Todo o destaque vai para o diálogo furioso de Luiz Felipe Leprevost, um dos autores do Núcleo de Dramaturgia do Sesi/Paraná. A penumbra completa o clima de decadência das duas cantoras, vividas com seriedade pelas atrizes Ciliane Vendruscolo e Débora Vecchi. A raiva guardada pelas personagens vai sendo destilada em impropérios e verdades que revelam o quanto as duas estão envolvidas. Vivem um relacionamento íntimo, de dependência e agressividade que lembra Vladimir e Estragon, personagens épicos de Samuel Beckett em Esperando Godot. Se há menos rock do que o nome pode fazer esperar, a simulação do butô, dança fúnebre japonesa, traz uma mudança de clima na segunda metade com bom uso da iluminação. Uma boa estreia na direção de Leprevost. por Helenena Carnieri, Gazeta do Povo.



O link para a página da Gazeta: http://www.gazetadopovo.com.br/cadernog/festivaldecuritiba/conteudo.phtml?id=1111569

quinta-feira, 31 de março de 2011

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Começamos bem ontem em nossa estréia. Claro que com um erro ou outro de ordem técnica. Mas Débora Vecchi e Ciliane Vendruscolo são atrizes tão boas, estão tão inteiras em cena, que tudo o que vai fora da ação delas, embora contribua significativamente com o todo, interessa menos ao que há de essencial no diálogo proposto. Mas vamos lá, antes que eu comece teorizar, quero agradecer muitíssimo a todos (uma plateia de responsa) que foram compartihar a peça conosco. Obrigado de coração. E hoje seguimos, com o desejo de ir ainda mais fundo na "coisa". A sessão dessa terça-feira será às 21 horas. Até lá. Bjs.

terça-feira, 29 de março de 2011

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Entrevista que a crítica teatral Luciana Romagnolli fez comigo. Foi publicada em seu blog (http://travessiasculturais.blogspot.com/2011/03/teatro-contemporaneo-nao-e-o-sangue-mas.html), no último sábado. Por causa dos ensaios, eu não tinha tido tempo de postá-la aqui. Mas agora deu certo. Acompanhe nossa conversa, feita por email.

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"Teatro contemporâneo não é o sangue, mas o vermelho"

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por Luciana Romagnolli

sábado, 26 de março de 2011

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Publiquei na Gazeta do Povo de hoje, em "participação especial", um Caderno G Ideias sobre Teatro Contemporâneo, a partir das peças em cartaz no Festival de Curitiba.

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Leiam aqui:






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Claro que sobrou um grande material das conversas com minhas fontes e, por julgá-lo interessante, vou disponibilizar aqui. Começo pela entrevista com o dramaturgo e diretor Luiz Felipe Leprevost, bastante generoso em suas respostas. Confiram:

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Pra começar, o que você entende por teatro contemporâneo e como articula operações e conceitos desse teatro na sua pesquisa de linguagem - por exemplo, em "O Butô de Mick Jagger"?

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Embora devêssemos entender por teatro contemporâneo tudo o que é produzido nos dias que correm, noto que se convencionou nomear assim uma parte bem específica do que temos visto em cena. Entenda-se: um teatro em que personagens dão lugar à subjetividades, polifonia de vozes, à imagética e sinestesia. Temos mais a música como suporte do que o enredo, ou então o enredo inserido na possibilidade do sonho, do ilógico, indiferente à regras da linearidade, promovendo fusões de tempo e espaço, exigindo do raciocínio. Narração e representação correndo simultâneas, apropriadas de ideias de distanciamento, admitindo variados pontos de vista, libertas do que se entende por causa e efeito e desenlace da trama. Assim, o teatro contemporâneo vai mais perguntando que respondendo, estruturando paradoxos, evitando ser moralizante. Temos mais a imagem do que o discurso e, se temos o discurso, ele vem sem psicologismo, com insolência e visão de mundo singular. Todavia, não encaremos nenhum destes elementos e características como obrigatórios, ou como fossem uma receita. O que mais me encanta nas possibilidades do que pode ser de fato o teatro contemporâneo é a vocação que nele encontro para rejeitar fórmulas e modos unilaterais de se pensar e fazer e criar realidades paralelas.

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No caso específico da peça O Butô Mick Jagger, há uma apropriação explícita tanto do Butô, de seus fluxos e suas contorções ritualísticas de acesso ao reino dos mortos, como também do universo pop sucateado que se vê no rock dito clássico e em dois de seus ícones, Mick Jagger e Kurt Cobain. A escritura do texto, digo, o desenho dele na página, mimetiza a dança, quero dizer, a forma como as palavras estão espalhadas ali sugerem ao leitor que são um corpo que está dançando. E foi daqui, do texto, que eu e as atrizes partimos, para logo ver tudo se complicar ainda mais na encenação.

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Identifiquei nos últimos cinco anos pelo menos uma tendência em Curitiba ao teatro narrativo, de personagens não delineados, pouca ação e uma relação diferente com o público. Como você percebe o teatro contemporâneo praticado na cena curitibana?

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De fato, o que você identificou é muito o que venho notando também. É claro que há uma tendência no ar, uma espécie de território reconhecível, comum a todos, de onde se parte para a tentativa de cada um em ser original, pessoal, singular. De qualquer modo, o que idealizamos jamais será o que de fato conseguimos fazer, então se admitimos que somos seres imperfeitos e diferentes uns dos outros, como não teríamos obras diferentes? Claro que o que se partilha sempre é defeituoso. Acredito que a consciência disso, a desistência de querer ser deus enquanto criamos, é o que nos aproxima de nós mesmos e do público e, por conseqüência, faz-nos originais. Admito, não falei muito objetivamente sobre a cena curitibana. Mas me pergunto se os que dentro dela melhor realizam o que se está chamando de teatro contemporâneo, não são justamente os que, de um modo ou de outro, se relacionam madura e ousadamente com toda essa confusão entre ideal e forma, desejo e frustração. É um jeito meu de ver as coisas, certamente muitos pensam diferente. Que bom.

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Quem são os grupos ou diretores que se movem nesse sentido e quais as questões ou tendências mais visíveis?

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A julgar pelos trabalhos da Companhia Silenciosa, do Heliogábalus, da Cia. Senhas, da Companhia Brasileira, Obragem, e Marcos Damaceno Companhia de Teatro, e da 1801, da Armadilha, Teatro de Breque, Pausa, Transitória, Súbita, Acruel, Subjétil, e o Couve-flor (algumas nomes que lembrei de cabeça agora), não há dúvida, temos uma cena com foco no contemporâneo admirável. Cada uma destas companhias tem pesquisa própria, com ênfase em aspectos diferentes (performance, texto, rito, música da fala, criação coletiva, etc), mas que se tocam e se irmanam. Sinceramente, estamos muito bem servidos. Quem acompanha estes grupos reafirma para si a todo momento que, de fato, não há formulas nem regras obrigatórias. São coletivos que se empenham na missão de não permitir que o teatro seja um museu tomado por tédio e mofo. Apostam que a comunhão em tempo presente, o que vem sendo chamado de presentificação, o compartilhamento, a interação, numa época em que somos multidões de sozinhos, quem sabe auxilie na tentativa de se devolver a humanidade ao humano.

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O público curitibano processa bem essas novas linguagens ou o espectador médio da cidade ainda se mostra atrelado às concepções aristotélicas ou de um teatro moderno? Isso prejudica a fruição das peças?

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Tenho a impressão que todas estas características que se revelam no teatro contemporâneo inevitavelmente refletem o modo de ser do homem contemporâneo, que é fragmentado, sem certezas definitivas, suspenso entre as necessidades básicas e a alta tecnologia, etc. Daí que entendo que o teatro que muitos de nós tem tentado fazer, por levar isso tudo em conta, apresenta um grande respeito pelo individuo e suas particularidades (por que não dizer também subjetividades?). Assim, quem sabe, estejamos conseguindo ter um teatro um pouco mais democrático, o que respeita o indivíduo justamente porque é o que implica o individuo, então, se os conteúdos implicados reverberam, naturalmente se sociabilizam. Parece-me que essencialmente é isso o que temos de diferente do teatro atrelado meramente à noções aristotélicas, e daquele cujo objetivo é provocar uma identificação no expectador com a exposição de uma fatia da vida espelhada. Sabe, tenho uma tendência a superestimar o público. Quero crer ainda nos espaços do instinto, dos sentidos que pensam antes que o cérebro. Como disse Fernando Pessoa, a inteligência é um instinto. Claro que uma minoria do público domina o repertório técnico teatral para que se cobre dela maior atenção com a cena da cidade. Mas é evidente também que toda pessoa que se coloque em situação responderá de algum modo ao que é proposto. Sou otimista em relação a isso. A pergunta é: será que os que propõe estão preparados para uma abertura real, digo, para tratar a platéia como platéia atuante? Aqueles que disserem sim verdadeiramente estarão derrubando uma série de tabus, preconceitos e medos. De todo modo, é certo que o teatro será para sempre um bicho estranho, e eu acho bom que assim se dê.

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E Leprevost acrescentou:

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Certamente que o teatro será para sempre um bicho estranho (e eu acho bom que seja assim). Um ornitorrinco é um bicho estranho e nem assim deixa de ser algo de nosso mundo. Além do mais, se é tão incompreensível, por que minha vizinha, que nem sequer ouviu um dia falar em arte, tem um bicho desses dentro do apartamento dela?

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Sou o tipo de dramaturgo que escreve seus textos geralmente antes de começar os ensaios. Muitas vezes, para ser franco, nem tenho ensaios à vista, escrevo sem saber se um dia virei a ser encenado. Mas não quer dizer que eu seja um autor de gabinete (forma pejorativa com que alguns se referem aos dramaturgos) e que meus textos não possam sofrer alterações durante os ensaios para que se chegue, de comum acordo, no que é idealizado pela direção e elenco, especialmente quando sou eu mesmo o encenador – o que é raro.

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Sabe, o que idealizamos jamais será o que de fato conseguiremos fazer. A obra que se partilha, seja durante os ensaios ou mesmo depois da estréia durante a temporada, sempre é defeituosa. . Não sei se acredito ser possível mudar o mundo por meio do teatro. Mas tenho fé na interação. E interação, numa época em que somos multidões de sozinhos, quem sabe auxilie na tentativa de se devolver a humanidade ao humano.

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Não aconselho você usar os elementos que se estuda em oficinas de dramaturgia contemporânea todos eles em uma única obra. Seria até ingênuo, pois ninguém dá conta disso. É mais prudente e eficaz escolher e aplicar um ou outro procedimento de criação e construção. E, mesmo assim, pode ter certeza que se o texto for potente, se tiver algo ali a mais do que palavras amontoadas, tomará vida própria e fará o que quiser com você. Sim, (já foi bastante dito, não é?) são os textos que nos escolhem e nos escrevem, não nós a eles. A técnica então deve ser estudada apenas para não atrapalhar a mão, que quer ser selvagem.

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Apropriando-se da máxima de Godard, pode ser dito que o teatro contemporâneo não é o sangue, mas o vermelho.

segunda-feira, 28 de março de 2011

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.....Juliana Galdino em Hieronymus nas Masmorras. Estréia 04 de abril, no Festival de Teatro de Curitiba. Com direção de Roberto Alvim. E texto de Luiz Felipe Leprevost (eu mesmo). As fotos são de autoria de Bob Sousa.

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quinta-feira, 24 de março de 2011

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Charge de Noviski
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*Poema de W.H. Auden
em tradução de Rodrigo Madeira
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Funeral Blues
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Parem os relógios, cortem o telefone,
Ao cão que ladra um osso que emudeça a fome.
Calem os pianos e, ao rufar dos tambores,
Tragam o caixão, deixem vir os pranteadores.
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Deixem que os aviões lamentem pelo céu,
escrevendo a mensagem: Sim, Ele Morreu.
Amarrem fitas de luto nas pombas públicas,
E que os guardas de trânsito usem negras luvas.
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Ele era meus dias úteis e meu descanso,
Meu meio-dia, meia-noite, fala e canto,
Era meu Norte, meu Sul, Leste e Oeste ao lado;
Pensei fosse o amor eterno: eu estava errado.
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Quem quer estrelas? Apaguem-nas uma a uma;
Desmontem o sol, tratem de embrulhar a lua,
E escorram todo o mar, ponham fora a floresta.
Porque nada disso (que ainda existe) presta.
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tradução: Rodrigo Madeira
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Funeral Blues
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Stop all the clocks, cut off the telephone,
Prevent the dog from barking with a juicy bone,
Silence the pianos and with muffled drum
Bring out the coffin, let the mourners come.
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Let aeroplanes circle moaning overhead
Scribbling on the sky the message He is Dead.
Put crepe bows round the white necks of the public doves,
Let the traffic policemen wear black cotton gloves.
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He was my North, my South, my East and West,
My working week and my Sunday rest,
My noon, my midnight, my talk, my song;
I thought that love would last forever: I was wrong.
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The stars are not wanted now; put out every one,
Pack up the moon and dismantle the sun,
Pour away the ocean and sweep up the woods;
For nothing now can ever come to any good.

domingo, 20 de março de 2011

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Ensaio da peça o Butô do Mick Jagger
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estréia dia 30 de março
no Festival de Teatro de Curitiba
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*As fotos são de Rosano Mauro
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Débora Vecchi
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Ciliane Vendruscolo
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LF Leprevost, Ana Larousse, Mario Netto
Ciliane Vendruscolo e Débora Vecchi
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Débora Vecchi e Ciliane Vendruscolo

sexta-feira, 18 de março de 2011

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A jornalista Sheila Gorski do Em Cartaz (site muito bacana) fez uma entrevista comigo sobre a montagem de O Butô do Mick Jagger e minha participação no Festival de Teatro de Curitiba.
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A entrevista foi publicada hoje no Em Cartaz (http://emcartaz.net/artes/1934/). Também a reproduzo na íntegra logo abaixo. Bjs.
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Luiz Felipe Leprevost
e o Butô de Mick Jagger
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18 de março de 2011
por Sheila Gorski
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Leprevost fotografado por Adriano Valenga Carneiro

Luiz Felipe Leprevost é ator, escritor, poeta, músico, dramaturgo e gosta de torta de limão, apostando ultimamente em cheesecakes. Nesse Festival de Curitiba duas peças são assinadas com sua inspiração: Hieronymus nas masmorras e o Butô de Mick Jagger. O primeiro título faz alusão ao nome do pintor holandês Hieronymus Bosch. Sobre a outra peça, que estará no Teatro da Caixa entre 30/03 e 03/04, confira a entrevista do Em Cartaz com Leprevost:

Como foi a criação do texto O Butô do Mick Jagger, que diga-se de passagem, tem um título bem curioso! Por que tem esse nome? O que te inspirou a escrever esse texto e teria algo, em essência, que gostaria de transmitir?

A primeira versão de O Butô do Mick Jagger foi escrita para uma encomenda, há mais ou menos três anos. A diretora Nina Rosa Sá queria encenar algum texto meu. Então martelei o computador e um universo se impôs. Eu, ao modo beatnik, vomitei a história de duas (ou uma?) estrelas decadentes do rock.
Ao longo dos anos, no entanto, voltei um sem-número de vezes ao texto. O que estou levando ao palco no Festival de Curitiba é o nono ou décimo tratamento. Reelaborei incansavelmente a estrutura inteira, escolhi palavra por palavra, tive grande preocupação com a síntese. E posso afirmar que O Butô do Mick Jagger de agora sofreu influência do dramaturgo e diretor Roberto Alvim, orientador do Núcleo de Dramaturgia do SESI/PR.
A peça tem tal nome porque contém uma apropriação explícita da dança japonesa, de seus fluxos e suas contorções ritualísticas de acesso ao reino dos mortos, às sombras, como também do universo pop sucateado que se vê no rock clássico, especialmente em dois de seus ícones: Mick Jagger e Kurt Cobain. A escritura do texto, o desenho dele na página, mimetiza a dança. Quero dizer, a forma como as palavras estão espalhadas ali sugerem ao leitor que são um corpo que está em ação. E foi daqui, do texto, que eu e as atrizes partimos, para logo ver tudo se complicar ainda mais na encenação.

Como está a expectativa para ao Festival de Curitiba?

Tento não ficar ansioso nem cultivar muitas ilusões. Sabe, tenho aproveitado bem os momentos, respeitando o tempo de cada coisa. Processos teatrais não são fáceis, conforme nos aprofundamos, lidamos com forças que não conhecemos bem. Mas para a aventura de agora não poderia estar melhor acompanhado. A cada dia fico mais entusiasmado com os ensaios, com a construção da peça. Conseguimos formar um grupo e tanto de criação. As atrizes (Ciliane Vendruscolo e Débora Vecchi) são talentosas e totalmente comprometidas com o trabalho. O que mais posso querer? Nossas apresentações serão no Teatro da Caixa, que tem ótima estrutura e, apesar dos poucos anos em atividade, tradição na cidade. Espero que o público venha assistir a peça e que o diálogo (que é o mais difícil) entre nós se dê realmente.

Tem planos para esse ano, seja na literatura, dramaturgia, interpretação?

Logo após o Festival, ainda em abril, será a vez do meu novo livro de contos Manual de putz sem pesares. O lançamento fará parte do ZOONA – encontro literário de Curitiba. Em maio ou junho, minha peça Hieronymus nas masmorras (também no Festival, teatro José Maria Santos, com direção de Roberto Alvim e Juliana Galdino no elenco) entra em cartaz em São Paulo, no teatro da Cia. Club Noir. No segundo semestre, possivelmente vou passar maior parte do tempo no Rio de Janeiro, dando sequência a alguns projetos que venho desenvolvendo em colaboração com a Pangéia Cia. de Teatro e seu diretor Diego de Angeli. Isso, claro, se e a vida não me obrigar outros rumos.

Site Em Cartaz