sábado, 30 de outubro de 2010

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Arte Simon Schubert.

Para dentro de um livro em branco
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ter sido corajoso para não partir
forte para não voltar
sábio para não me arrepender
ter bebibo mais suco de melancia
usado melhor as mãos os braços
os lábios a bochecha antes
de presenciar morrer o que amei
ter visto toda a filmografia do Kurosawa
e ido mais à praia – não devia ter abandonado o surfe
e estudado mais
dito mais sins às oportunidades de trabalho
e dado um jeito de estar perto de quem precisava estar perto
ter viajado para a Europa
me empenhado mais em levar meus textos ao palco
talvez escrito um livro chamado
Requiém para um frango à passarinho
ou Uma história de esquartejamento e deglutição
e ter aprendido xadrez
praticado budismo
ensaiado a valer minha orquestra de beijos
usado mais vezes sem pudores o banheiro feminino
ter ficado mais tempo em silêncio abraçado
com a garota que foi minha e eu fui dela
e ter cantado para ela orações apenas com os olhos
e ter pensado o impensável
e dito mais palavras amenas simples diretas
sobre meus sentimentos – especialmente aos meus pais
e lido O homem que calculava
e aprendido a ganhar dinheiro
e ter visto Kazuo Ohno ao vivo
cruzado a cidade mais vezes à pé nas madrugadas de primavera
e largado tudo para trabalhar como cuidador de cavalos
numa fazenda texana
ou então, ao menos uma vez, experimentado o diabo no sangue
seguido de exorcismo seguido de entidades
ponteando violões que curam nossa existencia
e ter casado aos 17
com minha namorada cinco anos mais velha, sacerdotisa do fogo
ou estar partindo agora para uma aventura
para dentro de um livro em branco

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Sexta-Feira que vem (05 de novembro) essa banda boa pra caralho do Rio de Janeiro tocará no Wonka. E eu vou abrir pra eles a noite com minhas canções mais berradas e foda-se. Quem quiser conferir um pouco o trampo deles vai aqui: http://www.myspace.com/osoutros. Ou aqui: http://www.youtube.com/watch?v=9Pewg8cYmcI.
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segunda-feira, 25 de outubro de 2010

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arte de Enéas Lour
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(nunca consigo postar com um tamanho maior)

domingo, 24 de outubro de 2010

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LF Leprevost e Thiago Chavez no Wonka Bar, em 20/10/2010
por Olívia D´Agnoluzzo
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Matéria que saiu nesse domingo, 24 de outubro, no caderno Almanaque, do impresso O Estado do Paraná e também online. Agradeço a jornalista Paula Melech, sempre atenta e carinhosa com os artistas da cidade.
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Ao som da música curitibana
por Paula Melech
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Luiz Felipe Leprevost e Thiago Chaves gostam de encontros. Se for naquele esquema de festa cheia de amigos, melhor ainda. Essa característica comum foi o que levou o primeiro, poeta, músico e dramaturgo a topar com o segundo, músico e compositor. No momento em que os interesses se encontravam, apareciam os primeiros sinais do que se tornaria uma parceria.
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Thiago relembra o momento: “Ele me passou uma letra pra musicar e percebemos que a harmonia acontecia”. A canção, Sonâmbulo, conta a história de um cara que está enfrentando mal a relação com o universo underground. A “letra triste”, conta Leprevost, é consequência do modo como o clima do inverno reverberava dentro deles. A temperatura refletiu, pontualmente, nas composições produzidas a quatro mãos e que, agora estão prontas para serem ouvidas.
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Este é um momento que aflige a maioria dos músicos que desenvolvem trabalhos autorais em Curitiba: afinal, onde tocar? O Wonka Bar, na Rua Trajano Reis, é um desses lugares onde o foco está na qualidade musical, privilegiando artistas da cidade. Há cinco anos, o endereço, no bairro São Francisco, reúne músicos, escritores poetas, atores e público em torno de uma mesma vontade.
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Interessada no potencial dos artistas da cidade, a proprietária Ieda Godoy abriu as portas do Wonka com a disposição de tornar o endereço um reduto de produção cultural de qualidade. “Desde que abri o bar [em 2005], penso nessa característica, muitas pessoas começaram apresentando seus trabalhos lá”. Ela cita como exemplos o grupo Molungo, Troy Rossilho, Alexandre França, Leo Fressato e o próprio Leprevost. Copacabana Club e Bonde do Rolê são outras bandas que sempre aparecem.
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Apostar na produção cultural de Curitiba não é uma novidade, mas a apuração de um universo já conhecido por Ieda - dona do antigo Bar Dromedário (fechado em 2002). “O curitibano sempre teve essa coisa de não se valorizar, mas agora está se olhando com mais carinho para o trabalho das pessoas. Isso é lindo. É muito emocionante ver esse respeito pelo artista, essa comunhão com o público”.
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O sucesso das noites é efeito do criterioso processo de curadoria a que a proprietária se dedica. “Sempre que tem algum trabalho próprio eu me interesso em conhecer. Tenho alguns critérios para selecionar e fico felicíssima quando vejo as coisas acontecerem”. Ela cita como exemplos o Copacabana Club e o Bonde do Rolê, bandas que se criaram dentro do Wonka e hoje ganharam o País.
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No palco
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O show iria começar às 23 horas, mas às 19 horas Leprevost e Thiago já ensaiavam o trabalho que foi apresentado na última noite de quarta-feira no projeto Homens de ferro. Um intervalo foi o tempo necessário para o papo se dirigir aos espaços que tornam possível esse trabalho.
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Thiago ressalta que em lugares assim a música é expressão artística e não somente entretenimento. “Queremos mostrar o movimento. Os compositores necessitam desses espaços, onde não precisam de editais para tocar a sua música”. Leprevost completa: “Tem uma grande rede de pessoas conectadas na produção artística. A demanda existe. Queremos dialogar com a platéia com o interesse mútuo de expansão dos sentidos por meio da arte”.
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Essa rede que interliga os artistas da cidade certamente contribui com a disseminação da música partindo do desejo de expressão autêntica. Em sintonia de pensamento e vontades, os parceiros Uyara Torrente (A Banda Mais Bonita da Cidade) e Raphael Moraes (Nuvens) foram convidados a incrementar o show no porão do Wonka.
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O repertório, inspirado pelo inverno, desenhou um clima favorável às letras mais melancólicas, incluindo as três inéditas Pó pó pó; Mimimi e Assobiando apelo. A primeira, com letra e música de Leprevost, é um pequeno poema declamado com o violão no colo. Mimimi, uma parceria com Rodrigo Lemos e Ligia Oliveira, emergiu em um desses encontros, sublinha Leprevost, onde em “90% dos casos surgem canções”. Já Assobiando apelo é uma letra escrita há tempos que ganhou agora o acompanhamento da guitarra de Thiago. “É a história de um cara que está triste e as pessoas passam a não notá-lo mais. Ele foi se apagando e assobia essa melodia”, explica o autor.

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O estilo cru tem muitas variações 4
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Sempre precisei passar longos tempos sozinho, protegendo-me um pouco do mundo. A biblioteca da escola era um ótimo lugar para isso. Hoje, porém, gosto de presenciar a balburdia da cidade. A urbe é fundamental para composição e a voz interna de meus textos. Cafés, bares, ruas, lugares são salas de estudo. Gosto de escrever a mão, então não tenho problema em trabalhar fora de casa. Procuro me manter num estado de latência criativa. E é claro que em algum momento preciso me trancar para burilar as anotações, alçá-las a um nível mais complexo da experiência artística. As ruas podem fazer com que você perca o foco, a concentração. O desequilíbrio, as oscilações de humor, os acontecimentos inesperados só serão produtivos se você tiver um cantinho calmo e silencioso para retornar quando se vir farto, esgotado.
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Os cafés são bons lugares para escritores. Às vezes roubo frases da mesa ao lado. Trabalho valorizando uma dor de cabeça cujo motivo não sei qual é e que me ajuda a pensar de um modo torto. Idéias pululam de vez em quando, noutras ocasiões elas somem por longos períodos. Mas sou apegado mesmo à ação. Sento e escrevo, pratico. Assim desenvolvo as idéias. Agir me faz pensar.
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Duvido de quem diz “não escrevo porque não tenho o que dizer, quando tiver, escreverei”. Acontece que se você não escreve, não vai ficar sabendo se tem mesmo algo a dizer ou não. Permanecer no universo da idealização é estar pré-morto. É preciso enfrentar-se. Responder ao medo, com ênfase, como ensina Carlos Drummond ao dizer, se bem me recordo, que tristes são as coisas feitas sem ênfase.
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Daí vai que o corpo é o começo do meu texto. Meu trabalho é absolutamente artesanal. Os livros só chegam bem depois. Não escolho o livro antes de iniciar anotações num caderninho Tilibra. Nunca sei o que será. Não posso dizer que não planejo, pois apesar de tudo, a literatura é uma atividade intelectual. Então há esse diálogo entre o instinto e racionalidade. Há muita racionalidade, é inegável, porque a própria capacidade técnica de se escrever vem de uma espécie de adestramento (a palavra não é exata), tem entre seus fundamentos a alfabetização. Tal instrução liberta, é altamente desejável. As técnicas devem ser dominadas para que as esqueçamos depois, permitindo que o inconsciente aflore. Viver nesse lugar de tensão entre esses dois pólos (instinto e técnica) possibilita que o desconhecido que habita em nós venha ser parte do produzimos.
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Há vezes em que traço objetivamente a composição de uma série de textos. Definido o que desejo como eu fosse um projetista. Mas logo que inicio o trabalho, imediatamente me cobro a liberdade. Então endereço os textos, faço isso, crio para alguém, para o mundo, por amor, por vingança, por política, por ternura, por revolta, por desespero, por orgulho, não importa. Vale que assim eu me implico. Não tenho medo de me machucar quando estou criando.
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Depois desse ímpeto inicial, sou capaz de trabalhar o mesmo parágrafo durante a semana inteira. Promovendo inúmeras variações de sua estrutura, invertendo o sentido, retirando de uma frase todas as palavras que a natureza não exige, como li recentemente num belo livro de Gonçalo M. Tavares. Tudo isso me esgota. Porem me importa ter forças para podar arestas – a poda fortalece os galhos. Para mim é muitíssimo trabalhoso deixar de ser prolixo.
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É importante salientar que tudo isso está num plano ideal que vivo perseguindo. Mas o escritor é tão falível quanto qualquer outro ser humano. E é nesse ponto que quanto mais me enfrento, mais a criação se impõe – eu me nego, me inverto, minto. Só assim posso ser tão sincero quanto preciso. Só assim quem ler o que escrevi com tal verdade poderá duvidar de que aquilo não é ficção. Eu desejo que os leitores esqueçam que estão lendo algo ficcional. O que lêem é a vida mesma. É assim que sinto quando me deparo com a obra de um grande autor. Não estou querendo me comparar, mas acredito que os artistas não podem querer pouco. Não querer pouco é muito o nosso ofício. É por causa dessa tensão entre a verdade do escritor e sua criação formal que a literatura se dá em estado de revelação. A epifania agora é do leitor. É ele quem, em última instância, possibilita a existência das personagens, seus deslocamentos, as trajetórias da linguagem.

sábado, 23 de outubro de 2010

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O estilo cru tem muitas variaçãoes 3
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A literatura, embora não tenha me trazido dinheiro ao bolso, deu-me algo que posso chamar de angustiada felicidade, e calos na mão. Na angustia só há perguntas sem respostas. Na felicidade, por estarmos plenos, perguntas não há. Quando um sofrimento de difícil explicação surge e com ele perturbações sem limites, posso optar em escrever ou não, mas sei que escrever é o principal modo de se especular a existência humana. Ou posso esperar apenas. Pacientemente esperar. A espera, a reflexão, o estado ponderado produz sabedoria. No entanto, se só espera e não põe mãos à obra, o sábio não escreve nada. Assim, o que adianta ser sábio? Fique claro que estou me referindo à literatura, já que é possível haver sábios por aí que, inclusive, pode que sejam analfabetos. Agora, escrever, que é uma das mais íntimas pesquisas humanas... Escrever, que é como entrar num laboratório afetivo e recombinar uma série de poções explosivas... Bem, escrever nada responde, e assim pode ou não produzir sábios. Muita vez produz apenas escritores, e quem sabe isso baste. E nisso vai o paradoxo. Será possível um escritor sem sabedoria? O que posso afirmar? Comigo funciona assim, por mais que escave, vasculhe o que não compreendo, ao escrever machuco bem mais o punho.
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Se em meus textos abro algo da minha intimidade é porque (é óbvio assim) não estou salvo. Então faço uma pausa ao escrever isto e coloco as mãos no rosto. Lambo a pele grossa da palma com a língua e (de certo modo) é uma ferida o que lambo. Imolo a pele que descreve aquilo que já não sou mais. Escrevo porque embora estejamos acostumados a chorar pelos olhos, as mãos também choram.
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Estou sentado aqui por horas a fio. Continuo escrevendo já que o fogo não acabou de comer minhas mãos. Sim, escrevo à mão... com as duas. E mais com as mãos do que com o coração. E mais com ele do que com o cérebro. O fogo é assim, não escolhe, come o máximo que consegue, mesmo o que não necessita. O fogo não distingue se isso ou aquilo vale ou não ser comido. Nada pesa em seu estômago azul. A escuridão mastigada é sua melhor amiga, é ela quem o ajuda a modelar as chamas nervosas. A uma película que escureceu dizemos se tratar de um filme queimado. Películas que enquanto registram imagens as vão devorando, eis o que estou produzindo aqui.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

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O estilo cru tem muitas variações 2
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Não decidi. Quando vi era isto, alguém debruçado sobre um punhado de papéis. Neguei por algum tempo. A escrita não é um mar de rosas. A exigência me machuca muito. Mas é um regozijo ver um conto, um poema prontos.
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Sempre achei clichê dizer que se escreve por que não se tem opção. Acho que poderia ser qualquer coisa, mas seria um completo incompetente. Na literatura não me considero incompetente, então talvez esteja no lugar certo. A arte não é um lugar seguro, é verdade, certezas não cabem nela. No mais, você se sente o pior do mundo com frequência, mas pelo menos desconfia que esteja fazendo exatamente aquilo que veio fazer na vida. Mesmo se eu não acreditasse no que escrevo, teria que continuar escrevendo. Então eu sigo, sem perguntar demais.
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Sabe, teve o dia em que compus uma redação que contava minha estória de amor com uma pequena do colégio. Resultou no primeiro 10 que tirei na vida (e foram poucos). Assim, tanto a redação quanto o amor me pareceram algo que continham algum valor. Passei a escrever poemas. Entendi que o invisível que está entre as pessoas, pode que falam mais sobre elas do que as impressões e julgamentos que fazemos. O impossível, o imponderável é que são matéria da literatura, por isso ela não se esgota. É como diz Henry Miller (cito de cabeça): é preciso injetar sangue nos fantasmas.
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Veja, a literatura cobra de você uma coisa que pode ser assustadora: a solidão. Sem solidão não há produção literária. Ninguém se transforma num García Márquez da noite para o dia. Parece-me que a maior dificuldade que um escritor pode enfrentar é a de dar consequência, continuidade à obra.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

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O estilo cru tem muitas variações 1
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A primeira imagem relacionada a literatura de que me recordo, e com ela como que tive um alumbramento, foi quando devia ter cinco, seis anos de idade. Meu pai pagava a conta dos doces que comemos na Confeitaria das Famílias. Enquanto esperava, sem pestanejar eu olhava para um homem gordo que na mesa em frente olhava, do mesmo modo que eu, para um objeto de papel. Era um livro. O homem gordo, um leitor, explicou-me meu pai quando saímos da Confeitaria.
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Veio a descoberta da biblioteca herdada de meu avô, repleta de clássicos como, por exemplo, Os Miseráveis, de Victor Hugo; Sermões, de Padre Antonio Vieira; Os lusíadas, de Camões; O Paraíso Perdido, de Milton; Fábulas, de La Fontaine; obras que ainda hoje, respeitada a idade certa para cada aventura, aos poucos e sem pressa vou lendo.
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Lembro de esperar ansiosamente a chegada das Feiras do livro, na escola. Eventos que à época, por intuição, de algum modo me diziam respeito.
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Nunca fui bom no colégio. Minhas notas eram péssimas. Reprovei duas vezes de ano. Era um rebelde. No recreio brigava até sangrar com colegas. Brigava na rua. Esforcei-me nos esportes. Em alguns até conquistei destaque. Mas teve esse dia em que escrevi uma redação que contava minha estória de amor com a menina mais bonita da minha série. Daí em diante só ficou mais difícil.
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Lembro ainda de um professor da oitava série que me marcou. Chamava-se Sérgio Vicentin, professor de história e geografia. Ele costumava repetir para nós a frase de um poeta, segundo entendi na época. A frase era assim (cito de cabeça): Não concordo com nada do que você diz, mas defendo seu direito de dizer. Era de um homem chamado Karl Marx. Teve uma vez que esse professor me deu uma lição sobre justiça que não esquecerei. Tinha me dado uma nota baixa. Comparei minha prova com a de uma colega, a resposta dela era idêntica a minha, mas eu tinha tirado zero na questão. Pois bem, fui reclamar a nota, clamei por justiça, ele disse “você quer justiça?, certo”, pegou a prova da menina e deu zero para ela na questão. Poxa vida, eu não sabia onde me enfiar, acabava de prejudicar alguém que tinha me ajudado. Acontece que a ajuda que pedi a ela havia sido um tanto ilícita. Vicentin sabia que eu tinha colado a questão dela no dia da prova, por isso me dera o agudo zero.
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Também no colégio. O primeiro livro de poemas que tomei contato foi uma antologia de poesia portuguesa chamada de Camões à Pessoa. A gente era obrigado a ler o livro na sétima série. Meus amigos achavam muito chato. Eu gostava, mas mentia que não. É que você fica com fama de nerds se na sétima série contar que gosta de Almeida Garret. E nerds é uma coisa que nunca fui. Eu tenho um primo que foi nerd. Sempre que estudava história, geografia ou matemática com ele, eu ia bem nas provas. Eu gotava dos nerds, queria ser como eles. Eu gostava muito de ir bem nas provas, mas vivia com a corda no pescoço.
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Meu começo na literatura foi diferente do de boa parte dos escritores brasileiros. Não comecei lendo Monteiro Lobato. Tampouco iniciei com o consumo frenético de gibis. Não lembro bem quais foram as primeiras leituras. Tenho um ou dois enredos da época na cabeça. Uma estória que se passava no interior, o menino pobre, meio feio e sentimental. Ele queria ser cantor, acho que tocava violão. E gostava de uma garota que não dava a mínima para ele. Não lembro do final. Tem outro ainda que me ocorre agora: Uma família classe média. O filho é brilhante na escola. Aos poucos se envolve com drogas e destrói sua vida. Não sei bem o que acontece, se ele se recupera ou não. Esses eram livros que a gente tinha que ler na escola. Acho que traziam mensagens, eram um tanto didáticos. Nessa época, resolvi experimentar benzina. Toda nossa turminha tinha começado a fumar cigarro de cravo, cheirar benzina e se agarrar para além de beijos.
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Já no segundo grau, aí sim, li Dom Casmurro, do Machado. E Memórias do Subsolo, do Dostoievski. Uma primeira consciência a respeito do ofício de escritor se deu. Mais ou menos nesse período comecei a ler o Vinicius de Moraes. E eu queria ser o Vinicius. E ele foi deveras generoso comigo, apresentando-me sua numerosa turma, entre os quais: João Cabral, Murilo Mendes, Drumonnd. Caí pesado na geração de 45, só então retornei na direção dos modernistas.
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Há ainda o Hamlet, de Shakespeare, que é minha fonte inesgotável. Samuel Beckett, mestre a narrar o esfacelamento da civilização do ponto de vista do indivíduo deformado física e moralmente. Julio Cortazar, cuja obra me sopra a todo momento “ser livre é isso, amiguinho, ser livre é urgente.” Há tantos autores que mudaram minha vida, minha visão de mundo e os rumos da literatura em mim. Entre eles: José Agripinno, com Panamérica; Raduan Nassar, com Lavoura Arcaica; João Gilberto Noll, com a Fúria do Corpo; Hilda Hilst, Clarice Lispector. Anton Tchecov e Nelson Rodrigues com seus teatros. Isso não tem fim. Ficaria citando a noite toda, mas é bobagem listar nomes. Se o faço é pela natureza deste texto, que pretende ser um pequeno (sabendo-se incompleto) depoimento. Alguns nomes mais urgentemente estão me ocorrendo. Claro, aqui pertinho de casa, jamais poderei esquecer o Manoel Carlos Karam. Antes de tomar conhecimento de seu trabalho, jamais havia admitido o funcionamento do humor na literatura, eu não sabia o que era isso. O Karam é o responsável por eu ter descortinado também essa faceta da arte, a alegria, a ironia, que considero uma forma de inteligência superior. Quando consigo escrever com alguma astúcia, devo ao fato de ter lido todos os livros do Manoel Carlos Karam, um a um, sem jamais perder o espanto. Foi um gênio, e ao nosso alcance.
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Daí segui me metendo com o Salinger e o Jhon Fante. Desses eu li a obra toda, até hoje releio. Então Jack London, Ernest Hemingway, William Faulkner. O lado sujo: Charles Bukowski, Pedro Juan Gutiérrez, Rubem Fonseca, Dalton Trevisan. São caras cujas obras me provocam e alimentam bastante, cada um a sua maneira. O estilo cru tem muitas variações. E é claro que há muitos outros escritores a quem devo a vida.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

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Vozes do remédio
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flagro-te bruto tosco
digo, chulo, baixo feito um
diabo se afogando em latrina
de banheiro público
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pode que te ofenda
percebendo-me o açougueiro
(a medicina segue medieval
em alguns procedimentos)
de tua carne sem selo de garantia
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devo agir rápido
um, dois talhos e vejo
o que tens, chechelento
desengana-te como ácida escória
a doença que entranhas-te
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mas te acalma, esta poesia
que agora escutas com os olhos
são as vozes do remédio
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“Eu faço versos como quem chora”
Manuel Bandeira
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“eu faço versos como quem talha.”
Waly Salomão

hoje
eu faço versos como quem coloca
meias de lã nos pés do inverno
eu faço versos como quem inflama líquidos
dentro da mulher amada
eu faço versos como quem dá uma chupada na
ferida do limão
eu faço versos como quem sopra a
brasa sobre a qual pisar
eu faço versos como quem cala numa
página desprezada por pássaros
eu faço versos como quem descansa a
língua da maledicência
eu faço versos como quem tem olhos
acuados de contemplação
eu faço versos como quem entoa cantigas de
ninar bois na execução
eu faço versos como quem se lança às piranhas
eu faço versos como quem engole a própria mão
e quer mais

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

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trata-se da plena luz
do meio-dia
que teus passos ilumina
e cega
ferindo os olhos como fosse
o shampoo que Deus derrama
sobre a Terra
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assim segues
pelo caminho, cascos de cavalo
a pisar o piano das
pedras escorregadias

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

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Para Tavinho Paes
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caso me indagassem
com o intuito de saber
o que mais quero agora
(que já estou fatigado
e trêmulo
que nada além de vultos
enxergo – fantasmas?
de quem? de que épocas
humanas? – que nada
lembro e sou
sozinho quanto
um morto que, por insistir na
vida, esqueceu-se
de ir esperar o próprio
velório na capela)
reponderia: a visão diáfana
de um único poema
nem que fosse meu
último poema, vermes
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Ode à terra
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Eu não canto a terra
pródiga,
a pletórica
mãe das raízes,
a esbanjadora,
compacta de frutos e de pássaros,
lodos e nascentes,
pátria dos caimões,
sultana de grandes seios
e eriçado diadema,
nem a origem
do tigre na folhagem
nem a grávida terra de lavoura.
Com a sua semente como
um minúsculo ninho
que amanhã cantará,
não, eu louvo
a terra mineral, a pedra andina,
a severa cicatriz
do deserto lunar, as vastas
areias de salitre,
eu canto
o ferro,
a eriçada cabeça
do cobre e os seus frutos
quando emerge
envolto em poeira e pólvora
recém-desenterrado
da geografia.
Ó terra, mãe cruel,
ali escondeste
os metais nas profundidades,
de lá os retiramos
e com fogo
o homem,
Pedro,
Rodriguez ou Ramirez
os converteu novamente
em luz original, em lava líquida,
e então
implacável contigo, terra,
colérico metal,
saíste das pequenas mãos de meu tio,
arame ou ferradura,
navio ou locomotiva,
esqueleto de estudo,
velocidade de bala.
Árida terra, mão
sem linhas na palma,
é para ti que eu canto,
aqui não gorjeaste
nem te alimentou a rosa
da corrente que canta
seca, dura e cerrada,
punho inimigo, estrela
negra,
eu te canto
porque o homem
far-te-á parir, encher-te-á de frutos,
procurará os teus ovários,
na tua secreta taça
os especiosos raios derramei,
terra dos desertos,
puro horizonte,
porque pareces morta
e te acorda
o estrondo da dinamite,
e uma coluna de sangrento fumo
anuncia o parto
e saltam para o céu os estilhaços,
eis para ti as escrituras do meu canto.
Terra, gosto de ti
na argila e na areia,
ergo-te e moldo-te,
como tu me moldas-te,
e deslizas dos meus dedos
como eu desatado
volto para a tua ampla matriz.
Subitamente, terra,
parece-me aflorar
todos os teus contornos
de porosa medalha,
de jarra diminuta,
e em tua forma passeio
as minhas mãos
achando as ancas daquela que amo,
os pequeninos seios,
o vento como um grão
de suave e morna aveia
e a ti me abraço, terra,
durmo junto a ti,
na tua cintura prendem-se-me os braços e os lábios
durmo contigo e semeio os meus mais profundos beijos.
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Pablo Neruda
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*Estou muitíssimo comovido com
o resgate dos mineiros chilenos após 69 dias
presos nas profundezas da terra,
no deserto do Atacama.
A cápsula Fênix,
com apenas 54 cm de diâmetro,
está sendo a responsável pela coragem e
heroísmo do Chile.
E pela esperança da humanidade.
Creio esta ode de Neruda
(um guerreiro sem pausa) ser oportuna.

domingo, 10 de outubro de 2010

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Lenço branco no alto do navio
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a mão serve
para se ler
na palma
o curso de águas
que levam longe
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a mão é
o melhor ouvido
para se escutar
declarações
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a mão que segura
outra, dois pássaros
com raízes
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você precisou
colocar ataduras
(lenço branco
no alto do navio)
para suportar
a queimadura
do aceno
de adeus

sábado, 9 de outubro de 2010

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Cláudio Bettega
12/06/1971 - 06/09/2010
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Só fiquei sabendo agora que meu amigo, o poeta e ator Cláudio Bettega, faleceu no último dia 06 de um ataque do coração. Ataque do próprio coração, o corpo não poderia ser mais traiçoeiro. Nos últimos tempos eu via pouco o Claudião. Mas acompanhei de perto tanto seu começo no teatro quanto na poesia. Ao longo dos anos bebemos algumas cervejas juntos, demos risadas. Trocamos figurinhas. O Bettega era um cara grande e eu me identificava com ele. A gente conversava abertamente sobre assuntos bastante incômodos pra nós. Por isso eu me achava capaz de dividir seu sofrimento quando estávamos juntos. Agora noto o quanto eu era ingênuo. A pior dor do mundo é a de quem a sofre, porque é só essa a que somos realmente capazes de sentir. Mas, apesar de tudo, Cláudio era um doce de pessoa, um anjo leve. Nunca vi um ato seu deselegante, amargo ou maldoso. Tínhamos o desejo mútuo de levar à cena o meu monólogo Pífio, com interpretação dele e minha direção. Jamais imaginei que não haveria tempo, por mais que ele tenha me cobrado ao menos nas duas últimas vezes em que nos encontramos. Não sabíamos, mas nos despedimos na festa de lançamento do selo 1801, do Francinha, no Wonka, dia 19/09. No começo da noite a gente conversou um pouco, eu li pra ele uns dois poemas do livro do Edson Falcão que estavam no repertório do recital. Ele, como sempre, com o apaixonado interesse pela obra dos poetas daqui. Sabe, Claudião, jamais vou esquecer de você caído bêbado, esticado na caçamba da minha caminhonete naquela já longínqua madrugada de julho em que te dei carona pra casa. Fica em paz, amigo. A carona que pegou agora vai te levar pra um lugar onde você poderá, como diz um dos teus versos, amar e sentir o vento ainda melhor.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

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Criança na janela do avião
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ó mãe dá pra ver o mundo
é aqui que o Papai do Céu fica?
a gente vai descer pelo escorregador?
mas se cair na nuvem solta raio na gente?
no céu não tem contramão?
é aqui onde o Lucas está?
quero dar um abraço bem apertado nele
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pela manhã do chão recolhia
apodrecidas mimosas
como fossem fígado estômago
coração vísceras
de um corpo desprezado
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durante a noite
em casa cortinas cerradas
livrava-se do figurino de cidadão
nó de vômito na garganta
despia-se da carne
devolvia o esqueleto sequestrado

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

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“...me falta a simplicidade divina
De ser todo só meu exterior
Alberto Caeiro
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o metabolismo tem
muitos outros nomes
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espírito é só um deles
e pode que caiba em fórmulas (?)
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o corpo humano o chamamos
de diversos eus
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pedregulho, por exemplo
se o lançamos contra uma vidraça
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anatomia se o emprestamos
à lâmina, e por aí afora
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no mais, o subconsciente
também tem dentes

terça-feira, 5 de outubro de 2010

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Negativo de uma fotografia
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tenho nas mãos
não alguém sorrindo
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nítidos músculos
um rosto e o resto
dissecados
qual aparecem ilustrados
em apostilas
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lúbrica abstração
de fera colérica
pelos arrepiados
profusão de presas
garras fome
.
e é só alguém
sorrindo
.
toda presa garra
fome busca carne
.
tenho nas mãos
o negativo
de uma fotografia
o organismo
de um ausente

sábado, 2 de outubro de 2010

lobotomia

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A Banda Mais Bonita da Cidade cantando Lobomia, canção que fiz há anos em parceria com Troy Rossilho. Gosto muito dos arranjos e da emoção que eles colocam nas várias músicas de minha lavra que estão em seu repertório. tROY rOSSILHO E lUIZ fELIPE le
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Lobotomia
(Troy Rossilho e LF Leprevost)
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quando eu jacu você erudição
você pé no chão eu aerovia
quando eu minoria você população
quando você hindu eu vacaria
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quando eu caligrafia você computação
e se você amputação quem me abraçaria?
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quando o meu tum-tum baticum o teu atrofia
e se o teu taquicardia ai do meu coração

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quando eu presídio do ahú você alforria
quando você séria serei piração
quando eu contusão você anestesia
você Capitu e eu maridão
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quando eu dragão você antipaleontologia
e se não contraria quem então senão
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quando o meu tum-tum baticum o teu atrofia
e se o teu taquicardia ai do meu coração
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quando você no iglu eu insolação
quando eu maresia você jamais fumaria
quando você ave maria eu danação
quando eu vodu você na sacristia
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você renascia e eu abstração
e se eu lobão você me lobotomia me lobotomia me lobotomia