quarta-feira, 28 de dezembro de 2011


apontamentos sobre o verão: 1. o que aqui começa, o que continua? 2. meu fraco são as axilas, e a nuca, também a nuca. 3. esforço-me para ser um bicho de estimação, sou indomado. 4. veja os pombos, tendo os pés no chão ou nas alturas se faz muita cagada. 5. o verde é um personagem, o vermelho outro. 6. é sobre um coro de bêbados também. 7. a tarde e a noite, a primeira finda, a outra se estica, tudo escurece, o poema de hoje. 8. a urgência não dá espaço para escolhas. 9. a beleza está aqui na minha frente, ela dança intercalando sofreguidão e a mais morna e macia das ações. 10. parabéns aos Hércules que fingem suportar. 11. deixa a tristeza escorrer.12. sabe aquela música Doody IV, do Nei Lisboa? 13. toda fragilidade é na primeira pessoa. 14. meu pau não é dos maiores, mas sei usar bem. 15. sempre estamos aprendendo outras coisas do mesmo das coisas. 16. que alternativas tenho eu? 17. as folhas são ferrugem nos galhos, o fim de tarde colhe a luz azulejada, começa a chover, o centro alaga, devo chamar isso de cenário? 18. o poema narrativo está se reinventando. 19. a luz parece deslocada no meio do cinza do dia. 20. a poesia é erro. 21. há aqueles que sorvem catástrofes feito sorvetes sorvessem. 22. o corpo é o começo do meu texto é o meu nome completo.

sábado, 24 de dezembro de 2011


herdamos de nossa avó uma fitinha cassete com canções natalinas cantadas em italiano. todos os anos, esta é a hora em que meu pai a coloca para tocar. já tenho idade para uma dose de uísque. bebo comovido, as canções são algo de que nunca me livrarei. em minutos vou tomar meu banho e colocar a camisa nova. todos começarão a chegar com seus pacotes. sempre tenho a sensação de que não vou ganhar nada de ninguém. e por que deveria? ficaria feliz se conseguisse alguma vez ser um bom homem. de todo modo, no final, alguém aparecerá com um livro, com uma camiseta alguns números menores, um vidro de perfume embrulhado com meu nome na etiqueta. sabe, o italiano é uma lingua e tanto, e a poesia de Eugênio Montale um dia deve ter me salvado. sinto muita saudade da dona desta fitinha, aquele pinguinzinho com neve na cabeça, meu verdadeiro papai noel. todos os anos, esta é a hora. nada pode ser mais belo, triste e necessário.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

peça de teatro

muitos, infelizmente, sentiram tão somente o cheiro do linóleo, porém outros, como eu, o dos atores. percebia, sentado na platéia, miúdas sutilizas que eram assombros. o elenco. desejava saber o que ia datilografado nas folhas que vez em quando as personagens trocavam ao gosto do acaso, efeito igualmente construído. todo livro, o sagrado. os intérpretes decoravam e abandonavam as folhas. alguém distraído que por ali passasse. ou transeuntes apressados. os ônibus não especulam, vão, retornam em quarenta minutos. palavras para serem esquecidas. eu permanecia a decodificar o bilhete do namorado ao abraçar a moça por trás como que fazendo seu adeus. foi assim. numa cidade velha em que morei. o adeus mais duro é olho no olho, diziam, e eu já sabia. apostava-se no trabalho dos topógrafos. êxtase da companhia teatral. encenavam a memória, acumulo de esquecimentos. o vento também era personagem. ao perder o chapéu, junto, o homem, perdia a cabeça. ia buscar, estava enterrado. não sabíamos de onde vinham os bebês. não digo que ao partir tenhamos saído ilesos. o nariz do velho apontou e caminhamos rumo ao sul. viver para fundar e abandonar, dizia. o risco, única opção, dizia. os atores. meus pés vivos, a carne sem pele. só vim porque você veio, sussurrei em seu ouvido. ela havia amadurecido sua característica dramaticidade de sempre. não era a primeira vez em que me deleitava com tamanha capacidade cômica.
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clique na imagem, ela fica maior

sábado, 10 de dezembro de 2011

a pensão

só marginais transitam por lá, diziam
refúgio das gentes falidas
ruas sem ruidosas buzinas de motocicletas
sem teclados sintetizadores misturados com
sanfonas nas madrugadas
estragadas mulheres
enfermeiros aposentados
gatos pretos que funcionassem
qual manchas de óleo a correr ruelas
ela
atrás de uma cortina fina
mostrava-a mais que ocultava, flores na ventania
ao lado, cachorro desajeitado com cara de jegue
trombando nos móveis da sala e cozinha, um ambiente só
eu o temia mais que aos dragões que
dizem bater asas nos bosques
a qualquer momento abrirá suas asas
mostrará a língua para nós
alçará portão fora gargalhando chamas
enquanto tirarmos os pratos da mesa
a besta resolvia me interpelar com seu focinho e presas à mostra
querendo os pratos
também três homens, trajes brancos, puídos,
riam e jantavam desconexos assuntos
pensão iluminada por velas que pingavam sutis em
nossos olhos marejados de neblina
e o chá preparado por feiticeiras
no outro dia, após o café matutino, passeei
regiões afastadas do perímetro urbano
a periferia da periferia resistia
lugar de antes de haver metrópoles porque metrópole
casas de madeira, samambaias na varanda, hortênsias as cercando
estradinhas brancas que levavam até vacas distraídas
pastando a idade da pedra
sombra lilás de galhos e nuvens
quero-queros no noturno do inverno carregando uma
sacola ampla vazada de estrelas
o armazéns de madeira úmida
e a lagartixa recém acordada de um sono sem relógios
a defender os tijolos da parede de ataques dos mosquitos
nascidos para fazer-nos coçar

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Lançamento da minha primeira novela

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Olha aí, a capa do meu livro novo E se contorce igual a um dragãozinho ferido. Editado pela Arte & Letra Livros. Um primor o trabalho deles. O design todo é do Frede Marés Tizzot. E meu maninho Botika colocou uma orelha no bichinho vomitador de fogo. Dia 17, sábado, a partir das 15 horas, faremos o lançamento na Livraria Arte & Letra (Rua Pres. Taunay, 130 - fundos da Casa de Pedra - Batel). 

cinema

há anos a Igreja obsoleta

era um lugar que doía
você adentrava suas dependências
uma força centrífuga sugava a energia dos segundos

o padre veio de outra cidade, há muito
não havia religiosos
para a inauguração, água benta

hoje, o Cine Passado

projeções a iluminar
não souberam um jeito de encontrar Deus lá dentro

Deus, este decepcionado lugar

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

rugas despudoradas

entrei no armazém amarelo, modorrento. bruxuleante luz no teto. quase nada de produtos a venda. uma senhora. as rugas mastigavam, despudoradas, o seu rosto: protocolo carimbado pelo tempo.
cerveja preta, pedi.
foi buscar. nunca mais voltava. despejou o líquido em meu copo. pensei reconhecê-la. teimavam seus disfarces. foi atender as moscas, únicas clientes. o espelho da parede oposta ao balcão onde estava me eram úteis. expunham ainda mais a precariedade daquela presença: caroço humano.
lembra-se de mim?, pensei.
chamei-a. virou-se, quase não dobrável.
ela sabe que sou eu?, pensei.
anos atrás eu conheci uma menina, 14 anos.
ainda bebê, deu-me de presente.
não me reconhece?, perguntei.
fez uma expressão de dúvida fitando a rua como se de lá a resposta. passou as mãos sobre a toalha de plástico com flores apagadas limpando farelos de comida sobre a mesa.
nunca mais, filho, ninguém soube de mim, ela disse.


seus órgãos

a doença são seus órgãos
quando chegar o momento quero estar longe dessa corja, cospe
militante político outrora
antes morresse numa biblioteca, diz, não é lugar de
vai-vem, mas de permanência
ou nalgum canto onde vaidades houvessem findado
se não em paz, ao menos pra lá dos predadores
mesmo o banal exige rito
despede-se
não antes de experimentar uma última vez o sabor
censurado pelos filhos, do alto de sua sabedoria, nada reclama
noutro dia pensa vapor é o que serei
aquém da infância a eternidade já faleceu
nós velhos devemos temer os mortos, estes terão
que se mudar para outro lugar quando chegarmos lá
morremos e somos os bebês do falecimento, diz
ai o pai já à beira dos delírios
chamam uma mulher, último pedido
o senhor está muito doente?
ele afaga seu braço você, doce, é meu médico, sorri e
tosse os ossos
o senhor é gentil, não queria que
meu bem, todo cardápio obriga a fome, diz o velho
cofia a barba e tomba
os filhos, cinco diante do leito
coitado, ter entrado os dois pés na loucura antes de
cemitério
é jogado para as marés dentadas da terra
a vida de um homem, mergulhar na respiração dos afogados

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

habitantes
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exumações ordenadas pelo governo. a lembrança é espessa mancha derramada, não na escuridão, nos buracos do esquecimento. o que encontrei depois que me perdi. frioerenta, ela era. como apagar a paisagem? quando a vislumbramos, o branco, como se uma borracha houvesse sido ali. branca, a geada. branco o sol que derrete a geada. brancos os luares, nossas noites. não sei se todas as luzes ou se nenhuma delas. um lugar cheio de garras e dentes: os que por anos estiveram sob os cuidados do sanatório e hoje cavam iglus nos barrancos de terra, servem-lhes de habitação. brancas suas peles, excluindo as cinzas anciãs. dos que se foram, a transparência dos ossos. o céu expunha-se ardido em contraste com o frio de lâminas. a manhã quanto a noite se igualavam em tons marfim diante de estáticas escuras janelas, duas, no máximo, em cada casebre. ruelas de chão batido. chuva, barro que ao secar é mais sangue coagulado. tudo ao fim se alargando para além de um amplo deserto também níveo. de brancos grãos a totalidade dos desertos se compõe. os vivos e os outros, num mesmo.

domingo, 4 de dezembro de 2011

vá de retro!

vá de retro!
o que se ouvia quando pus pés e sentidos nas dependências do prédio fundo: navio soterrado, longo túnel, entrada sem saída, escura garganta de fera sacrificada, geladeira de amaldiçoados. haver uma paciente que mais que linda fosse eterna. não podia, trancaram-na. um outro que estimava-se a si tanto que
vaderetro!
igualmente o que era todo gengivas. um rosto-sangue e
vá de!
meia dúzia de meninas peraltas, buliçosas, pérfidas até que
aaaaaahhhhh!
e os bocós de mola. paladares oblíquos. sopitosa audição. e os que grunhiam. rútilos olhinhozinhos. mandíbulas marrons
vá de!
desígnios da quimicamente remediada solidão. pântano de antiséptico concreto. excrescências triplicavam odores. memória de espectros e seus estertores. lutuosa edificação por onde esquisitos homens, atônitas fêmeas, andrajos seres, agora eu, branco bratáquio visitante. apertava-me de frio e curiosa náusea. meus ímpetos, espantado pesquisador, nas paredes dos quartos, lia-se
aqui o pomar das dores, tubarões e morcegos perfuram tímpanos, os joelhos são retorcidos.
era interpelado pela cruenta galeria e sua memória que incendiavam em minha direção, descortinados. há muito todos os habitantes sem a medicação
vaderetro!
ali estava eu, sem autorização de ofício, sem acompanhamento de enfermeiros ou guardas. no monumental sanatório, todos nós, os insensatos.