sábado, 31 de outubro de 2009

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

especulações sobre o amor simples

dentadas e latidos compõe o
amor quanto sussurros e lambidas
a infidelidade dos odores, axilas
virilhas que, sujas, atraem mais
do que envergonham
igualmente sabonetes e o
creme Nivea após o banho
e as traições da vontade ao
alcance das mãos quanto os
afagos consentidos, recíprocos
a lógica saindo do prumo num
piscar de pálpebras assim como a
responsabilidade do sono das horas
o bom senso compõe o
amor quanto a confusão mental dando
sinais da ignorância mais primária
o antídoto no sangue
a musculatura ora saudável ora fatigada
as violentas ondas da beleza agindo
contra o coral dos dentes se o desprezo sorri
se a cólera aliena, se os abismos têm fome
e também os tons do verde
estourando a primavera nos olhos
ou as visões cuspidas da face da noite amarga
e o que uma orelha ávida por
conselhos é capaz de chupar
um esquecimento absoluto sofrendo com
duplas sertanejas e luas de sarjeta
tudo isso compõe o amor
as reticências entre as línguas
declarações, xingamentos
o chamamento oculto, o corpo mal interpretado
quando a salvação seria o não haver razões
por desespero, por coragem
por azar, perdem alguns, ganham outros
o amor está na cara quanto em
outras paisagens secretas
a falta de conhecimento o
compõe mais que a sabedoria
a nudez, o nariz e a língua, a
canção popular, sempre a canção popular
o poder, o pudor, o suor, o álcool
tudo isso compõe, tudo isso
tudo isso e tantas outras
especulações bem mais simples

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

manual de putz sem pesares

Aquela menina

Aquela menina xucra aquela menina chupa, aquela menina fruta aquela menina bruta, aquela meio biruta aquela vem e te estupra, aquela menina sex aquela menina mexe, aquela menina botox aquela é contra cheques, aquela obra prima aquela menina esquina, aquela menina esquema aquela é um problema, aquela menina hein aquela menina tem, aquela menina intervém aquela não é ninguém, cor da pele, olhos, cabelos, pelos, aquela maria gasolina aquela não tem vagina, aquela menina mima aquela menina imã, aquela menina rima com menina rima com menina, aquela menina bela aquela menina aquela, aquela menina aqui aquela menina rica ri, aquela lá da martinica aquela menina fica fica com qualquer menina com qualquer menina, aquela menina reina aquela menina teima, aquela ali das outras meninas queima as retinas, axilas, tetas, zonas erógenas, púbis, aquela menina ah aquela só quer zoar, aquela menina não dá aquela menina má, aquela é a babá boa aquela boi-bumbá, aquela muita barba aquela baba de raiva, aquela menina sã aquela menina rã, aquela menina é a maçã aquela é uma irmã, aquela menina tam-tam aquela balangandã, aquela menina albina aquela é toda melanina, aquela duas buzinas aquela menina assassina, umbigo, quadril, vagina, ânus, coxas, aquela menina mata aquela desacata, aquela menina gata aquela menina ah tá, aquela menina jura que é uma menina pura, aquela menina urra aquela é meio burra, daquela menina corra daquela menina porra, aquela menina triste aquela menina existe, aquela menina alpiste aquela diz que disse, aquela não se despe com aquela não se avexe não, aquela menina é um canhão aquela é um fodão, nuca, dentes, boca, unhas, braços.

uma epígrafe

Não consigo dormir. Tenho uma mulher atravessada entre minhas pálpebras. Se pudesse, diria a ela que fosse embora; mas tenho uma mulher atravessada em minha garganta. Eduardo Galeano.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

rogério skylab

Vi lá no Omar Godoy (http://oultimoachegar.blogspot.com/) que o Skylab está (esteve, estará?) em Curitiba.

manual de putz sem pesares

Desenho de Mila F
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Retiro

Ela tinha se esgotado. Por isso tentou suicídio. A mãe quis enviá-la para um lugar onde encontrasse paz. Onde pudesse se recuperar. Ter contato com a natureza. Encontrar-se outra vez consigo mesma. Várias lendas rondavam a região. A que mais impressionou a moça era a que conta que lá morava uma velha com mais anos de existência do que qualquer pessoa poderia durar. Divertindo-se com tais estórias, excitada, a mãe enviou a filha para esse lugar considerado especial, onde seu primo de mesma idade vivia mais de três anos já. Quando viram um ao outro, ele se defrontou com segundos intermináveis da mais profunda catatonia da prima. É que o rapaz estava muito diferente. 15, 20 quilos mais magro, careca. A moça quase não acreditou, o menino de cabelos negros que vinham até a cintura, agora... A cor dele não era mais a mesma, a pele um tanto esverdeada. Mesmo assim, para ela, aquele ainda era muito seu primo. Foram criados juntos, grudados. O seu primo de sempre, que agora parecia um fantasma, só que meio fosforescente. Ele viera recebê-la na estação do vilarejo. Ao seu lado estava um garoto bonito e atencioso, porém calado. Os dois vestiam-se com roupas iguais. Foi o garoto quem carregou a bagagem dela. A vista do templo, no alto na montanha, era deslumbrante. O vilarejo, aos seus pés, os telhados das casas, uns juntinhos dos outros, pareciam de brinquedo. Ao redor havia um enorme jardim amarelo, o solo era plano e fértil. Ao longe ela podia divisar uma cadeia de montanhas, como fossem hematomas na pele de alguém. E uma enorme muralha que, vista de perto, certamente era gigantesca, mas de onde ela a mirava não passava de um risco no meio da cartolina verde e azul. Tudo imerso em silêncio, um enorme e ininterrupto silêncio. E se o silêncio costumava doer nela, agora isso era passado. Aquele de agora era algo precioso. Um cavalo pastava perto dali. Quando ele se aproximou a moça logo percebeu seu caminhar leve, chegando a duvidar se não era um unicórnio desses que recolhe as asas quando se depara com estranhos. O animal a inspecionou de uns dois metros de distância. Será que ficou curioso em saber a seu respeito? Como será essa curiosidade dos equinos? Será brabo ele? Quando balança o rabo enquanto pasta será que é por que se distraiu? E sua distração, não será vulnerabilidade? Será que os equinos atacam? Eram tantas as perguntas. As orelhas para frente significavam que ele se mantinha alerta. Como que para ganhar sua confiança, ela tentou demonstrar afeição pelo animal. E agora já fazia duas semanas que estava no templo. Nas manhãs, feixes de luminosidade entravam pela janela de seu aposento, seu corpo correspondia a tal afago fazendo com que a moça espreguiçasse de prazer respirando fundo. Ela acordava e, mesmo com medo de ser descoberta, ia olhar seus e-mails. Sempre fazia isso, aproveitava as primeiras horas da manhã, quando nada tiraria a concentração dos outros meditabundos seres, para se comunicar com a “civilização”. Aqui as horas duram três vezes mais, escrevia para uma amiga. Chove todos os dias, pelo menos durante meia-hora, contava para outra. Naquela manhã ela calçou as sapatilhas encharcadas por causa do orvalho. Unicórnio (esse foi o nome com o qual batizou o cavalo) apareceu. A moça ainda tinha medo dele. E achava que ele também nutrisse dúvidas a seu respeito, receios, mas não medo. Unicórnio, como que lhe dando bom-dia, fazia sempre a mesma coreografia, chegava lentamente, sempre mantendo uma distância de pelo menos dois metros. Intercalava as aproximações com trotes e galopes. Depois relinchava um pouco, e então ia embora. Um dia aconteceu algo inusitado. O animal contornou a horta e veio na direção da moça. Bem humilde, a cabeça baixa, o focinho como que querendo pesquisá-la, o rabo espantando moscas. De perto ela pode tocar sua pelagem branca como marfim. Ficou ali agradando seu pescoço torneado, enquanto ele fazia a digestão do capim no estômago. E assim selaram a amizade. Havia dias em que a lentidão e Unicórnio eram os únicos seres que passavam por perto de seus olhos. O primo e os outros viviam sumidos, fechados, imersos em seus exercícios de meditação. Só o garoto bonito da estação que não. Ele a observava de longe com frequência. Sempre nas horas mais impróprias. Quando ela ia se banhar no rio. Ou quando se agachava para urinar atrás de uma árvore. A moça chamou o garoto para perto diversas vezes, mas ele, reticente, rapidamente escapulia. No começo tanto a lentidão quanto o silêncio não eram suficientes para convencê-la de suas benesses. Era uma experiência, um trabalho dificílimo o desapego. Se ela estivesse levando à sério mesmo, não estaria passando tantos e-mails, fazendo pesquisas longas na internet feito uma viciada, pensava. Silêncio e lentidão. Silêncio e lentidão, a dupla dinâmica, o Batman e Robin dos sábios. A moça não sabia se dentro dela estavam agindo exatamente como apaziguadores tanto um quanto outro. Numa ocasião teve ganas de maltratar Unicórnio. Pegou um bambu do chão e acertou o mesmo pescoço já habituado a seus afagos com força. O bicho não entendeu, a moça então levantou os braços e foi para cima dele novamente. Até que, assustado, Unicórnio fugiu. Era aquele o primeiro passo, tornar-se bruta, deixar que a brutalidade viesse à tona para, em seguida, ser apaziguada? Não estava bem certa quanto estava arrependida de ter machucado seu único amigo. Também não tinha ido até lá para isso. Só queria visitar o primo, mais nada. Mas agora estava quebrando a cabeça com mil pensamentos, logo quando deveria esvaziar a cabeça, zerar a cabeça, deixá-la, seria bem bom, oca. Seria uma falta de respeito, inclusive, ignorar tal evidência, e até mesmo falta de sensibilidade, mas o fato é que quando você está em um lugar tão profundamente místico, é impossível ignorar o fato de que você está em um lugar tão profundamente místico, foi o que escreveu em seu último e-mail para mãe. Depois disso não deu mais notícias. Excetuando o garoto que a rondava, os “caras” com quem ela convivia estavam “na deles”. E eles não eram um mistério tão sinistro assim. Por mais que a cada dia entendesse mais profundamente que o seu primo de três anos atrás já não era a mesma pessoa que esse magricela de agora, que sequer demonstrava qualquer afeto por ela. A moça perguntava a si como encontrar a estradinha de terra vermelha que a levaria onde tinha de ir. Meditação, horas e horas de meditação, meditação até não existir mais a noção de tempo. Essa era a resposta. Então, nas semanas que seguiram ela se dedicou com afinco aos exercícios da contemplação. Passava horas a mirar o céu. E o céu lhe trazia a sensação de estar no interior de um cinema 180 graus, como seu corpo fosse parte da tela, sendo engolido. Um dia a moça passou a notar que a maioria das dores e angústias que sentia não eram verdadeiras. Não passavam de fagulhas de atos vergonhosos pelos quais ela até então não havia se responsabilizado e, a despeito de tais atos, insistira em afirmar que realmente não se envergonhava. Passou a pensar que talvez suas mazelas fossem no fundo mazelinhas, e que qualquer pessoa, por mais ingênua e inofensiva, não teria para com ela a mínima piedade. Nem mesmo Unicórnio, que nunca mais tinha dado as caras por ali. No entanto, a escuridão sob a qual vivera durante os últimos 30 anos, não apenas lhe exigiam atenção, porém, mais do que isso, queriam a todo custo permanecer insuportáveis. Ela acreditava que seu diálogo com as trevas havia resultado em frutos interessantes, embora não menos amargos. Achava que a tinham ajudado crescer como ser humano. Por isso, a moça não sabia se o que estava vivendo naquele lugar de terras vastas de fato estava acontecendo, ou se era obra de sua auto-sugestão. Como da vez passada, um ano e meio atrás, em que entrara em processo de surto esquizofrênico no meio do shopping, quando era ameaçada por vozes malignas. Será mesmo que estava num templo, num retiro? Ou apenas fechada no quarto minúsculo de seu apartamento no centro da cidade barulhenta? Ela não sabia o que pensar, e mesmo assim pensava: Para que tudo isso, para ficar como meu primo? Mas ele já não é meu primo. Agora estava se perguntado quem era ele e quem era ela afinal? E também quem era aquele que chamava de Unicórnio? E por que um Unicórnio e não outro ser qualquer? Que simbologias encerrava um equino com asas? E se aquele era mesmo um unicórnio, não devia haver um chifre em sua fronte? Não, ela não devia fazer tantas perguntas, não ali no templo. Devia apenas aceitar sua condição e tentar se aprimorar como ser humano. Mas qual ser humano? Ela mesma, ora bolas, a garota esgotada do trabalho dividido com a faculdade. A louca. Era ela uma louca? Isso não sabia. Sabia apenas que era alguém sem amor, sem preocupações legítimas. Mas só até o momento em que a mãe viera salvá-la, enviando a filha para tal retiro. Mas não era possível, pois uma mãe como a sua não tinha capacidade para salvar ninguém. Ao contrário, não havia ambiente em que a megera entrasse que imediatamente as pessoas não se sentissem sufocadas. Aquilo que tinha vivido até então, antes de vir para o templo, aquilo sim fora uma vida de renuncias, não essa de agora. Todavia é preciso aceitar o passado, engendrá-lo sem dor. Com seus botões pensava: A vida é curta demais para... Para quê? Não fazia ideia. Depois de algum tempo, quando já não contava as horas nem os dias, seu amigo de quatro patas voltou a procurá-la. A moça reparou que a pelagem dele havia mudado de cor. Escurecera. Unicórnio parou de pastar de repente e estudou as condições que o cercavam. Não a ignorava mais. Seus olhos estavam sem susto e pareciam botões de girassóis. Coisas da natureza. Manso, veio lamber sua mão. Ela pediu desculpas por tê-lo maltratado. Ele bufou na palma da mão dela. Então se afastou galopando para longe, os cascos riscando o silêncio dos séculos. Quando a moça se virou viu que, encostado numa árvore, o garoto bonito assistia a cena. Desde o começo daquela manhã a estava sondando. Ela já não suportava a maneira como ele a olhava, sempre terno, anestesiado, a cabeça levemente caída para o lado esquerdo como quem dissesse “ah, minha amiga”, uma das sobrancelhas erguidas e a testa franzida. Era chegada a hora de voltar para casa. Sentia falta de sentir raiva, violência. Sentia falta de sua insanidade, e isso não a envergonhava. Ela era uma mulher que estando com uma dor de dente pavorosa sentia prazer em tal dor. Ela era assim, o que podia fazer? Então por que ainda estava ali? Se nem seu parente mais aquele moço era. Sequer trocaram duas palavras durante a temporada toda. Fugia de quem, afinal? Buscava o quê? Todo aquele tempo sem fumar. Sem comer carne. Naquele dia mesmo começaria a se re-entregar a sociedade. Antes não tivera coragem de sair do templo. Mas agora era o momento. Então foi até o vilarejo a procura de cigarros e guloseimas. Talvez bebesse um pouco de vinho. Não era preciso ter acompanhado o calendário, pela variedade de cores sabia, a primavera se já havia se instalado. Andou entre as pessoas da vila arcaica como estivesse no meio de alguma miragem. Olhou para cima e lá estava o templo, um lugar raro no mundo. A moça pensou: Às vezes se tem o privilégio de estar em certos oásis, viver neles, e não devemos viver nos perguntando o significado disso, estar aqui é o significado em si. Andou até cansar. Então entrou num armazém para pedir um pouco de água. O garoto que a espreitava regularmente estava ali. Oi. Oi, você trabalha aqui? Trabalho. Por que você vive me espionando? Porque eu gosto de você. E por que não veio nunca falar comigo? Mas eu já estive com você uma vez. Quando? No dia em que você chegou, na estação, eu carreguei sua mala. É verdade, mas depois ficou me espionando e jamais deu um tchau sequer. É que é proibido falar com as pessoas nas dependências do templo, por isso eu me aproximava de você só em forma de cavalo. O quê, do que você está falando? Eu sou Unicórnio. Você é louco?, não estou entendendo. A lenda. Qual lenda? A da velha com mais anos de existência do que qualquer pessoa poderia durar, a velha que pode se transformar em jovens belos, tanto do sexo masculino quanto do feminino, ela também pode se transformar em animais se quiser. É só uma lenda idiota, disse a moça. Não é não, falou o jovem. A moça silenciou, afastou-se daquele sujeito esquisito e foi procurar algo nas prateleiras do armazém. Quando voltou a olhar para ele, notou que sua coluna tinha dobrado e os cabelos virado palha branca. O moço agora, para seu espanto, era uma velha. A pele do rosto estragada pelo sol que durante a vida toda lhe perseguiu nas colheitas. Suas mãos cheias de manchas e enrugadas. A velha não ria, os olhos abissais, brutos. A moça sentiu um frio a lhe percorrer o sangue, dos pés a cabeça. Ficou com medo. Quis sair correndo. Mas alguma força inexplicável a impediu. A moça observou que a camponesa tremia a mandíbula e que não restavam muitos dentes em sua boca, mesmo assim ouviu claramente a voz infantil que veio de sua fala anciã: Que bom que você está entre nós, querida. Que bom que você está entre nós, querida, a frase se repetiu como que num eco próximo atingindo a moça pelas costas. Quando ela se virou, seu primo também estava ali.

manual de putz sem pesares

René Magritte
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Três sonhos com a mesma menina
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1
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Se aquele era o centro sujo da cidade, por que a menina calçava meias apenas? Se estava tão constipada nessa manhã de julho, por que vestia somente um pano leve e mais nada? E, afinal de contas, desde quando ela usava camisolas? Ela que sempre tinha sido de dormir só de calcinha ou, em dias de muito frio, com um moletom velho cobrindo o corpo. As pedras portuguesas da calçada pareciam pulsar feito sapos na frente da loja, de onde surgia um som encaixotado. Foi ali, só pode ter sido. Ela olhou para caixa de onde vinha o som, a voz de um radialista com microfone na mão. A voz entoava cantos fúnebres de “compre!, compre agora!, promoção!”. A menina sentia frio. Por causa disso entrou na loja achando que entrava na voz de radialista. Frio, frio e mais frio. A menina buscava ao menos um cachecol que pudesse proteger seu pescoço de cantora. Dentro da loja, andou pelas seções. Experimentou agasalhos, pulôveres. Perguntava sempre o preço de cada peça. Já havia esquecido a existência da voz de radialista quando escutou uma sequência de tossidas. Só então olhou para a entrada da loja. A voz de radialista com microfone na mão havia se engasgado com o caroço da palavra “mercadoria”. A voz fazia “harg, urgh, huhuguer”. As vendedoras, vindas da ala de lingerie, acudiram a voz. Deram socos com o lado das mãos nas costas do engasgado. Quando finalmente conseguiram salvar a voz, feito ela própria fosse o fatídico caroço a menina foi cuspida para fora da loja. Mas de caroço ela não tinha nada, na verdade foi assim: Ocorreu que as vendedoras acharam demasiado estranho o fato daquela menina estar apenas de meias e camisola zanzando pelas dependências da loja, então a expulsaram quando, após patética perseguição, finalmente conseguiram como que capturar a rebelde. Já cuspida, ela se viu novamente na calçada, onde agora só havia silêncio e pessoas passando olhando para os próprios pés, nem sinal de voz de radialista com microfone na mão. Foi aí que a menina achou que deveria também olhar para os seus pés, pois suspeitou que algo novo havia com eles. Correto, agora estava descalça. Sem meias, pés nus pisando em sapos. Mas como?, perguntou a si mesma. Então lembrou. E, como que em flash back, reconstituiu a cena. A voz de radialista com microfone na mão, no momento em que a menina tinha entrado no provador de roupas para se afugentar das atendentes da loja, a voz de radialista veio atrás dela. Os dois, a menina e a voz, dividiram por alguns segundos o mesmo provador. Por pouquíssimo tempo, é verdade, mas o suficiente para a voz de radialista arrancar com os dentes as meias da menina e lamber seus pés. Para não ser pega em flagrante, rapidamente a voz de radialista correu para seu posto lá na frente da loja. Acontece que, gulosa, acabou se engasgando com o chulé rosáceo da menina. Não era daquele dia que o tola voz consumia vorazmente meias de meninas de vinte e poucos anos que andavam semi-nuas pelo centro da cidade em plena luz do dia. Quando o flash back acabou, a menina se pegou atônita, por um longo tempo sem saber o que fazer, para onde ir. Até que decidiu que iria recuperar suas meias. Por mais babadas que elas estivessem. Por mais estúpidas que fossem as atendentes da loja. Por mais que ela tivesse que novamente entrar naquela voz clichê de radialista com microfone na mão. Ela iria recuperar suas meias. E também devolveria o cachecol de flanela que tinha roubado e trazia pendurado no pescoço. Era um cachecol deveras confortável, mesmo assim o devolveria, pois ladra a menina jamais tinha sido. Essa decisão não foi tomada de uma hora para outra, levou pelo menos a tarde toda daquela segunda-feira. Quando finalmente, com seus pés nus, resolveu dar o primeiro passo. Mas daí já havia anoitecido e a loja fechado. E continuava chovendo.
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2
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Cinco graus. Saio correndo pelas ruas. Não há viva alma na cidade. Os postes de luz derreteram. É escura a neblina, e fede. Chego numa praça. Três da madrugada. E o meu desassossego é uma menina com um vestido de lantejoulas prateadas, com nada por baixo, nem casaco que lhe proteja. Seus olhos estão borrados. Ela acabou de fugir de um teatro em chamas. A menina está sendo mastigada por um coração glamuroso e sonoro. Um coração cheio de dentes afiados que a cada mordida a anestesia mais. E é desesperador, porque essas mordidas vão deixando ela bonita. Ela se sente poderosa. Ela está tão feliz. Ela se vira para os flashs dos fotógrafos e diz “eu tenho uma boca dentro de mim”. Depois disso, cada vez que tenta enunciar um verso de alguma canção sai fogo cuspido de sua boca, de suas narinas. Esse movimento provoca uma dor lancinante em seu estômago. Eu me aproximo e tomo um susto: “Meu deus, conheço essa menina”. Chamo seu nome. Falo quem sou e de onde. Não há o que faça ela me reconhecer. Ela continua dizendo “eu tenho uma boca dentro de mim, eu tenho uma boca dentro de mim”. Os flashs das câmeras parecem atingi-la como uma saraivada de flechas do mais afiado e venenoso metal. A menina sangra. Só eu posso ver seu sangue invisível. Uma equipe de bombeiros se aproxima, pois as árvores da praça estão com as copas ardendo, amarelas e vermelhas. O dia começa a raiar. Não há transeuntes. Não há automóveis. De repente, ao som de uma frase dita por mim, bombeiros e fotógrafos desaparecem. E, como que saída de um transe, a menina se apazigua. Em seguida se entristece. Por que estou triste, o que aconteceu, onde estão os expectadores? O dia já está claro, posso ver quanto ela se machucou. Num movimento preciso a embrulho em minha japona. Ela me olha sem entender. Então, experimenta meu rosto com as mãos. Diz meu nome. Se sou eu mesmo, quer saber. Digo que sim. Depois ela fala docemente: “Você não é meu pai, você não é minha mãe, você não é nada meu e está aqui... você é meu outro coração, sem som, sem anestesia.”
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3
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Com uma voz de barriga, ventre. Não uma voz de boca e cordas vocais. Com essa outra voz, porosa, a menina pede “me chupa”. O homem se abaixa. Ela abre as pernas manchadas com hematomas azul-rosáceos. Loiro é o homem. E sem barba. O seu é um rosto liso feito um bloco de gelo que lentamente derretesse. Ele afasta a calcinha da menina para o lado. Os pentelhos surgem macios. A boca do homem vence o tufo e sua língua encosta na parte úmida, na carne borbulhante. A língua do homem é um punhado de neve que ao sutil toque na frigideira evapora. A menina geme baixo. Um sussurro grave e falhado vem de sua barriga ao mesmo tempo em que a menina pede “me bate”. O homem, sons misturados em suas orelhas, pensa ter ouvido errado. Então pergunta “quê?” E a menina “me machuca”. E o homem, um tanto sem crer, diz “isso eu não faço”. “Faz sim, estou pagando”. O homem, que não se lembra de ter recebido dinheiro algum da menina, apenas reage com a frase “eu não gosto de bater nas pessoas”. “Se você não gosta, quem foi que imprimiu esses hematomas nas minhas pernas?” O homem sabe que não foi ele. Essa é a primeira vez que se encontra com a menina. E ele jamais a machucaria. Ele está confuso. Como que para elucidá-lo a menina começa a narrar a minúcia com que o homem espancou anteriormente suas coxas. A cada barbaridade explicitada com ênfase e gozo o homem só sabe dizer “como!?” São comos!? de susto, dúvida, descrença. O homem não consegue se controlar. É impossível para ele não perguntar “como!?” cada vez que a menina precisa avançar no relato da violência que sofrera a gosta. E assim os dois passam juntos de sexta à segunda-feira. É um tormento para ele. E um deleite para ela. Ao final da manhã de segunda, o homem de tanto e como saber, entra em colapso, fica catatônico, rijo feito um bezerro de frigorífico. Então, sem mais o que sugar, a menina, entediada, veste-se e vai embora. Entra no elevador. Nele está um homem loiro, sem barba, pele lisa feito um bloco de gelo que aos poucos derretesse. “Está descendo?”, pergunta a menina. “Subindo”, diz ele. Quando chegam ao andar de destino, o homem desembarca. A menina desce em seguida. Ele não repara. Enfia a chave na porta e avança no apartamento. A menina atrás. O homem não repara. Despe-se no quarto. Vai para o banheiro e entra no banho. Demora-se, gasta bem o sabonete de ervas. Quando, nu, volta ao quarto, sobre a cama vê a menina vestindo uma calcinha apenas. O homem não pode deixar de notar a quantidade de hematomas nas coxas da menina. As manchas parecem a todo instante, acusatórias, gritar “foi você! foi você!” Inibido, o homem cogita tomar alguma providência. Mas uma voz poroso, vinda da barriga, do ventre da menina penetra em seu sangue feito curare.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

viva o mestre edival perrini

Clique na imagem para vê-la grande

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

especulações sobre o amor simples

com algumas mulheres não
se toma cuidado ao respirar a
nicotina da ferida dos
pulmões — morre-se
por elas, não nelas
então, morto já, bebe-se o
mertiolate de sua saliva
o antídoto das secreções
e se ressuscitamos
é que em algum lugar
havemos de nos ter tornado eternos

(...)

quando já não
há escolhas
amamos como
houvesse anzóis a
nos fisgar os poros
um a um, um a um

manual de putz sem pesares

O avô

então o avô sem instrução mas
86 anos de existência
o avô insurgido (com quais forças que
já não há) do fundo de seus silêncios
contumaz (como, se já gagá?)
o avô deixa escapulir uma
farinha de voz: “estudem
estudem, piazada, quem não
estuda acaba indo carpir ruas

sábado, 24 de outubro de 2009

notas para um livro bonito

o que sei?
apenas que a vida parece ser distraída
feito a mulher que perde o
sutiã na praia entre ondas
se bem que por imagens como essa
a vida é legal, não é mesmo?
o problema é que a solidão arma o bote
bom, de qualquer maneira
enquanto a gente tem
unhas e dentes, a gente tem ferrão
e enquanto a gente tem ferrão, está ok
a solidão arma o bote
a vida é distraída, mas arranha
só não esperava que o veneno
fosse tão (como direi?) venenoso
e começasse (num poeta) pelos olhos

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

especulações sobre o amor simples

posso querer esquecer
mas se esquece por aí mais facilmente
guarda-chuvas que amores
e se esquece infinitamente mais
canetas que guarda-chuvas
mas eu não, eu sou o melhor em
encontrar canetas para
continuar escrevendo
e escrever é lembrar do futuro

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

notas para um livro bonito

a literatura, embora não tenha me
trazido dinheiro ao bolso
deu-me durante a vida
algo que posso chamar de
angustiada felicidade
e calos na mão
na angustia só há perguntas
sem respostas
na felicidade perguntas não há
quem dirá o outro lado da
mesma moeda
então, quando um sofrimento de
difícil explicação surge
e com ele perturbações sem limites
resolvo deixar de escrever
pois escrever é o principal modo de
não se saber absolutamente nada
sobre a existência humana
esperar, esperar
pacientemente esperar, isso é
o que faz os sábios
escrever, que é a mais íntima e pessoal pesquisa
escrever nada responde
nisso vai o paradoxo
por mais que escave e
vasculhe o que não compreendo
escrevendo, pelo menos comigo é
assim, machuco bem mais o punho

(...)

não uso a literatura
como um confessionário
se em meus textos
abro algo da minha intimidade
é porque, é óbvio assim
não estou salvo
então faço uma pausa ao
escrever isso e
coloco as mãos no rosto
lambo a pele grossa da
palma e
de certo modo
é uma ferida o que lambo
imolo a pele que descreve
aquilo que já não sou mais
e escrevo
porque estamos
acostumados a chorar
pelos olhos, mas as
mãos também choram

jorge a fera barbosa está de volta

basta clicar sobre o cartaz para vê-lo em tamanho aumentado

manual de putz sem pesares

Entranhe

Não quero ludibriar ninguém. Se você veio aqui em busca de estórias, aviso PÉM PÉM PÉM PÉM PÉM (isso é a incontrolável, e em caixa alta, onomatopéia de um alarme), não passe dessa linha. Agora, caso você esteja lendo essa frase aqui, é porque obviamente você passou daquela linha ali. Sendo assim, para você devo dar alguma esperança, embora você não me de nenhuma. Mas eu sou bonzinho. Então vai que no embalo das minhas confusões mentais, se você cavar direitinho, de repente acaba encontrando farelos de algum folhetim. Sei lá, mas talvez essa alguma bobagem toda, de algum modo, encerre, de algum modo, alguma estória. De algum modo, é o que estou dizendo. É o que estou dizendo repetidas vezes. Mas quem sabe, quem sabe, quem sabe nada, isso não é uma estória. Repetindo: isso não é uma estória. Se bem que. Ah, que se dane. Pense o que quiser. Me xingue. Faz bem xingar. Digo, faz bem me xingar. Faz bem chiar. Fica chiando aí enquanto eu vou adiante. Você. Bem, se você é a senhorita Aporia, eu sou o senhorito Aporia, e assim temos duas personagens. Então, talvez, quem sabe, isso seja uma estória. Quem sabe. Ah, saco sacola saquinho. Quer saber? Fui. Agora já cheguei. Pronto, pronto, pronto. Eis que surge um conflito. A Solidão. A sólida Solidão. Senão, vejamos: Solidão, velha morada, como vai você? Também vou assim-assim. Digo, assim, bem tristonho, quase tristíssimo, fudido e mal pago, sem perspectivas de futuro, feito um burro empacado, sobrevivendo da sopa rala do meu pranto, me escondendo nos antros do centro da cidade. Pois é, tô que tô que tô quieto, velha amiga, mas não quero me lamentar. É, não quero. Esqueça tudo o que eu disse, é que faltou criatividade. Aí apelei para um jogo fácil, misturei a letra de um blue bem amargo enquanto falava com você, amarga magra Solidão. Mas, apesar de tudo, sabe, devo agradecer. Então, obrigado. Obrigado mesmo, viu, querida. Obrigado por me abrigar, ó mansão Solidão. Agora que já cheguei ao final das contas e vi que não me resta um trocado sequer. Agora que optei por dar um basta em tudo com essa carta, agora que... uau, que lugar frio que é você, solidão, estou batendo os dentes. Agora que estou trincando os ossos. Assim, Solidãozinha, recomeço minha pequena filosofia para superação de relacionamento mal fadado – amor e amizade. Amor e amizade, não amor ou amizade. Amor e amizade. E. E. Amor e amizade. Simplesmente porque amor é amizade. Veja, esse lugar, digo, você, digo, a Solidão, quero dizer, enfim: A Solidão não é um dos melhores lugares para se estar. Todavia, a própria Solidão, digo, você, de repente, vai argumentar que estou, em parte, digo, completamente equivocado. A solidão vai dizer que ela (Solidão) pode muito bem ser útil. E é verdade. Digo, pode ser útil mesmo, mas poxa, puxa vida, como cansa. Maltrata a gente. Mas as coisas são assim mesmo, enquanto se é fútil a solidão pode ser útil. Digo, enquanto se é fútil a solidão pode ser útil (auto-conhecimento, aquela coisa toda), é o que redigo, digo, é o que redisse. Vou dar um exemplo, veja, quando você é um Rainer Maria Rilk (e aqui temos mais um personagem para possível história impossível), que é o extremo extremo, multiplicado por 200.070.000 vezes, o oposto da futilidade. Se bem que quando você, por exemplo (é só um “por exemplo”), é um Rainer Maria Rilk, a Solidão passa a ser uma viagem tão sem fim, uma viagem para um ligar no fim dos mundos, e sem volta, que não há Piratas do Caribe 4 capaz de te resgatar. E o que é inacreditável (sempre lembrando que o inacreditável é real), mas o que é inacreditável mesmo é que você passa a gostar de depender tanto da Solidão. Ela passa a ser esse fim dos mundos sem volta, essa viagem sem fins dentro de você. Porque é isso, né, o lugar está dentro de você. É como alguém que caísse sem caiaque num abismo e o abismo é ele próprio (digo, ele próprio “alguém). Ou ainda, tipo, esse alguém, quando ele vai dar uma mordida, nhec (isso é o onomatopéia da mordida), nhec, nhec, nhac, numa carne suculenta. Ele morde a carne e logo se dá conta de que ele mesmo (alguém), ele mesmo é a carne suculenta. É, benzinho, tudo isso são as tramóias da Solidão. Eu sei, eu sei, você vai argumentar: É, é, é, é, claro que é. Claro? Se você me disser um “claro”, serei obrigado a evitar esse “claro”, dizendo assim: Claro não, cidadão, pode ser, pode ser que seja. Digo, pode ser que tudo, tudo todos, seja, sejam, Solidão, Solidões. Mas você vai comprar essa? Eu não. Eu quero a infiltração. Eu quero os amores siameses. Eu quero a Evolução das espécies. E mais. Eu quero A expressão das emoções no homem e nos animais. Eu quero as utopias. Eu quero a fotossíntese. Eu quero a osmose. Eu quero acordar no dia seguinte e ver que você ainda está lá. Eu quero, eu quero, eu quero. Pareço mais é um bebê chorão. Mas eu sou um bebê chorão, pois sim. E como tal eu quero colo. Colinho, porque já não aguento mais escrever. Eu que não sou fútil (e muito menos Rainer Maria Rilk), não aguento mais escrever como quem não aguenta mais escrever. Por motivos óbvios (ignoremos Cristóteles, o filósofo grego), não estou em condições de propor filosofa nenhuma, mesmo que seja uma PEQUENA filosofia, como a que na tentativa burra, vã, estúpida, propús, como que querendo posar de Tristóteles (o filósofo, é, grego). Como já (bem feito, idiota) quebrei a cara, vou me restringir a entender isso que escrevo (embora não aguento mais escrever), vou me resumir a meus paradigmas. Digo, vou revelar que isso aqui não passa do rascunho de um bilhete apressado. E não tal qual um bilhete apressado (por mais que ainda no rascunho), é um bilhete apressado que contém muitas páginas (e nenhum bilhete que ainda é bilhete contém muitas páginas, você sabe, ora). Ou seja, esse bilhete apressado galga a posição de carta, digo, na hierarquia da comunicação. Como esse meu bilhete contém, em resumo (resumo prolixo, é verdade), muitas páginas, então esse bilhete, querida (não acredito que te chamei de querida), esse bilhete é uma carta. Pronto eu disse. Maldição, isso é uma carta. Uma droga, ridícula carta. Não! Sim! É uma ridícula carta e, pior, de amor (falei a palavra amor entre dentes, para ninguém não escutar). Muito bem, muito bem, muito bem, então isso é uma carta. Talvez você, a parte, se não interessada, exatamente endereça, talvez você julgue as linha que seguem como sendo algo semelhante aquelas porcarias que podem ser lidas em manuais de auto-ajuda, pois sim. E talvez, querida (de novo! burrico), você tenha razão. O desarrazoado, o desesperado aqui, afinal de contas, sou eu, mas quanto a isso, que se dane, não me importo. Se bem que talvez me importe, caso contrário não escreveria nada a respeito. Mas se me importo, importo-me muito pouco. Por mim tudo bem essa importação toda. Que se dane, vamos chamar essa carta de carta de auto-ajuda, por mim ok. Porque se não eu, quem fará, faria por mim? Quem? Quem? Quem? Ela, a Solidão. É ela quem quer dar logo início (mas aqui é o início?) a isso que se pretende tão humano (embora você escreva que nem um Eti, se é que há escritores entre os Ets, se bem que, de repente, todos os escritores, pelo fato de serem escritores, são ETs). Mas eu falava sobre ser humano. Ser humano, hum, com suas falhas e deficiências implicadas. É o que pretendo, pretendo ser ainda igualmente simples e compreensível. Eu sei, eu sei, sobre ser compreensível, sobre isso você duvida. Mas não estranhe, entranhe, ANHE, ANHE, ANHE, AIEEE (isso é a incontrolável, e em caixa alta, onomatopéia de um alarme).

terça-feira, 20 de outubro de 2009

uma epígrafe

eu estou aqui e eu não tenho nada a dizer e o estou dizendo e isto é poesia John Cage

manual de putz sem pesares

Ok

Certo, vamos lá, não será preciso espelhos para eu ver que agora não sou mais alguém a quem devo pedir desculpas. Ou me culpar, seja lá do que for. Apenas quero seguir me surpreendendo, de algum modo. Vejamos, praticamente não tenho e-mails para enviar, telefonemas para atender. Tenho de ir ao banco para as contas de água, luz, gás, etc. Faço isso antes do almoço. Então, almoço pensando numa maneira, não de enriquecer, mas de me manter tranquilo. Certo. Tranquilo. Certo. Quem sou eu? Essa não sou capaz de responder. Tenho esse corpo que me presenteia com pequenas dores diárias. É verdade que já não posso estufar o peito e dizer: sou ator. Mas, veja bem, tenho aí uns papéis a interpretar. É evidente que também não sou escritor, já que nunca ganhei prêmio nenhum, nem grandes críticas, nem nada dessas coisas que definem os escritores. Mas ainda há uma boa dúzia de epopéias comezinhas sugerindo que eu as conte, ora bolas. De todo modo, continuo não tendo complexos teoremas para entender, xerox para rasgar, entulhos para colecionar, nem mistérios a esconder da polícia. Hum. No cd-player escuto música caipira ou blues que, afinal, são a mesma coisa, pois não. Lá fora, buzinas, buzinas e mais buzinas para que eu não esqueça onde estou. E onde estou? Ah, esquece. Posso lavar a louça agora, ou mais tarde. Ainda: Depois da meia-noite, alguma hemorragia (talvez, por que não?) para estancar. E, depois, me dedicar a compreender de que maneira amanhã me reinventarei. Ou nem isso. Apenas dentes a escovar. E olha que escovar os dentes é uma coisa que gosto de fazer. Minha escova não é das mais macias, mas já me acostumei com ela. Aposto que a mulher que vejo agora nessa tarde, por quem nutro certa ternura, com esses dois dentinhos suspensos e o resto da boca um vão, aposto mesmo que ela nem pensa mais em escovar os dentes. A banguela quererá me vender balas de goma? Não como, não como, não como. Eu sei que balas de goma dão cárie, por isso minhas moedas a senhorinha não terá, assim como não terei suas gomas. Certo? Certo. E o que mais? Vejamos, vejamos, vejamos. Eu sou pobre? Não. Também não sou rico. Sou classe média remediado. Assim fica bom. Sabe, acho que os da classe média são os que mais comem balas de goma. Né? Acho que os da classe média são os que mais gastam dinheiro comprando escova e pasta com flúor e cálcio. Possivelmente. Acho que essa é a classe da qual mais os filhos usam aparelhos dentários. Estamos rindo de quê, por quê, para quê, digo, quem? Acho que é a que mais tem todos os dentes no lugar. Ok. E eu tenho os dentes no lugar. Então, correto, sou mesmo classe média. Todos. Todos? Acho que construí mal a frase. Perdi o fluxo. Dei uma rasteira, hehe, no leitorzinho. Só queria dizer que tenho todos os dentes no lugar, só isso. Tá, é mentira. Falta um dente, o do siso, o inferior esquerdo para quem vê de dentro. Quem vê de dentro? Os outros (dentes) (do siso) não arranquei, porque esse inferior doeu demais. Fiquei traumatizado, embora a minha de hoje seja uma boa dentista. Fora os dentes, dentro da minha boca está também, óbvio, a língua. E a língua tem várias papilas gustativas, certo? Certo. Com os dentes, a língua e as papilas gustativas, posso comer um monte de coisas gostosas, pois não. Posso chupar balas se eu quiser. Mas evito balas, já se sabe. Assim como tenho evitado carne vermelha (isso ninguém ainda sabia). É. Abri mão da carne vermelha. É. Mas meus fantasmas vivem por aqui, eles me assaltam de vez em quando, eles que já se asfaltaram na minha tez poluída de trevas, eles que não precisam de carne vermelha, eles ainda não abriram mão da minha (digo, carne). O que que é que fantasmas querem com carne? Eles poderiam sobreviver muito bem só do sumo dos meus sentimentos, é ou não é? É. Mas o que vou fazer se eles são viciados nos meus, digo, sangue e suor.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

notas para um livro bonito

o que é perfeito
quanto a condição
natural das frutas
está no fato de que
para elas não existe
preservação
a delícia dos sabores
diferencia-se da podridão
por bem pouco

antologia dylan

domingo, 18 de outubro de 2009

uma epígrafe

Acho que ninguém tem necessidade de pornografia. Precisamos de amor verdadeiro. E precisamos também de um pouco de espírito e religião e felicidade. Mas tudo isso exige tempo e silêncio e reflexão. Por isso nos perdemos. Porque vamos depressa demais, com muito ruído ao redor. O ruído entra na gente e agimos compulsivamente, sem refletir.
Pedro Juan Gutiérrez

viva o mestre marcelo montenegro

Marcelo Montenegro, com um fragmento de Curitiba ao fundo
. .
BUQUÊ DE PRESSÁGIOS
.
De tudo, talvez, permaneça
o que significa. O que
não interessa. De tudo,
quem sabe, fique aquilo
que passa. Um gerânio
de aflição. Um gosto
de obturação na boca.
Você de cabelo molhado
saindo do banho.
Uma piada. Um provérbio.
Um buquê de presságios.
Sons de gotas na torneira da pia.
Tranqueiras líricas
na velha caixa de sapato.
De tudo, talvez, restem
bêbadas anotações
no guardanapo.
E aquela música linda
que nunca toca no rádio.
.
*Adoro esse poema do bróder Marcelo Montenegro,
publicado em seu livro Orfanato Portátil
(Atrito Art Editorial, 2003).
Pra mim, são versos já clássicos.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

especulações sobre o amor simples

então ela
gozou no
meu coração
e eu achei que
o mundo era
bom

especulações sobre o amor simples

conduzimos os instintos
de modo a falarem baixo
acarinhamos um o outro
com sopros, não com dentes
nossos poros, gotículas de ternura
e somos líquidos outra vez
exalamos vapor, penetramo-nos
como nuvens que se costurassem

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

notas para um livro bonito

não me reconheço a minha
imagem e semelhança
sobre moralidade, talvez eu seja
mesmo o rebaixado
já que não tenho a honra dos
ilustríssimos Senadores
devo mesmo ser um estúpido, um
paria com cartão de crédito, pois não
sei que projetar futuros inalcançáveis é
especialidade de zumbis
vou me enterrar no presente no presente
no presente para não
carregar o título de
defunto antes da hora
tá certo, talvez eu seja mesmo um
filho da mãe iludido
então que se foda, prefiro queimar
torrar, derreter as
retinas em visões poéticas
repletas de não escolhas
mas não sou nenhuma droga de ilusionista
embora possa enxergar paredes e
as outras paredes por trás dessas paredes
— que são espelhos
o homem só se excede se entrado em si
zerar-se, como dizem no teatro
zerar-se não é se desprezar
deprezar-se é quando
ninguém não ouve ninguém
zerar-se é o oposto
zerar-se é quando sim
o sim não é se reconhecer
mais do que se recorrer

carlos minc

terça-feira, 13 de outubro de 2009

canções que afagam condenados

Sou eu executando Tristíssimo (canção de minha autoria) para a filmadora de Guto Presidente, em fevereiro de 2008.

especulações sobre o amor simples

o sexo é uma
coisa muito boa
muito muito
muito boa mesmo
e com lirismo, digo
com flores, vinhos
motel, cineminha
fica ainda melhor
claro, o lirismo é uma
coisa muito boa
muito muito
muito boa mesmo
mas às vezes é
preciso tratar o
sexo feito um
boiadeiro dos
mais rudimentares

notas para um livro bonito

súbito me chega à mente
essa imagem: o baiacu pescado
ninguém quer comer um baiacu, o peixe
mais nojento dos mares
penso nele morrendo fora da água
inchando e, depois de quase explodir em
sua febre de baiacu, o alívio
graças a seu aspecto repulsivo e
aos venenos que esconde, foi devolvido ao
lugar de onde o tinham exilado
veja, não é só a beleza que salva
ao contrário, a beleza, em alguns casos
é mesmo capaz de assinar a sentença de morte
já a feiúra, que pode ser relativa, é sim
do ponto de vista comum uma horrível
condenação e, no entanto, mesmo ela
pode salvar vidas, nem que seja a
sua própria, meu caro feioso
quanto mais, um baiacu na frigideira é
uma imagem repulsiva, não é mesmo?

notas para um livro bonito

quem sofre não escuta nada
só o ganido de sua dor tamanha
quem sofre ganha
um olhar apenas
um olhar de pena
não precisa explicação
nem prova matemática
nem teste de esteira
um coração que é
só musculatura e
não tem mais nada de seu
além de uma batida dura
no entanto, quem está feliz
vê-se logo em sua cara que a
felicidade é a única máscara
que não mascara
por isso, sofrimento que é
sofrimento não decola
o sofrimento feito a ave a
ave a ave a ave em
seu canto se consola

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

notas para um livro bonito

primavera
as árvores voltam a ter casca
já não tremem de medo do
granizo que apunhala
mas se chove
é a mesma chuva de
fragilidades que um dia
dedilhou as copas com
olfato e úmida língua feito
tocasse as cordas de um
violão rouco
sob as raízes tudo está
alagado, preparando uma
resposta à manhã
explodindo frutos como
fossem olhos dos
enfermos da saudade

domingo, 11 de outubro de 2009

manual de putz sem pesares

Prólogo

É provável que você se chateie nas próximas linhas. Você que gostaria que nelas estivessem desenhadas genialidades, coisas como um Catatau. Ou romanceiros, ditirambos, baladas, haicais, prantos, preces, quadras, trocadilhos, sei lá, poemas-piada, trovas, anticlímax, rondós, terças-rimas, essas porras, sínqueses, sinéreses, síncopes, sístoles, sinestesias, teses e antíteses. Ou ódios, odes, salmos, madrigais, aboios, roteiros, tratados, petições, casidas e gazeis, hinos, fábulas, formulários, resenhas, eufonias, cacofonias, elegias, alegorias, receitas de bolo, receitas de médico, jograis, epigramas, sonetos, epitalâmios e protalâmios, expressões verbi-voco-visuais, epopéias, canções, cantigas, bilhetes de geladeira, recado na secretária eletrônica, paródias, e-mails, twitters e parábolas, emboladas etc etc etc. Mas acontece que isso é um testamento.

especulações sobre o amor simples

sabemos que
estamos
fazendo amor
e não apenas
trepando
quando o
corpo da gente
geme em
uníssono pra
dizer que
está feliz

nunca digo que
tenho amor
por ela
eu faço
amor por ela

sábado, 10 de outubro de 2009

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

notas para um livro bonito

se tem uma coisa que sei fazer é
grunhir feito madeira no fogo
e se vivo olhando atrás é para
não deixar que me formulem as
imagens do esquecimento
denunciar-me na ofegação dos
olhos é um pouco do que posso
também seria justo contar que exalo
algum ardor que não é perfume, mas
sangue transparente como o dos
fantasmas com caspa e asma
talvez devesse expor que estilhaços de
melodramas me compõe esteticamente
mais do que roupas da moda, quero dizer
espero ter forças suficientes para
evitar que tudo não venha a se
transformar numa hipocondríaca
série de lamentações e mais
lamentações de escolas literárias com
suas grifes, etiquetas e medidas
no entanto, não estou convencido do que
vem a ser exatamente isso que
chamam “o pão que o diabo amassou”
ou o tal “peito condoído dos poetas”
não existem ilusões maiores que
a ilusão, quanto a isso não me iludo
sei (porque experimentei) que
sem altímetro se cai mais
fundo nas incertezas, na falta de
razão, nos erros, nos mistérios da
eventualidade premeditada
onde posso respirar melhor o
barulho de estar vivo

fragmento de uma minha novela inédita

Na noite em que vim embora, entrei num ônibus e deixei tudo para trás. Quando o frio ardeu em minhas narinas, eu soube: estava em casa. Lembro nitidamente da madrugada em que pisei de novo em Curitiba. Fazia 7 graus e tudo era branco do lado de fora. O ônibus da Itapemerim mergulhando num copo de leite integral muito gelado, cheio de nervuras, quase virando pedra. Trazia uma mala pequena e um coração pesado demais. Não carregava livros, apenas poucos amigos, por carinho. E algumas memórias. Vinha do Rio de Janeiro e meus olhos tinham secado. Estava de volta em minha cidade, em ruas vazias com indecifráveis hieróglifos de mijo e sua caligrafia do sangue das almas simbolistas. O apartamento que um dia tinha sido escritório de meu pai transformei em moradia, no oitavo andar do Edifício Tijucas. Jornais, revistas e livros comprados em sebos agora dividiam espaço com latas de suco e embalagens de comida pretensamente saudável desde que parei de me embebedar e passei a me preocupar com “o futuro”. Hoje faço alguns planos e às vezes dou umas voltas no Parque Barigui. Noutras ocasiões, me perco na neblina de dentro dos próprios bolsos, feito um chaveirinho separado da chave de casa. Aos fins de semana, peço pizza cortada em oito, dou-me esse direto. Mimo a mim mesmo às vezes. Vivo aqui, na nave do sofá vermelho, ora dentro da novela pilotando a televisão, ora roncando baixo enquanto meus ouvidos se comovem com uma canção fudidamente triste cantada por Nina Simone. Cinco anos faz que emborquei lá atrás a Cidade Maravilhosa. E continuo olhando para você, Nanda, nas fotos que trouxe comigo. Cinco anos que almoço quase todos os dias sozinho em restaurantes à quilo. Às vezes lembro que gostaria muito de visitar Machu Pichu, mas acabo me contentando com o Passeio Público. Após o almoço, caminho até a Praça Osório, de lá vou para o Largo da Ordem, no Sal Grosso bebo um copo de suco de laranja muito ácido, não feito um condenado, porém um carrasco de mim mesmo.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

canções que afagam condenados

manual de putz sem pesares

La Guernica, Picasso
Seu filho morreu

Os mais violentos estão do lado de cá da câmera-centauro. Os mais violentos rangem feito um prédio suplicando implosão. Os mais violentos têm espasmos luxuriosos e fedem a vômito. Suas correias, seus êmbolos, seus perfumes de óleo são fabricados com petróleo, cana, carvão, calor. Ali adiante a promessa de outro mundo. E o inferno de amanhã a arder a brasa do peito cardiopata aberto por um cirurgião de mãos sujas. Os mais violentos são burros xucros a orbitar enfurecidas galáxias da promiscuidade. Os mais violentos têm na fala desgrenhada o som de dores progressivas. A desgraça de guerras biológicas. Um atropelamento na rua calma do bairro como fosse um ataque terrorista. Telefonemas dizendo “seu filho morreu”. Um dia, pneumonia asiática. Noutro, câncer. Hepatite. Foi triturado por corvos aquele desenho que vinha montado numa bicicleta, vestindo rosa. Numa estrada de Piraquara é asfalto o bêbado típico de histórias de perdedores. O pedófilo sorri ao sair do cinema. Uma jovem dublê é maquiada entre as ferragens. Outro mafioso veste belos ternos sem contar com as pulgas. Alguém perde os próprios olhos numa tragédia grega. A babá entrevistada num programa da tarde conta que queima crianças com o toco do cigarro, e chora. No melodrama de final de semana, num teatro qualquer, perguntas pungidas: Como foi acontecer conosco o que só acontecia aos outros? Como com a filha do renomado jurista que jogou sua vida toda fora à favor da justiça? E também com o exemplar chefe de família? Logo com aquele que fez revoluções? Com o que criou constituições? Com quem negociou tratados? Com quem não tem nada com isso? Com quem só está tentando, tateando? E as respostas são contos de fadas: O corvo do Poe. Os ratos do flautista de Hamelin. Alguém vaga debaixo de marquises, foge do sol. Surto psicótico. E ele se masturba num gesto aplacador, de total esquecimento, depois dorme. Os estudantes de psicologia o adoram. Saites, saites, saites, saites, saites, saites, saites e mais saites que são seitas. Neo-nazistas espancam uma bicha com um leve movimento no mouse. Jogam em fornalhas aquele preto. Um outro, o asfalto cobre-lhe a carne, é só ficção. Sequer adianta suplicar que oxidem suas visões de basalto e poeira, o sangue continua a empedrar no estômago.

notas para um livro bonito

na boca cai bem um sorriso
um sorriso para que você sorria por aí
feito um bobo alegre
um bobo alegre, pois não
tem coisa melhor?
um bobo alegre capaz de mudar o
nome do tédio para ameno, eis
uma boa proposta
feita pelo bobo alegre
o mesmo que diz ser preciso
esgotar o desgosto e
gostar desse gozo
o mesmo que acha o inverno
uma ótima estação para se
desenvolver, estética e
espiritualmente, o corpo
o corpo de ficar embaixo das cobertas
só beijando na boca
beijando na boca até secar a saliva
diz o bobo alegre, depois sorri
isso é bem bom: ir sorrindo
sorrindo, e que não seja
da boca pra fora

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

lançamento revista lama

manual de putz sem pesares

Quatro imagens

1. o velho mendigo sentado na praça
em frente a Teatro Municipal.
nem as pombas com piolhos o querem mais.
radicalmente obsoleto, o velho velho
velho mendigo discute com rigor e
veemência contra o Teatro Municipal.

2. levantados da cama, saídos do susto do
sonho para a realidade.
foi a moça, ela acordou a todos.
e a casa em que está nem lhe pertence
apenas a hospedam, e de favor.
que falta de respeito da moça, que traja uma
anágua rosa da sua mãe morta recente, uma
jaqueta do exército e a tesoura de carnes na mão.
ninguém ri.

3. 389+72 carteiras de cigarros vazias
no apartamento.
+126 maços ainda fechados.
em meio a esse holocausto de pulmões há
uma mulher sentada nua e
(adivinhe) fumando.
se está doente ou tem prazer
fica a cargo do leitor.

4. escuridão no apartamento.
súbito, interruptor acionado.
o rapaz está lá, no meio da sala
de sobretudo e barba, pendurado pelo
pescoço, o rosto roxo feito uma
lua de inferninhos do centro velho.
alguns instantes para que se fixe a
imagem, aí o interruptor é desligado.

manual de putz sem pesares

Homens que explodem

Imagine um carro com o motor esfumaçado no meio da via rápida. Imagine os xingamentos e as bitucas dos cigarros do nervosismo do homem sendo jogadas na vala. E o suor debaixo de sua barba, no pescoço. Ele espera o guincho. Observe como o rosto dele é ingênuo. Reparou? É a cara de um homem que vai explodir. Perceba, ele não é exatamente uma granada. No sangue não corre pólvora. Ele não tem fios verde e vermelho que devem ser cortados por peritos do Grupo Tigre. Mesmo assim se pode afirmar: Ele vai explodir. Veja, uma flor não murcha por querer. Um ovo que cai da mão da cozinheira certamente explode. E um baiacu fora d´água? Uma garrafa de cerveja no congelador desregulado, claro, muitos já se cortaram em seus cacos. Do mesmo modo, um olho que presenciou decadência demais se rasga em cegueira. Por isso, o óbvio: O homem vai se estilhaçar. Comemorações explodem, e as crianças, que não entendem direito ainda que aquela é uma festa, as crianças choram enquanto os pais bém búm! Um bolha de sabão soprada pelos lábios rosados da menininha com sal ainda escorrendo na face também estronda o seu "nunca mais". Tantas, variadas cousas arrebentam. Mesmo assim sempre serão sujas as mãos de um homem que.
.
*Acabo de encontrar, num caderno velho, pequena
série de anotações que organizei e transformei
(já apontavam o caminho) nesse texto. Algumas
frases, tenho quase certeza, foram sopradas
(ao menos inspiradas) por meu maninho Alexandre
França, nalguma de nossas madrugadas de embalos.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

amanhã, dia 07, estréia da peça gina e lançamento da revista lama

Gina
.
.
A peça Gina, que estréia dia 7 de outubro no Mini Auditório do Teatro Guaira, tem como ponto de partida a obsessão da personagem título por homens mais jovens, para falar sobre as relações amorosas na contemporaneidade. No monólogo, interpretado pela atriz Maia Piva, Gina, uma senhora no auge de seus cinquenta anos se apaixona pelos namorados da filha de vinte e, através deste sentimento, acaba construindo universos imaginários, onde as relações humanas adquirem aspecto distorcido. Segundo Maia Piva, a jovem atriz de trinta e três anos, o maior desafio para execução de Gina é o fato da personagem ser mais velha, “minha maior preocupação era atingir a profundidade necessária para dar vida a uma mulher de cinquenta anos”. Alexandre França, autor e diretor da peça, conta que Gina partiu da idéia de falar sobre amor de uma maneira inusitada, "Gina é o símbolo do desgaste que o romantismo sofreu com o passar dos anos. A personagem luta para sobreviver ao tédio da vida contemporânea através de relação platônicas que nunca são consumadas”. A trilha, assinada pelo pianista Davi Sartori, pontua o tom retrô do espetáculo, ao retomar temas antes interpretados por cantoras como Edith Piaf e Maysa. A peça, que utiliza poucos elementos em cena, é focada no texto e na atriz, “não utilizamos outros recursos que não estejam intimamente ligados à atriz e ao texto. Para falar de amor, nada melhor do que uma peça que se aproxime do público da forma mais humana possível”, conta Alexandre França.
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Gina
com Maia Piva
texto e direção Alexandre França
de 7 à 18 de outubro
quarta à sábado às 21 horas,
domingo às 19 horas
no Mini Auditório do Teatro Guaira
ingressos R$ 10,00 inteira e R$ 5,00 a meia
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Revista Lama
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Detetives, vampiros, criaturas, almas penadas, manetas, zumbis, psicopatas, sociopatas & simpatizantes desta corja! Convoco a todos para beber um vinho conosco no Café Quintana, quarta-feira dia 7 de Outubro! Av. Batel, 1440. Em Curitiba, próximo ao Canal 12. Será uma noite muito agradável, onde celebraremos a volta das revistas Pulp às prateleiras das livrarias! Lama! Venha sujar as mãos! Contos de: Ana Paula Maia, Fabiano Vianna, Luiz Felipe Leprevost, Assionara Souza, Martha Argel, Giulia Moon, Daniel Gonçalves, Rodriane DL, Gisele Pacola, Simone Campos & Emanuel R. Marques.

As revistas pulp, ou pulp fictions, foram publicadas primeiramente nos Estados Unidos entre as décadas de 1920 e 1950, e eram assim chamadas por serem impressas em papel vagabundo e vendidas por alguns centavos. Suas capas normalmente apresentavam uma ilustração de uma garota seminua em perigo ou sendo torturada por um cruel vilão. As pulps eram um tipo de entretenimento rápido, sem grandes pretensões linguísticas, mas que faziam a alegria dos fãs do gênero. Os leitores acompanhavam a trama, ansiosos pelos próximos capítulos. Vários escritores famosos já trabalharam em pulps, como Isaac Asimov, que trabalhou entre outras na Astounding Science Fiction. Outros autores escreveram para pulps no início de suas carreiras, como Raymond Chandler, Ray Bradbury, Edmond Hamilton e Dashiel Hammett, autor de O Falcão Maltês e criador do romance noir. No Brasil, o fantástico permeou diversos textos da literatura desde Álvares de Azevedo. Encontramos suas marcas em Joaquim Manuel de Macedo, Machado de Assis, Monteiro Lobato, Mário de Andrade, Érico Veríssimo, Guimarães Rosa, entre outros. E também nos livros de Murilo Rubião, Jorge Miguel Marinho e J.J. Veiga. Mysterio é considerado o primeiro romance policial do Brasil. Foi escrito pelos autores Medeiros e Albuquerque, Viriato Corrêa, Afrânio Peixoto e Coelho Neto. Medeiros e Albuquerque é também reconhecido por ter escrito o primeiro livro de contos policiais da literatura brasileira, chamado Se eu fosse Sherlock Holmes, em 1922.A temática pulp se tornou um nicho rentável do mercado editorial no Brasil, e vários livros e revistas foram lançados. Dentre os títulos nacionais mais famosos estavam Lupin, X-9, Meia-Noite, Emoção, Mistério Magazine e Detetive, a principal pulp brasileira. A revista foi para as bancas pela primeira vez em agosto de 1936 a 1.200 réis por cópia. Hoje, o gênero está permutado e misturado na cultura pop em inúmeros sites, filmes, blogs e séries de tv, como Criminal Minds, Dexter, C.S.I., Lost, Sobrenatural, True Blood. O pulp nunca esteve tão presente em nossas vidas. Crônica e fantasia se confundem numa realidade caótica que caminha na fronteira entre realidade e sonho. A internet trouxe a realidade virtual até nós. Second Life, zona limítrofe onde podemos viver situações imaginárias e visitar mundos utópicos sem a utilização de equipamento de teletransporte ou magia. Essa miscelânea cultural, impressa ou virtual, abriga desde os cronistas do cotidiano até aqueles que se aventuram pelos labirintos das histórias fantásticas; universo particular de criaturas e não-lugares. A revista Lama, através de um esforço coletivo, pretende instigar a produção de uma literatura pulp brasileira. Os escritores e ilustradores deste exemplar criaram seus contos de horror, suspense ou realismo fantástico com completa liberdade temática. O resultado englobou temas bem distintos, criando assim uma edição muito interessante. Criaturas, psicopatas, vampiros, detetives. Todos estão presentes. Do terror ao suspense. Do realismo fantástico ao horror inimaginável. Fabiano Vianna, editor.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

manual de putz sem pesares

Restos de cidades

O Solitário das Multidões conhecia tanta gente, mas não havia ninguém dentro dele. Todo usado pela usura. Pude ver quando ele mostrou numa entrevista sua Certidão de Trevas. Usinado pela usura. Êta bicho ordinário!, quando abria os olhos parecia abrir um túnel em rocha sólida. Usurado pela usura. O osso da pedra a gente achava que era as ruínas do seu corpo. Recusado pela usura. Acredita que o rabo do Solitário das Multidões foi arrancado com serrote em praça pública? Recusado pela usura. Não, isto foi no tempo da... é... Usurado pela usura. Dizem que ele sobreviveu a duzentos e três atentados, desde... Usinado pela usura. Com tudo aquilo bombardearam ele. Recusado pela usura. Agora, isso posso dizer, tava na cara que sua dor usava mulheres do baixo meretrício, maconha e óculos escuros. Lambuzado pela usura. Uma vez peguei na mão dele e pude constatar que não era feita de pele e cartilagem, mas de lodo... fedia mesmo. Recusado pela usura. Li não sei onde que ele até as últimas saia por aí comendo restos de cidades. Usurpado pela usura. De cidades. Enclausurado pela usura. Restos.

jardim botânico - rio


Toni Platão é uma lenda do rock nacional. Era o vocalista da banda Hojerizah. Agora tá botando pra fuder em carreira solo. Elísio Brandão promoveu nosso encontro num bar do Jardim Botânico, no Rio. A gente tomou alguma dúzia e meia de cerveja — eu, Toni e Elísio, junto com o ator D'Artagnan Junior e com dois portugueses bacanas, um deles, o Pedro, especialista em rock brasileiro dos anos 80. Nessa noite fiquei feliz de encontrar, ao acaso, o bróder Felipe Werneck, curtindo férias do jornalismo ao lado da esposa e da filhinha recém nascida. Trocamos abraços, dei de presente o Barras antipânico e barrinha de cereal pra ele, que partiu num táxi antes de cair na tentação do primeiro gole. Eu fiquei, até bem mais tarde. Ao longo da farra pintaram outras figuras por lá. Mas ninguém iluminou nossa mesa mais do que uma carioca singela que atende por Manuela — poetisa, segundo informou. Ah, a última das poetisas.