domingo, 4 de novembro de 2012



Venho pela XV. Pessoas aos milhares, para cá e para lá, cegos com bengala, homens-terno, hippies sem cores, jovens-bicicletas, mulheres-salto alto, escuros óculos, velhos-chapéus, rapazes-violão nas costas, cabeludos-carecas, magros-negros, velhos-punks-crianças, palhaços-sombras, músicos-estátuas que se mexem, deficientes físicos, o inverno a desfilar gorros e pulôveres, toda a sorte e azar de se ser o que se é, alguém, ninguém. Passam. Nenhuma história posso ler em suas faces tiques de lábios e sobrancelhas. Passam. E depois que passam nem mesmo as faces, são grupos-casais a flutuar no estômago da cidade. O petit pavê, o basalto escuro, a calcárea branca formando estilizadas imagens de pinha, lojas de roupas, aparelhos eletrônicos, lanchonetes, cafés, bancos, canteiros de flores, farmácias, prédios de escritórios, isso e aquilo, a imagem de uma longínqua manhã de sábado com meu pai a me levar pela mão
vamos entrar aqui, comprar um sapato para você.
Meu primeiro par, de couro. Eu tinha oito/nove anos. Boca Maldita. Ali, como sempre, os obsoletos Cavaleiros discutindo as notícias do dia. E o prefeito a discursar idiossincrasias em palanque improvisado. Homens públicos jamais servirão de bóia salva-vida. Meu pai conhece o engraxate. Ele esfrega com ritmo o escuro dos próximos passos que darei na vida. A cadeira do engraxate uma ilha no mar de transeuntes e ambulantes. Meu pai paga. Leva-me. Noto que (o própria prefeito?), com medo que alguém se machuque, arrancaram os dentes afiados do monumento símbolo da Boca Maldita. Banguela boca. Nesta manhã os libaneses ainda não ocuparam seus lugares nos bancos a falarem sobre a política local em sua língua natal. Venho pelo caminho para cegos que cruza a XV ao meio, de cabo a rabo. Passo pelo Bondinho. Pelo Bar Triângulo, passo, onde ainda há coberturas roxas de acrílico há proteger de chuva e sol quem senta para um chope com fritas. Antes as coberturas de todas as bancas do centro e de todos os pontos de ônibus eram estas, redondas e roxas. Paro, espero o fluxo de carros, o sinal para pedestres abre, atravesso a Dr. Muricy. Seguindo o caminho dos cegos, contorno o chafariz, Galeria Ritz à direita. Carros, carros, carros, atravesso a Marechal Floriano. Hordas de mendigos cobertores e odores de mijo, merda, suor, sujeira, amanhecem nas marquises. Garis espetam, agarram as folhas da fieira de árvores misturadas a pacotes de salgadinhos e latas de refrigerante, jogados ao chão e nos redondos canteiros com flores, elas também roxas, as flores. Chego na esquina da Monsenhor Celso, rua em que não passa carro. Leio a placa: segurança monitorada por câmeras. Mais em frente a Confeitaria das Famílias, onde na manhã de meu primeiro sapato de coro eu e meu pai paramos para frapê e bomba de creme. Foi na semana de sua abismada frustração.

2 comentários:

  1. Eu li vários textos do seu blog mas vou comentar nessa último mesmo. Gosto desse seu tom desgraçado, fica muito bom mesmo. Inclusive eu tenho um livro seu aqui que ganhei depois de fazer uma Oficina de Criação Literária em 2008 ~ 2009 e nunca li, agora já fui lá na estante e separei o livro para ler.

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  2. Leprevost, amigo, irmão:
    Corrija aí o endereço do meu site, por favor.
    http://cartunistasolda.com.br

    Gracias, namastê. Só Ctrl+S Salva!

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