sexta-feira, 16 de julho de 2010

fragmento de a neve não tem gosto de algodão doce

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.....Com o cheiro do café, Nanda acorda. Vem para sala enrolada no edredom. Seus olhos vermelhos de sono feito maçãs em chama. Meu coração é um paúl, um ninho de hematomas melhorando aos poucos. Cinco anos... e agora ela está aqui.
.....Como é que você consegue desenhar, Júlio?
.....Não consigo mais, esses são os piores desenhos que já fiz.
.....Então ela: Todas as vezes que tentei fazer um desenho eu estava chorando.
.....Podia ser pior, digo.
.....Os olhos dela se turvam, há chuva dentro dos olhos de Nanda. Ela está em silêncio. Eu, em pânico.
.....Júlio...
.....Deus, como ela é doce ao chamar meu nome.
.....Oi.
.....Me conta o fim... com um desenho.
.....Não dá, sou incapaz de desenhar nossa história até o fim.
.....Nossa história é um osso fraturado, Mr. Karneval.
.....Pode ser.
.....Ficamos um tempo em silêncio. Depois ela diz: Vou ficar poucos dias em Curitiba, Júlio, depois volto pro Rio, você sabe disso, né?
.....Lá fora faz sete graus. Estou desconcertado, isso é... Eu e minha garota novamente, frente a frente. A encaro por alguns segundos, esboço um sorriso.
.....E o Rio?, puxo um assunto qualquer, como vão as coisas por lá?
.....Do mesmo jeito, diz ela.
.....Fedido e lindo?
.....Engraçadinho.
.....Não é basicamente isso a Cidade Maravilhosa?
.....Claro que não é basicamente isso, você é um exagerado, ela sorri, dá um gole no café.
.....Sorrio junto. E ela pergunta: E você?
.....O quê?
.....Não sente saudade do Rio?
.....Às vezes.
.....Do quê?, ela mastiga a broa, fala de boca cheia.
.....Sei lá, de algumas pessoas, sinto mais saudade dos amigos do que da cidade.
.....Sei.
.....Você encontra alguns amigos meus de vez em quando?
.....Você não tinha “alguns” amigos, Júlio.
.....Uma meia-dúzia deles eu tinha.
.....Você tinha o Eldorado.
.....Ficamos um tempo quietos recordando a figura de ÉL.
.....Você gostava dos chopes que ele vivia te pagando, isso sim.
.....Que maldade, Nanda.
.....Maldade é?
.....Eu gostava da companhia do ÉL, das conversas, da sabedoria dele.
.....Dos discursos despropositados, ela diz isso fazendo um movimento grandiloquente como que mimetizando o modo com que ÉL se expressava.
.....Verdade, Nanda, eu adorava os surtos dele.
.....Ela concorda: Ele era divertido às vezes.
.....O melhor ÉL era aquele das cinco da manhã aos berros no Baixo Leblon... Você tem visto ele?, pergunto.
.....Encontrava de vez em quando com ele no Baixo, um dia nos cruzamos na praia.
.....Você detestava ele, Nandinha.
.....Não detestava não... Eu só detestava encontrar vocês dois podres de bêbados.
.....A gente vivia podres de bêbados... Você tem visto o ÉL?
.....Nanda subitamente entristece. Sua boca retraída parece não querer dizer a frase “ÉL morreu”.
.....Como assim, quando, por quê?
.....Faz três meses, confirmou Nanda.
.....De repente me assalta uma lembrança ruim, a de um ÉL sombrio, não o de sempre, mas o que às vezes me perturbava. Como daquela vez num fim de madrugada, numa Lapa suja e coberta por escuridão silenciosa, quando ele me perguntou quanto tempo eu achava que ele levaria para se auto-destruir, caso resolvesse.
.....O quê, que merda cê tá falando, ÉL?
.....Se eu quisesse morrer, mas não tivesse coragem de me jogar do prédio, ou dar um tiro na boca, quanto tempo?
.....Sei lá, experimenta, burro.
.....Falando sério, Júlio, sem cinismo, quanto?
.....Que papo aranha é esse?
.....Eu posso me drogar.
.....Você já se droga.
.....Posso me drogar com método, se eu fizer isso, cê acha que em seis meses consigo acabar com minha raça?
.....Talvez fumando crack.
.....Com esse ÉL auto-destrutivo na cabeça volto para Nanda: Como foi que ele se matou?
.....Overdose.
.....Que merda.
.....Ele foi encontrado dentro do carro.
.....O carro era um conversível da década de 50, lataria vermelha, que mantinha polido com esmero. Uma pequena relíquia, dizia ÉL. Ficava no segundo piso da garagem subterrânea de seu prédio em Ipanema.
.....Fazia um calor de fornalha na hora em que ele foi achado pela zeladora enquanto lavava a garagem. ÉL estava sumido há dois dias. Devem ter pensado se tratar de mais uma de suas extravagâncias. ÉL vivia se hospedando em hotéis da Lapa. Às vezes ficava uma semana por lá. Eu perguntava o que ele estava fazendo afinal de contas. E ele: Pesquisando, pequisando, meu caro, Júlio.
.....E o livro, ÉL, quando fica pronto?
.....Tenha calma, moleque, ele chegará no momento certo, cada coisa em seu tempo e lugar.
.....Mas o livro de ÉL nunca apareceu. Nunca sequer li uma página que fosse do seu trabalho. Chego mesmo a acreditar que não havia livro nenhum. E que as pesquisas de ÉL diziam respeito mais a prazeres que ele devia proporcionar a si nessas aventuras do que outra coisa.
.....Então Nanda me diz uma frase que conheço bem, é uma frase de ÉL: Tudo o que ainda não foi experimentado atrai.
.....Não dá para dizer que ÉL não produziu literatura.
.....Quanto a frase do ÉL, você tá certa, Nanda, só não sei o que você veio fazer aqui em Curitiba.
.....Como assim “não sabe”?
.....Eu e ela já nos experimentamos à exaustão, segundo a frase de ÉL, não deveríamos mais nos sentir atraídos um pelo outro.
.....Estamos fazendo nosso papel, Júlio, só isso.
.....Que papel?, pergunto.
.....E ela: O de refutar as teorias dos filósofos que nos antecederam.

2 comentários:

  1. eu me daria de presente a primeira edição.

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  2. gosto muito, profundo e cheio das divisões das relações intimas...os amigos, este emaranhado de afetos perdidos...continua

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