domingo, 1 de agosto de 2010

manual de putz e pesares

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.....Sem som, sem anestesia
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Cinco graus. Saio correndo (tendo os músculos fracos) como posso pelas ruas. Não há viva alma na cidade. Os postes de luz tremeluzindo. É escura a neblina. E fede. Chego numa praça. Três da madrugada. E o meu desassossego é uma menina com um vestido de lantejoulas prateadas, com nada por baixo, nem casaco que lhe proteja. Seus olhos estão borrados. Ela acabou de sair do Dentadas Pub. Ela se vira na minha direção e diz: Eu tenho uma boca dentro de mim. Tenho uma dor lancinante no estômago. Me aproximo. Tomo um susto: Meu Deus, conheço essa menina. Chamo seu nome. Falo: Eu sou teu pai. Ela não me reconhece. Continua dizendo: Eu tenho uma boca dentro de mim. A menina sangra. Onde estão os bombeiros? As árvores da praça estão com as copas ardendo, vermelhamareladas. O dia começa a raiar. Não há transeuntes. Não há automóveis. Eu sou teu pai, grito. Como que saída de um transe, a menina se apazigua. Entristecida. Tiro a japona. Num movimento preciso, embrulho a menina. Ela me olha sem entender. Experimenta meu rosto com as mãos. Diz meu nome. Pergunta: É você mesmo? Sim, eu digo, sou eu. Ela fala, docemente: Você não é meu pai, não é minha mãe, não é nada meu e está aqui... você é meu outro coração, sem som, sem anestesia.
.....Acordo. Ouço barulhos. É dona Leleca. Ela está lavando a cozinha com produtos de limpeza. Eu odeio os produtos. O cheiro me deixa tonto. Me intoxica. Tenho alergia. Abro os olhos. O resto do corpo não quer responder. Depois de 40 minutos me viro para esquerda. Fico de bruços. Ok, agora eu quero que você se levante. Levanto. Calço os chinelos acolchoados. Vou para o banheiro coçando os olhos com remelas endurecidas. Não acende a luz do banheiro. Abro a torneira. Bebo água, com as mãos em concha. Lavo o rosto jogando duas ou três vezes água na cara. Acendo a luz do banheiro. Um fedor. Talvez eu já o tivesse sentido um tempinho atrás, mas não tinha me dado conta. Me deparo com o vômito no chão, ao lado da privada. Só pode ser meu.
.....Petit comité em cobertura da Rua Coronel Dulcídio com os jazzistas Endrigo e Glauco ganhando o melhor cachê da cidade. Eis minha noite de ontem. Acordo arrependido de ter bebido aos borbotões o vinho rosé seco comprado na Colônia Rebouças só para fazer um mimo rústico e charmoso a Lari, minha ex-aluna, que havia me convidado com “faço questão da sua presença”. Esse vinho miserável que ninguém além da minha ingênua pessoa bebeu foi o responsável por me fazer entrar num táxi, desembarcar e escorrer pelas sarjetas do centro por volta das quatro da madrugada atrás de álcool. Num esforço desgraçado voltei para casa dormir. Para hoje o doutor me pediu um hemograma e um exame de fezes parasitológico. Meu roteiro lírico e sentimental. Devo ter dormido duas horas, no máximo. Como ficará o velho irresponsável diante do sorriso das atendentes do Frischmann Aisengart, numa manhã que fede a ressaca?
.....Meus pés nus. O chão frio de lajotas. O tapete também está vomitado. Que chatice vai ser para dona Leleca lavar esse tapete. O cheiro me deixa nauseado. Aguente firme, não deixe que as golfadas venham. Estou sem fome, mas preciso comer. Faço um bochecho com água e cuspo em seguida. Respiro fundo. Olho minha cara no espelho. Olhos vermelhos, olheiras, rosto pálido. É isso. Ser um velho sozinho. São 9 da manhã. Dona Leleca, chamo. Nada. Dona Leleca. Vou até a cozinha. Leleca está no chão estrebuchando. De novo não, merda. O pescoço inchado. Ela espuma pela boca. Ela se debate. Seguro sua cabeça. Tenho nojo, mas enfio os dedos na boca dela. Já sei como lidar com epilepsia de doa Leleca. Ela vive esquecendo de tomar o remédio. Seguro a língua. Ela para de estrebuchar. Está desmaiada. Dou uns tapinhas em seu rosto. Leleca. Tapinhas. Leleca, acorda. Tapinhas. Depois de uns sete minutos inconsciente ela volta a si. Mas ainda não fala coisa com coisa.
.....Dona Leleca já limpou o banheiro. Já arrumou minha cama. Abriu as cortinas do quarto. Levou a roupa suja e o tapetinho vomitado para lavanderia. Preparou meu café. O que seria da vida sem ela? Mas Leleca também está ficando velha e cansada. Durante o café da manhã, pela TV, numa dessas matérias sobre reciclagem de lixo, vejo que o Gari Sorriso pode sorrir mais do que eu. Mudo de canal. Uma loira. Mudo. Outra loira. Desligo a televisão. Leio o jornal. Minha vista está toda atrapalhada. A notícia na qual se detém diz que empresário de sucesso, pai de família, viu sua filha de cinco anos ser atropelada na saída da escola, na tarde de ontem. Não era minha filha, mas poderia. Eu fui um bom professor, você pensa. Dei aulas para os cursos de economia e administração. O guardador de carros, por causa do alvoroço que os guardas de trânsito fizeram, graças ao atropelamento da menina, acabou que deixou de ganhar trinta reais. Que pensamento torto, digo para mim. Depois, deve fazer algum sentido. Tudo influencia a micro-economia. Bolas, que mania de querer analisar tudo pelo viés econômico. Você está defasado, Edmundo Rojas.
.....Preciso sair de casa. A prefeitura instalou umas barras, uns suportes especiais para idosos fazerem exercícios físicos. Um parquinho de diversões para velhos. Isso não me pega. A farmácia, essa sim, a verdadeira responsável por manter minha saúde. Antes de eu sair dona Leleca diz: Ponha a japona, que lá fora tá congelando cimento. Como se você ainda fosse uma criança de tenra idade. Coloco a japona, o gorro. Saio.
.....Na rua, enfio um balaço na cara do céu cuspindo para cima. Descasco um mentex e vou mastigando. Os prédios da Sete de Setembro pastilhados de porcelana, com porteiros de seus pulôveres. Empregadas voltam com o saquinho de pães e o presunto para o café da manhã. Os fios de luz pingam eletricidade no bagaço de meninas indie ou emo viradas da noite que, depois de terem sentado na privada dos banheiros mais andergraudes para cheirar e escrever hieróglifos atrás das portas, passam pela Praça Oswaldo Cruz dentro dos Expressões que se dirigem ao Água Verde e Portão. Presencio um atropelamento estridente como um solo do Steve Vai. Paralelepípedos beijam os sunglasses do ciclista num deslize do valet park de um hotel cinco estrelas. Sem contar os olhos da cara pelo seguro do Honda Civic de vidro fumê e a indignação do barrigudo que pilota uma Kombi adesivada com a estrela do PT. Sujeitos eternos, fitness & wellness, passavam por mim galopando a manhã que até o fim, sem dúvida, terá nuvens cheias feito saquinhos de moeda e depois despontará descongelando o ouro do sol, dando uma folga para a epiderme. É sempre assim no mês de agosto. Edmundo Rojas, você devia ter aceitado pelo menos uma das inúmeras vezes que te ofereceram carguinhos comissionados em alguma espelunca. Você deveia ter sido menos turrão e ajudado os que queriam legislar a favor de seus cavalos lisos e sóbrios. Talvez assim hoje você tivesse dinheiro para esse acúmulo de medicamentos a que teu corpo está te obrigando.
.....Chego no Aisengart. Os exames vão dar resultados péssimos. Não podia ter bebido ontem. O que deu em você? As atendes são simpáticas. Olhando para a mais rechonchuda, assombra-me a ideia de que os médicos descobrem tudo sobre as pessoas examinando detalhadamente seu mijo e suas fezes.
.....Terei visto um atropelamento quando voltava para casa? Nunca entendi porque as pessoas param para ver gente morta no meio da rua. Parece que a curiosidade é sempre maior, mais urgente. A pose enigmática da morte. No meio do tumulto escuto uma moça dizer que morrer na hora do rush é uma merda. E depois outra, da janela do ônibus, mandando um policial de trânsito tomar no cu. Entro na loja de conveniência de um posto, compro uma latinha.
.....Entro no prédio, a cerveja na mão. O porteiro não gosta de mim. Dou bom-dia a ele. O elevador está demorando. Entro no elevador. Detesto pegar o elevador com todas essas crianças barulhentas. Décimo quarto andar. Escondo a latinha atrás da floreira, no hall de entrada. Entro em casa. Estranho, o almoço não está cheirando. Não tem bife hoje? Tira o gorro. Tira a japona, manga direita, esquerda. Aqui dentro está quentinho. Vou tomar banho. Toalha enrolada na cintura, cheirando a sabonete, vou para o quarto. Leleca deixou a roupa, passada, sobre a cama. Meu Deus, como você é demorado para se vestir.
.....Almoço a comida e o noticiário. Novas tragédias. Sou um consumidor de tragédias. Leleca trabalha na minha casa tem mais de dez anos. Ela não permite álcool. Ela me ajudou a preparar e limpar os restos no dia seguinte de centenas de festinhas, as tertúlias do professor Rojas. Quando a idade e a saúde permitiam. Leleca me ajudou a me livrar do álcool. Minha esposa morreu numa viagem à Foz do Iguaçu. Num ônibus lotado de inocentes que a televisão chamou de muambeiros. O motorista dormiu e o ônibus deu de frente com um caminhão. Ela está engavetada em um cemitério vertical, foi cremada. Me tornei viúvo muito novo, aos 31 anos. Nunca deixei de ser um caçador.
.....Acabo de me excitar pensando em cenas de namorados que se beijam nas escadas rolantes do shopping. Estou em casa, observando a natureza pela televisão. Hoje vou ficar quietinho, me recuperando do porre de ontem. Nunca mais. Mais um dia. Mais um dia.
.....Não resisto. Saio. Cada porta de edifício é um não-lugar que desemboca logo ali no shopping. O shopping boceja e me engole como eu fosse um mosquito. Dou uma risadinha. Estou gordo. Sacudo a barriga para dar risada. O senhor não tem vergonha? De quê? De ser velho desse jeito. Mas o que posso fazer se não estou morto? Vejo a namorada no degrau de cima enlaçando o pescoço do namorado um pouco abaixo. Você deu um passo e eu já não estava à tua altura. Os músculos das minhas pernas não têm pressa. Sento no café, bem no meio da praça de alimentação. Sou conversador. Chega um moço. Olá. Boa tarde, como vai o senhor? E já estou monologando: O exame que fiz dia desses na clínica custa 3.500, assim as seguradoras de saúde vão falir, a máquina de ressonância me dá medo...
.....Falo e ao mesmo tempo lembro coisas de quando criança. Recordo das tetas das senhoras lá da Colônia em que nasci, das pernas roxas, inchadas feito uma geografia de campo de batalha. E: A máquina de ressonância parece um tubo de pasta de dente, ou um caixão tecnológico cheio de luzes...
.....Agora as moças da loja de roupas em frente vieram dar uma pausa para o café. Elas já me conhecem. Me tratam bem. Preciso manter o foco. Tente não entrar em dez assuntos ao mesmo tempo, velho Rojas. Fale da tua infância, vai fazer bem. Mas e as veias que irrigam meu cérebro, onde talvez esteja alojado um câncer? Que paranóia é essa? Os exames nem saíram ainda. Ou saíram? Já não sei dizer. Velho gagá. A menina em minha frente me lembra a Lady Gaga. A Colônia onde nasci foi tomada por esses condomínios de luxo com campos de golfe, sabe? Jovens publicitários se divertem ora jogando, ora armando tenda de mil metros quadrados para celebrar com festas. Festas rave?, pergunta a Lady Gaga recolhendo as xícaras das mesas ao lado.
.....Sorrio por dentro. Me sinto capaz ainda de mentir o suficiente para levar uma guria dessa para cama. Velho porco. Você continua sedutor, apesar de tudo. Esse broxe aqui ó ganhei de uma avó de pernas roxas e inchadas lá dá Colônia. O broche era para me dar sorte, ela disse, eu uso todo santo dia. Respiro fundo, adoro o ar-condicionado do shopping. Recuso o café que o homem engravatado me oferece. Sou hiper-tenso, tenho que me cuidar. Tenho que me cuidar. Tenho que me cuidar. Leleca deve ter deixado sopa de verduras para o jantar. Detesto sopa de verduras batida no liquidificador. Preciso beber alguma coisa. Chope? É melhor não, ontem passei mal, vomitei sangue até. Amigo, me dá mais um. Vocês vendem uísque aqui no café?
.....Dane-se a hipertensão. Agora estou como o Diabo gosta. O senhor está saidinho hoje, diz Lady Gaga. Sorrio. Ela é uma gata miau trazendo a terceira dose. As tardes são dos amantes. Digo a ela: Amo em você tudo o que dói. Ela fica envergonhada, mas sorri. Por pena? Por educação? Você é um velho que ainda vale alguma coisa? A frase não é minha. Devo tê-la vistouvido em algum filme. No passado, fui o rei das frases colhidas em filmes e livros. Os troquei pelo shopping, ele sim uma aventura de sessão da tarde. Que encrenca você causaria com o honrado Guevara. Uma vida dedicada à filosofia para chegar a isso. Hoje, para mim, filosofia é viver entre bula de remédio genérico para pressão, CPI, FMI no canal do Senado e os passeios pelo Soho Batel. Não tenho a menor saudade do tempo em que fui parte de equipes que especulavam vulcões financeiros mais violentos que o de Krakatoa. Toda essa corja tinha mania de surfar em dólar como ele fosse uma onda Tsunami.
.....Puta merda, você era tão forte. Muitos o tinham em alta conta. Para outros, não passava de uma verdadeira praga que vivia para ensinar o marxismo aos alunos. Você, o grande ateu, todos esses anos lecionando numa universidade católica. O celular. O celular está tocando. Dona Leleca. Sempre ela. Alô... alô... alô... Nada. Alô... quem fala? Edmundo Rojas, quem gostaria? Desculpe, foi engano. O engano desliga do outro lado da linha.
.....Cinco doses depois. Pago com o limite do cartão de crédito. Saio do shopping. Vou à pé até a Panter´s Hause. Peço uma dose de uísque. Bebo. É falsificado. E diluído com água. Escolho uma menina. Completo o copo com nova dose. Ela pega a toalha e a camisinha. Subimos para o quarto. Como sempre, sou carinhoso. Obrigada, ela agradece. Não tem de quê, gosto de mulheres bonitas e inteligentes. Obrigada. Não tem de quê. Obrigada. Agora chega, querida, pare de agradecer, não me agradeça mais, não quero você me agradecendo o tempo todo, chega de agradecimentos por hoje, quando eu quiser que você me agradeça eu peço. Estou com saudade de mim. Criança. Na Colônia. No interior esdrúxulo do país. O norte vermelho do estado. Ruas das quais saiam fogo por entre as rachaduras. Pago. Cartão de crédito.
.....Vou para o centro. Entro no caixa eletrônico do Itau da Boca Maldita. Saco uma boa quantia. Vou para a Saldanha. Entro num predinho. Eles me deixam cheirar rapidinho ali no mocó mesmo. Abrem essa exceção, porque sou velho. Há quanto tempo você não fazia isso?, perguntam. Uns seis anos, ou mais. Pago. Desço novamente até o calçadão da XV. Sento num banco. Olho com desprezo qualquer um que passe com cara de executivo. Eles têm a saúde do ferro, comem business e presunto no café da manhã. Não adianta ter ódio. Eles cagam para você. Eles são trabalhadores. E você? É um animal abatido. Cambada. Corram se cercar por blindex e cartões de indentificação da empresa. Vocês não me enganam, trapezistas. Garanto que trazem na pasta a recomendação expressa do Ilustríssimo Algumacoisa. Dona Leleca não pára de ligar para o celular. Na vida todos têm de encontrar a pomada certa para aliviar o rabo. Preciso arranjar uma estagiária para dona Leleca, ele já está cansada.
.....Volto para Saldanha Marinho. Entro no mocó. Gostou da farinha, vovô? Pago e saio. Entro no Dentadas Pub. No banheiro arria as calças e caga. Enquanto faço força, desembrulho o papelote. Sento a venta. A narigona nunca esteve tão ávida. Velho burro. O braço formiga. O peito arde, três, quatro pontadas insuportáveis. Abro a camisa. Massageio a gigantesca cicatriz que divide meu tórax em dois. Estou deitado na lajota mijada. A dor provoca um tipo de dança no meu corpo caído. É você mesmo? Sim, eu digo, sou eu. Ela fala, docemente: Você não é meu pai, não é minha mãe, não é nada meu e está aqui... você é meu outro coração, sem som, sem anestesia. Depois não escuto mais nada. Puxo o ar e ele não vem. Não sinto mais as pernas, as mãos. Meus olhos estão abertos, esbugalhados.

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