terça-feira, 29 de março de 2011

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Entrevista que a crítica teatral Luciana Romagnolli fez comigo. Foi publicada em seu blog (http://travessiasculturais.blogspot.com/2011/03/teatro-contemporaneo-nao-e-o-sangue-mas.html), no último sábado. Por causa dos ensaios, eu não tinha tido tempo de postá-la aqui. Mas agora deu certo. Acompanhe nossa conversa, feita por email.

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"Teatro contemporâneo não é o sangue, mas o vermelho"

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por Luciana Romagnolli

sábado, 26 de março de 2011

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Publiquei na Gazeta do Povo de hoje, em "participação especial", um Caderno G Ideias sobre Teatro Contemporâneo, a partir das peças em cartaz no Festival de Curitiba.

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Leiam aqui:






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Claro que sobrou um grande material das conversas com minhas fontes e, por julgá-lo interessante, vou disponibilizar aqui. Começo pela entrevista com o dramaturgo e diretor Luiz Felipe Leprevost, bastante generoso em suas respostas. Confiram:

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Pra começar, o que você entende por teatro contemporâneo e como articula operações e conceitos desse teatro na sua pesquisa de linguagem - por exemplo, em "O Butô de Mick Jagger"?

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Embora devêssemos entender por teatro contemporâneo tudo o que é produzido nos dias que correm, noto que se convencionou nomear assim uma parte bem específica do que temos visto em cena. Entenda-se: um teatro em que personagens dão lugar à subjetividades, polifonia de vozes, à imagética e sinestesia. Temos mais a música como suporte do que o enredo, ou então o enredo inserido na possibilidade do sonho, do ilógico, indiferente à regras da linearidade, promovendo fusões de tempo e espaço, exigindo do raciocínio. Narração e representação correndo simultâneas, apropriadas de ideias de distanciamento, admitindo variados pontos de vista, libertas do que se entende por causa e efeito e desenlace da trama. Assim, o teatro contemporâneo vai mais perguntando que respondendo, estruturando paradoxos, evitando ser moralizante. Temos mais a imagem do que o discurso e, se temos o discurso, ele vem sem psicologismo, com insolência e visão de mundo singular. Todavia, não encaremos nenhum destes elementos e características como obrigatórios, ou como fossem uma receita. O que mais me encanta nas possibilidades do que pode ser de fato o teatro contemporâneo é a vocação que nele encontro para rejeitar fórmulas e modos unilaterais de se pensar e fazer e criar realidades paralelas.

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No caso específico da peça O Butô Mick Jagger, há uma apropriação explícita tanto do Butô, de seus fluxos e suas contorções ritualísticas de acesso ao reino dos mortos, como também do universo pop sucateado que se vê no rock dito clássico e em dois de seus ícones, Mick Jagger e Kurt Cobain. A escritura do texto, digo, o desenho dele na página, mimetiza a dança, quero dizer, a forma como as palavras estão espalhadas ali sugerem ao leitor que são um corpo que está dançando. E foi daqui, do texto, que eu e as atrizes partimos, para logo ver tudo se complicar ainda mais na encenação.

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Identifiquei nos últimos cinco anos pelo menos uma tendência em Curitiba ao teatro narrativo, de personagens não delineados, pouca ação e uma relação diferente com o público. Como você percebe o teatro contemporâneo praticado na cena curitibana?

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De fato, o que você identificou é muito o que venho notando também. É claro que há uma tendência no ar, uma espécie de território reconhecível, comum a todos, de onde se parte para a tentativa de cada um em ser original, pessoal, singular. De qualquer modo, o que idealizamos jamais será o que de fato conseguimos fazer, então se admitimos que somos seres imperfeitos e diferentes uns dos outros, como não teríamos obras diferentes? Claro que o que se partilha sempre é defeituoso. Acredito que a consciência disso, a desistência de querer ser deus enquanto criamos, é o que nos aproxima de nós mesmos e do público e, por conseqüência, faz-nos originais. Admito, não falei muito objetivamente sobre a cena curitibana. Mas me pergunto se os que dentro dela melhor realizam o que se está chamando de teatro contemporâneo, não são justamente os que, de um modo ou de outro, se relacionam madura e ousadamente com toda essa confusão entre ideal e forma, desejo e frustração. É um jeito meu de ver as coisas, certamente muitos pensam diferente. Que bom.

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Quem são os grupos ou diretores que se movem nesse sentido e quais as questões ou tendências mais visíveis?

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A julgar pelos trabalhos da Companhia Silenciosa, do Heliogábalus, da Cia. Senhas, da Companhia Brasileira, Obragem, e Marcos Damaceno Companhia de Teatro, e da 1801, da Armadilha, Teatro de Breque, Pausa, Transitória, Súbita, Acruel, Subjétil, e o Couve-flor (algumas nomes que lembrei de cabeça agora), não há dúvida, temos uma cena com foco no contemporâneo admirável. Cada uma destas companhias tem pesquisa própria, com ênfase em aspectos diferentes (performance, texto, rito, música da fala, criação coletiva, etc), mas que se tocam e se irmanam. Sinceramente, estamos muito bem servidos. Quem acompanha estes grupos reafirma para si a todo momento que, de fato, não há formulas nem regras obrigatórias. São coletivos que se empenham na missão de não permitir que o teatro seja um museu tomado por tédio e mofo. Apostam que a comunhão em tempo presente, o que vem sendo chamado de presentificação, o compartilhamento, a interação, numa época em que somos multidões de sozinhos, quem sabe auxilie na tentativa de se devolver a humanidade ao humano.

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O público curitibano processa bem essas novas linguagens ou o espectador médio da cidade ainda se mostra atrelado às concepções aristotélicas ou de um teatro moderno? Isso prejudica a fruição das peças?

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Tenho a impressão que todas estas características que se revelam no teatro contemporâneo inevitavelmente refletem o modo de ser do homem contemporâneo, que é fragmentado, sem certezas definitivas, suspenso entre as necessidades básicas e a alta tecnologia, etc. Daí que entendo que o teatro que muitos de nós tem tentado fazer, por levar isso tudo em conta, apresenta um grande respeito pelo individuo e suas particularidades (por que não dizer também subjetividades?). Assim, quem sabe, estejamos conseguindo ter um teatro um pouco mais democrático, o que respeita o indivíduo justamente porque é o que implica o individuo, então, se os conteúdos implicados reverberam, naturalmente se sociabilizam. Parece-me que essencialmente é isso o que temos de diferente do teatro atrelado meramente à noções aristotélicas, e daquele cujo objetivo é provocar uma identificação no expectador com a exposição de uma fatia da vida espelhada. Sabe, tenho uma tendência a superestimar o público. Quero crer ainda nos espaços do instinto, dos sentidos que pensam antes que o cérebro. Como disse Fernando Pessoa, a inteligência é um instinto. Claro que uma minoria do público domina o repertório técnico teatral para que se cobre dela maior atenção com a cena da cidade. Mas é evidente também que toda pessoa que se coloque em situação responderá de algum modo ao que é proposto. Sou otimista em relação a isso. A pergunta é: será que os que propõe estão preparados para uma abertura real, digo, para tratar a platéia como platéia atuante? Aqueles que disserem sim verdadeiramente estarão derrubando uma série de tabus, preconceitos e medos. De todo modo, é certo que o teatro será para sempre um bicho estranho, e eu acho bom que assim se dê.

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E Leprevost acrescentou:

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Certamente que o teatro será para sempre um bicho estranho (e eu acho bom que seja assim). Um ornitorrinco é um bicho estranho e nem assim deixa de ser algo de nosso mundo. Além do mais, se é tão incompreensível, por que minha vizinha, que nem sequer ouviu um dia falar em arte, tem um bicho desses dentro do apartamento dela?

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Sou o tipo de dramaturgo que escreve seus textos geralmente antes de começar os ensaios. Muitas vezes, para ser franco, nem tenho ensaios à vista, escrevo sem saber se um dia virei a ser encenado. Mas não quer dizer que eu seja um autor de gabinete (forma pejorativa com que alguns se referem aos dramaturgos) e que meus textos não possam sofrer alterações durante os ensaios para que se chegue, de comum acordo, no que é idealizado pela direção e elenco, especialmente quando sou eu mesmo o encenador – o que é raro.

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Sabe, o que idealizamos jamais será o que de fato conseguiremos fazer. A obra que se partilha, seja durante os ensaios ou mesmo depois da estréia durante a temporada, sempre é defeituosa. . Não sei se acredito ser possível mudar o mundo por meio do teatro. Mas tenho fé na interação. E interação, numa época em que somos multidões de sozinhos, quem sabe auxilie na tentativa de se devolver a humanidade ao humano.

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Não aconselho você usar os elementos que se estuda em oficinas de dramaturgia contemporânea todos eles em uma única obra. Seria até ingênuo, pois ninguém dá conta disso. É mais prudente e eficaz escolher e aplicar um ou outro procedimento de criação e construção. E, mesmo assim, pode ter certeza que se o texto for potente, se tiver algo ali a mais do que palavras amontoadas, tomará vida própria e fará o que quiser com você. Sim, (já foi bastante dito, não é?) são os textos que nos escolhem e nos escrevem, não nós a eles. A técnica então deve ser estudada apenas para não atrapalhar a mão, que quer ser selvagem.

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Apropriando-se da máxima de Godard, pode ser dito que o teatro contemporâneo não é o sangue, mas o vermelho.

2 comentários:

  1. leprevost, aquele pequeno parágrafo sobre o ornitorrinco, a arte e a vizinha é um pequeno conto que vc colocou aí na sua fala? parece um conto - e dos bons!

    madeira.

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  2. LF, desculpa falar aqui mas é meu único canal com vc. Fez outro twitter ou deixou pra lá? O caso é que li um conto de Rubem Fonseca ontem e me lembrei terrivelmente de sua pessoa. O conto: ***(Asteriscos). O livro: Lúcia McCartney. Bjs, Vanessa Porfirio.

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