quinta-feira, 10 de maio de 2012


Abro a porta e entro. Fim de tarde, não bate sol, o apartamento é um freezer. Acendo a luz. Largo o saco de pães na mesa de toalha florida. Tiro a japona. Passo a mão no excesso de água da cabeça. Enxugo na calça. A xícara. Abro a garrafa térmica e me sirvo. Arranco um pedaço do papel toalha. Assôo o nariz, estou gripado. O corredor e o escuro quarto. Olho uma foto minha em um dos porta-retratos: três anos de idade, bermudinha preta, coxas grossas, joelhos engruvinhados, meias brancas, sapatos tipo botinha ortopética, camiseta azul escura por baixo do casaquinho de fio. Em outro, o meu aniversário de nove anos. Todos nós sujos e suados de correr pela chácara, terreno protegido por pinheiros. Finais de tarde úmidos de sereno, com a pândega de quero-queros tristes dentro do rigoroso inverno. E as lavagens dos porcos que a gente fazia com os restos que sobravam dos restaurantes do bairro. Nauseavam-me. Gostava de olhar a geada pela manhã. Eu não chorava, nada no mundo era uma resposta. Vô Breno nem bem acordava e eu: por que temos que preservar essas bobagens arcaicas, o mundo não é mais assim, existe o açougue, por que temos que criar porcos e então matá-los? Para sobrevivermos. E a temperatura baixando cada vez mais. Eu demorava até me decidir mover da cama, meus membros a trincarem como gelo. Na foto estou comendo pão com linguiça e meu pai a beber com obstinação, Tadeu segura uma bola de couro com os pés e ao fundo Elza da um tchauzinho enquanto ia arrumar os talheres na mesa, colocada no jardim. Neste aniversário, vô Breno me deu uma caixa de ferramentas. Aos poucos a fui equipando. Era um investimento à médio prazo. Tadeu e Camilo, quando chegaram nesta idade, também ganharam as suas e rapidamente aprenderam a diferenciar os tipos de madeira. Aprenderam como protegê-las para que não estragassem. Quando uma vez a tábua da cozinha onde eram amassados os pães quebrou, Tadeu, de um dia para o outro, confeccionou uma nova, de qualidade superior a que havia estragado. Ele se vangloriava por saber confeccionar banquinhos, criados-mudos, armários com perfeição. Mesmo que ninguém perguntasse, explicava, repetindo ensinamentos do vô Breno: a madeira, apesar de sólida, é de fácil manejo, é elástica, está viva. Como marceneiro a única coisa que consegui fabricar foi um banquinho com pernas assimétricas. Gostaria de falar mais detalhadamente sobre a tradição de marceneiros na família. Mas não saberia. De vô Breno, sim. Ele era mais carinhoso que um edredom. Distribuía abraços e sorrisos. Vô Breno era uma árvore, cada passo seu movimentava raízes. Esta árvore, um marceneiro primoroso. A marcenaria é dar forma à loucura da natureza, dizia. Este aniversário ficou marcado porque incendiamos o galpão da chácara. Tadeu roubou um charuto do meu pai: é o meu presente para você, me disse. Chupei o charuto e tossi feito um tísico. Quando voltei a mim, o fogo crescendo nos fardos de jornais que minha mãe armazenava para o inverno. Com uns vinte fósforos acesos ao mesmo tempo, Tadeu tinha feito o estrago. Meu pai roncava os efeitos do vinho no sofá da sala. Vô Breno colocou as mãos na cabeça e só as tirou depois que a situação foi controlada. As mulheres da casa, foram elas que, com baldes e a mangueira do jardim, não deixaram o incêndio se alastrar. Ninguém se feriu. Eu levei toda a culpa e Tadeu saiu de vítima. A memória é um galpão incendiado. A saudade, as cinzas. Meu quarto está uma bagunça. O apartamento precisa de uma faxina. Tiro os tênis, me dispo. O frio, agulhas menores que pulgas, a me entrar na pele. As meias ficam. Um pouco depois da época das bermudinhas pretas, ficava descalço no inverno para afrontar os pais. E vó Bia nervosa, para minha mãe: olha o menino pisando no chão gelado, Gica, vai ficar doente. Vó Bia, seus olhos tão claros, as mãos leves. Gostava da textura de sua pele. Visto o pijama. Nada guarda mais o meu cheiro que este pijama. Nunca gostei de usar roupas limpas, escondia-as para que Elza não as lavasse. Era como se sem aquelas roupas e o cheiro que nelas ficava eu nunca mais pudesse saber quem eu era. Vou até o banheiro, só agora lavo as mãos. Assôo o nariz com a água da pia. Enxáguo o rosto. Olho-me no espelho, tão distante dos porta-retratos.

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