quinta-feira, 4 de março de 2010

a ala dos desconsolados


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Meu amigo, o poeta mestre Ivan Justen Santana, tem feito uma série de traduções das poesias do Bob Dylan. Há um mês e meio mais ou menos, pedi a versão de Desolation Row, uma das canções do Dylan que mais me comovem. Generosamente, Ivan colocou mãos à obra, e aqui está, não poderia ser mais perfeito. Lá no blog dele estão outros clássicos do rapsodo norte-americano. http://ossurtado.blogspot.com/.

A ala dos desconsolados
(Desolation row)
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Vendem-se postais do enforcamento
Pintam-se os passaportes de marrom
O salão de beleza lotou de marinheiros
E esses dias o circo chegou
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Lá vem o comissário cego
Mantido em transe permanente
Uma mão atada ao cara da corda bamba
A outra nas suas calças de sempre
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E a tropa de choque está inquieta
Precisam ser movimentados
Enquanto Lady e eu observamos
Da Ala dos Desconsolados
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Cinderela parece tão acessível
“Os iguais se reconhecem”, sorri ela
E põe as mãos nos bolsos de trás
Feito uma Bette Davis Cinderela
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Entra Romeo, gemendo queixas
“Acho que eu sou teu proprietário”
E alguém diz, “Lugar errado, amigo,
Saia sem pagar de otário”
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E o único som que sobra
Após sirenes e ossos quebrados
É Cinderela fazendo a faxina
Na Ala dos Desconsolados
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Agora a lua está quase oculta
Estrelas se velam em segredo
Mesmo a dama que lê a sorte
Levou suas coisas pra dentro
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Todos menos Caim e Abel
E o corcunda de Notre Dame
Todos estão fazendo amor
Ou esperando a tempestade
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E o Bom Samaritano veste-se
Tomando todos os cuidados
Ele vai sair no desfile desta noite
Na Ala dos Desconsolados
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Ofélia está embaixo da janela
Confesso que temo muito por ela
Após completar vinte e dois anos
Já é uma solteirona velha
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Pra ela, a morte é bem romântica
E ela veste um colete blindado
Sua profissão é a sua religião
Sua inação é o seu pecado
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E embora ao arco-íris de Noé
Os olhos dela estejam fixados
Ela gasta seu tempo espreitando
A Ala dos Desconsolados
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Einstein, disfarçado de Robin Hood
Leva as memórias num baú
Passou por aqui uma hora atrás
Com seu amigo, um monge cru
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Parecia tão imaculadamente assustador
Enquanto filava um cigarro
E aí saiu farejando canos de esgoto
E recitando um ABC bizarro
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Você nem se incomodaria em vê-lo
Mas ele já foi famoso por esses lados
Tocava um violino elétrico
Na Ala dos Desconsolados
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O Dr. Sujeira mantém seu mundo
Dentro dum caneco de couro
E todos os seus pacientes sem sexo
Querem estourar aquele couro
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A enfermeira, uma triste qualquer
Administra o cianureto aos traumas
Ela também guarda os cartões que dizem
“Tende piedade desta alma”
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Eles todos brincam com apitinhos
Pode-se ouvi-los a soprá-los
Se esticar a cabeça pra fora o suficiente
Da Ala dos Desconsolados
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Do outro lado da rua, pregam cortinas
E se preparam prum bacanal
Pois então é o Fantasma da Ópera
A perfeita imagem sacerdotal
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Alimentam Casanova às colheradas
Pra ele se sentir mais à vontade
E aí o matarão de autoconfiança
Depois de o envenenarem com frases
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E o Fantasma grita às magricelas
“Sumam daqui os que ficaram abalados
Pois Casanova foi punido por ter ido
À Ala dos Desconsolados”
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Agora à meia-noite todos os agentes
E a equipe de super-homens
Saem à cata de todas as pessoas
Que sabem mais que os supers podem
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Então levam-nas até a fábrica
Onde a máquina de enfarte
É afivelada aos ombros delas
E logo depois eles trazem
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O querosene dos castelos
E dos Seguros os homens magros
Vêm conferir que ninguém escapa
Da Ala dos Desconsolados
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Seja louvado o Netuno de Nero
O Titanic navega à aurora
E agora todo mundo grita
“De qual lado você mora?”
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E Ezra Pound e T. S. Eliot
Lutam na torre de controle
Enquanto calipsocantores riem deles
E pescadores trazem flores
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Ali entre as janelas do oceano
Onde sereias têm seus prados
E ninguém precisa pensar muito
Na Ala dos Desconsolados
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Sim, recebi sua carta ontem
(Foi quando quebrou a maçaneta)
Me perguntar se estou indo bem
Foi algum tipo de brincadeira?
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Todos esses que você menciona
Sim, eu conheço, são uns toscos
Tive que lhes dar nomes diferentes
E rearranjar todos os seus rostos
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Agora eu já não leio mais tão bem
Não mande mais estes seus recados
A não ser que sejam remetidos
Da Ala dos Desconsolados
Bob Dylan
Versão brasileira: Ivan Justen Santana

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