sexta-feira, 28 de maio de 2010

conto de paulo sandrini

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Deviam ser "belos dentes"
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Você já teve uma pessoa amada
Sim, uma pessoa amada
De quem você acha que conhecia tudo
Sobretudo o corpo?
Mas não
Não conhecia
Você já teve uma pessoa assim?
De minha parte, digo que sim
Sim, já tive essa pessoa
E achava como muitos acham
Que conhecia tudo nela
Mas não
Eu só achava
E achar é uma besteira
Nessa coisa de achar
A gente sempre se perde
E ao se perder fica no escuro
É, no escuro
E o meu escuro
Um escuro constrangedor
Nesse caso
Era
Ou melhor
Foi
O escuro da boca
Sim da boca dessa pessoa amada
E era uma mulher como poucas
No que diz respeito à compleição física
Vamos dizer assim
Feito um escritor preguiçoso escreveria:
“Era uma bela mulher”
O adjetivo belo serve para muitas coisas
Inclusive para dizer que as coisas são belas
Assim é mais fácil:
“Era uma bela mulher”
E pronto!
Zaz!
Lança-se mão de um recurso fácil
E tudo se resolve
“Bela”
“Uma bela mulher”
Ou “uma bela paisagem”
Ainda: “uma bela imagem”
O.k.:
Era uma bela mulher
Se assim o leitor prefere
E ponto
.
Para poder voltar ao ponto
O ponto que me incomodava
Naquela relação em que as bestas humanas
Acham que conhecem tudo da pessoa amada
Mas no fim conhecem pouco
Às vezes nada
Ou quase nada
Então nada
E nada
E morre nessa praia
Que se chama “praia do conheço minha amada”
Ou amado, se o leitor ou leitante
For de gênero feminino
O gênero é algo muito
Muito
Mas muito importante em literatura
Não sei se é importante quando se trata do leitor
Mas bem que poderíamos ter lá
Nas disciplinas da pós-degradação em letras
Uma tal, chamada: Estudo de gênero do leitor
Ou leitora
Ou da leitante
Ou da leitante lactante
Qual uma indispensável subdivisão
Dentro do gênero “Leitor(a) feminino(a)”
Se a leitora estiver lendo e amamentando
Ao mesmo tempo, é claro
Porque se for
O gênero leitor
Apenas no masculino
“O Leitor”
Isso nos faz supor que é apenas
Um estudo de gênero do leitor homem
Com H ou com M
De Macho
Assim mesmo:
Com M maiúsculo
Ou não
Pode ser também com minúsculo: de machinho
machinho também serve
Machões não leem
Os machinhos podem até ler
Acho que os machinhos leem
Os machinhos baixinhos leem
Usam óculos
Vestem terninhos elegantes
Papatinhos envernizados
E calças com preguinhas
Tudo para impressionar os leitores
Leitores de gênero feminino
Ou leitoras
Ou leitantes
Ou leitantes lactantes
Como você, senhorita, senhora
Madame, moça quiser
Os machinhos baixinhos leitores
São assim
Às vezes eles nem são baixinhos
Nem carequinhas
Mas por complexo e autoafirmação intelectual
Usam óculos
E eles andam por aí
Nos corredores das universidades
Lendo muito
Lendo ao descer as rampas entre os andares
Os andares da universidade
Leem na rua, caminhando
Leem no banheiro
No elevador
Leem até quando estão dirigindo
Seus carros comprados com o salário
Bem pago pelo governo
E do qual eles sempre reclamam
Eles leem
Afirmo: eles leem
E os leitores do gênero feminino?
Bem do gênero feminino
O que nos interessa aqui é outra coisa
A parte desconhecida da pessoa amada
Nesse caso, reitero:
Pessoa amada do gênero feminino
De quem eu supunha conhecer tudo
E nessa coisa de achar
A gente sempre se perde
E ao se perder, fica no escuro
Pois então, hoje me encontro no escuro
No escuro da boca dela
Rememorando os fatos
(Sexo
Beijos
Abraços
Amassos
Conversas
Brigas
Ou seja: essas coisas que envolvem os corpos
e sobretudo as bocas)
Me detive no seguinte e intrigante ponto:
Nunca vi os dentes daquela minha pessoa amada
Seus lábios eram grossos
Salientes
E sensuais
E isso fazia com que eu me esquecesse
De detectar o que havia por trás daquela
Massa de carne delineada em lábios
“belos lábios” diria, só pra economizar analogias,
metáforas, sinédoques, metonímias, essas porras todas
de figuras de linguagem
“Belos lábios” ela tinha
E eram grossos
Carnudos
E era bom beijá-los
Mas eles tinham uma função muito específica
No caso específico daquela pessoa amada:
Ocultar sua arcada dentária
Lá dentro, e disso jamais me esqueço,
Era puro breu
Nunca enxerguei nada
Se eram brancos
Os dentes
Ou amarelados
(Ela fumava)
Ou mesmo se tinham falhas assustadoras
Se lhe faltava algum molar
Incisivo
Canino
Felino
Bovino
Equino
Ou seja, tudo que fizesse
Ou permitisse
Morder
Mascar
Ruminar
Concluir esses atos de voracidade
Que fazemos com as bocas se temos os dentes
Pois se os temos, tudo fica mais fácil, claro
Em se tratando de:
Voracidade
Mas aqui, no meu caso,
Se trata de vertigem
O escuro da boca dela, por trás dos lábios
“Belos lábios”
Me causava uma sensação de estar caindo
Caindo num buraco sem fundo
De um negro caudaloso
Apesar de saber que possuia dentes
Sim, possuía
E me parece
Na quantidade exata
Sem faltas
Falhas
Mordia meus lábios e minha língua
E eu sentia que ali havia dentes firmes
Dentes de verdade
Mas e a cor?
E a forma?
Em que fôrma foram forjados?
Tinham cáries?
Ou seja, pequenos buracos negros dentro
De um grande buraco negro?
Fato é que
Disso já não posso mais dar conta
De saber dos dentes
Dos dentes da pessoa amada
Pois no dia em que ela desapareceu
Numa noite escura levando
Consigo sua boca negra por dentro
Tempinho depois foi assassinada
O corpo queimado
Achado dentro do carro
O carro dela
Sim, era o carro dela
Mas o corpo
O corpo carbonizado
As digitais não existiam
Só sobrava a arcada dentária
Para o reconhecimento
Do corpo da minha amada
Problema foi que as únicas
As únicas
Únicas
Coisas que os bandidos levaram
Foram seus dentes
E mais nada
Deviam ser “belos dentes”
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Paulo Sandrini

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