.....Hora do almoço. Pizzaria Itália. Rua Carlos de Carvalho, meia quadra abaixo da Biblioteca Pública. Debruçado no balcão de alumínio, como uma fatia mussarela, massa grossa. Olhando os azulejos brancos com motivos amarelos nas paredes, como segurando com as mãos, me lambuzando com a gordura do queijo. Tenho pressa. Por quê? A ansiedade, a angústia. Saio da Pizzaria. E caminho. A gordura pesa em meu estômago. É sexta-feira, a cidade e seu típico cheiro de festa junina no ar. Atravesso a Praça Osório. A feira apinhada de gente. O vento, leve feito beijo de mãe. Estou lembrando de quem descendo e tento fingir que posso ficar em paz. Não espero o destino feito esperasse o troco. Sinto saudade dos velhos da família que aos poucos foram saindo de cena, fugidos da vida para dentro da terra. E assim será conosco. Nascemos de novo dos nossos filhos quando nossos filhos nascem, dizia minha mãe. Os Brennelli, dizia, descendem de rezas. Sinto muita falta dos aromas da cozinha da chácara. As massas e carnes. A galinha de panela, a polenta. Os bolos. Os cheiros invadindo a casa toda. Impregnando nas cortinas, toalhas, roupas de cama. Estou pensando no dia em que meu pai passou a beber com obstinação. Sabendo da presença assídua de Tadeu e Mana, eu quase nunca aparecia. Mas agora era diferente. Comíamos ruidosamente, falando pouco, menos que os talheres e os pratos. Eu já não morava mais na chácara, desde a época da faculdade. Tatá e Mana também viviam em sua própria residência, num condomínio próximo ao Parque Barigui, desde o casamento deles. O casamento em que não fui. O casamento que me fez rastejar feito um asqueroso roedor por ambientes sórdidos em busca de consolo. Como se álcool, crack e lençóis manchados pudessem servir como substitutos. Mas não. Por causa disso, ainda hoje falo baixo, como alguém que não quer espantar as ausências. Como quando criança, na época em que eu achava que sussurrando a gente podia falar com Deus. A ausência é modo mais eficaz que Deus tem para provar que não existe. Os ausentes são o impossível. Por isso me perco ainda hoje em túneis de neblina, soterrando o amor que não deu certo. Se às vezes o amor é menos que uma piada de mau gosto, noutras ele é a desgraça. Não penso no que dançou dúzias de rosas. Nem naquela que com risadas não permitiu mofar meias de seda. Ou no que palmilhou estriptosas canções de areia grossa e danças. Nem penso numa espécie de armistício. Ou ainda na corriqueira hora do lanche de corpos que se comem. Não. São as traças sem vagido, piolhos, lêndeas, pulgas, os mais ínfimos, pífios, nulos seres que comparo ao meu amor falhado. E ainda me pergunto como anda sua vida. Será que seu marido cuida bem de você? Será que a ama do jeito certo? Qual é esse jeito? Será que você sente muita saudade dele no verão, quando fica a semana inteira com os filhos num apartamento na Praia Mansa, em Caiobá, esperando ele chegar na sexta-feira a noite, vendo-o partir na segunda por volta de cinco da manhã. E meus sobrinhos, eles terão puxado mais a mãe ou o pai? Você fala de mim para eles? A menina, você já está se vendo nela? Penso naquele outono quando, dois anos após seu casamento, você bateu em meu apartamento. E disse que estava farta, que não suportava mais minha família. Você estava farta dos Brennelli, e correu para os braços de um deles. Por mais desgarrado que eu fosse, o sangue era o mesmo que dos outros. Sabe, o Tadeu chegou depois de mim em tudo e sempre se deu melhor. Era como eu fosse a cobaia, para então ele gozar tranquilamente. Você primeiro casou comigo. Mas foi com ele que jurou amor eterno. A aliança que você usa, veio dele. Com ele não foi uma mera brincadeira de criança, como você me disse certa vez. Sim, uma brincadeira. Foi no dia em que eu e meus primos nos vestimos com camisas com babado e gravata borboleta, confeccionados por Dona Zilá. Para o casamento de quem? Você veio em meu quarto, divina, com um vestido amarelo, laço nas costas. Os cabelos, o frescor do condicionador que você acabara de usar no banho. Minha mãe falou: o que é isso, Mana, vai de Botas Sete Léguas na festa? Olhei para seus pés e lá estavam, azuis, rudes, contrastando com a delicadeza do vestido. Meu sapato estava me matando, dona Gica, justificou-se você. Eu que há horas vinha brigando com minha mãe por causa do par envernizado que mastigava meus pés, corri colocar também galochas. Quer saber?, desisto de você, Jassei, gritou minha mãe, se quer ir mal vestido, vá, lavo as mãos. Sou o gato de botas, mãe, disse eu num tom brincalhão, exibindo-me um pouco para você, que riu. Eu queria mostrar que éramos cúmplices daquele crime de etiqueta. Onde já se viu ir a um casamento calçando Sete Léguas? Não nos importava muito se minha mãe já saia puta da vida em direção ao quarto dela praguejando: melhor eu ir ver teu pai, do jeito que vocês são, é bem capaz dele querer ir de botas também, aí é que todo mundo vai mesmo ter motivo pra dizer “esses Brennelli são um bando de jacus”. Eu tinha 12 anos, Mana, você 11, e o futuro inteiro pela frente. No entanto, nenhum de nós sabia ainda que há vezes em que o futuro é um desaforo para quem tem a alma rasgada feito um pano de chão, retorcida qual ferragens num acidente grave, esgarçada, um pedaço de bife jogado aos leões. E não só por isso a gente estava achando a cerimônia do casamento do Dr. Francisco muito chato. Fomos para o jardim atrás da igreja. Você olhou para meus pés, daí deu um chutezinho leve nas botas. Erguemos os olhos e eles quiseram falar algo muito íntimo, que só os seis (eu usava óculos de grau já naquela época) deveriam saber. E a sombra do futuro que, só hoje sei, é tudo o que gasta envelhece enferruja, moedor de ossos duros de roer. Sempre tem esses dias que são anestesistas de retalhos de histórias de amor viciadas em acabar e não ter fim, que são blues buracos negros dos quais a gente se embebeda de doses da noite branca feito gelo na goela. É assim, sequer notamos os olhos roxos saltando da cara, já nos acostumamos com hematomas latejando o futuro. De vez em quando nossos rostos sorriem sem nos darmos conta que estamos desfigurados. Mas naquela época ainda éramos bonitos e meu rosto sorria para tua boca, que veio e deu um beijo no meu rosto, bem no filé mignon da bochecha. Minha boca ficou com ciúme da bochecha e foi beijar a tua bochecha. Mas imediatamente tua boca avançou e entrou na frente, querendo mastigar meus dentes de leite. Aceita casar comigo?, perguntei. Você ficou um pouco de perfil, olhando de viés para mim. Era aquela hora do lusco-fusco. E você se destacava na tarde cinzenta feito um girassol, só que bem mais humano do que a maioria dos girassóis. Demorou mais do que eu podia aguentar para que viesse a resposta. Mesmo assim, temendo a negativa, aguentei. Os sinos da igreja começaram a ir para lá e para cá com seu blémblém. Por baixo daquele som condutor de milagres e glórias, veio enfim sua voz clara feito um copo de água: aceito. E foi assim que nós, crianças, casamos. Mas isso foi há tanto tempo. Bem antes do seu casamento. Aquele que você chamou de casamento de verdade. E esse era apenas um dos motivos que me faziam não gostar de ir à chácara. Ter que suportar você e Tadeu sorrindo de dentro de sua vida perfeita, que, eu e você sabíamos, de perfeita não tinha nada. Mas os almoços de sábado eram sagrados pra meu pai. E daquela vez estávamos todos um pouco mais animados do que nos últimos meses. O mínimo que eu podia fazer era estar lá, mesmo que dividindo a mesa com você e Tadeu. Claro que havia um constante clima pesado entre nós. Mesmo passados seis anos da noite em que eu e Tatá tentamos assassinar um o outro com socos, chutes e até faca em punho. Mas era minha obrigação de filho esperar unido à família a maldita doença aniquilar a mulher que me colocou no mundo e cuidou de mim.
terça-feira, 7 de junho de 2011
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