.....Apesar de quase não sair mais da cama por causa da doença, naquele sábado, contente com minha rara presença, esforçou-se para sentar à mesa conosco. O médico tinha dado a ela pouco tempo de vida. Naquele sábado, ela conversou. Fez graça. E sua risada, embora fraca, devolvia a nossa casa a aura que há tanto se perdera. Cabelos mal penteados. Ela cheirava a Leite de Rosas. Após nos fartarmos com a deliciosa posta acompanhada de spaghetti, tia Ruth perguntou se queríamos mais. Estou satisfeito, disse meu pai se servindo mais uma vez de vinho. Eu também estou, falamos quase em coro você, eu e Tatá. Minha mãe praticamente não tinha tocado na comida, mas também afastou o prato de si na direção da tia Ruth. Você não comeu nada, Gica, disse meu pai. Estou sem apetite, mais tarde como alguma coisinha. Tia Ruth raspou os restos de todos num único prato. E fez uma pilha colocando o que continha os restos em cima dos demais. Então levantou para levar a pilha para cozinha. Vou ajudar você, disse minha mãe. Não precisa, Gica. Sempre lavei a louça, Ruth, não vai ser agora que você vai me dizer o que posso ou não fazer. Meu pai tentou dissuadi-la. Não teve jeito. Ela seguiu tia Ruth. Você levantou e também foi para cozinha. A cabeça de minha mãezinha não estava boa. Ela vinha tendo lapsos de memória, apagões. Irritava-se com facilidade. A doença estava corroendo sua mente também. Na verdade ela raras vezes lavava a louça. Quem fazia isso sempre era Elza, que naquele sábado não estava porque tinha ido ajudar na Festa da Uva. Possivelmente minha mãe e tia Ruth estariam na Festa, como acontecia todos os anos, não fosse a adversa circunstância que se impunha sobre a família. Então alguns minutos se passaram e você voltou afobada da cozinha. Minha mãe tinha desmaiado. Acorremos em sua direção. Tia Ruth estava agarrada a ela no chão de lajotas. Saia uma espuma branca da boca de minha mãe. Meu pomo-de-adão inchou na garganta. Eu respirava ofegante. Meu pai carregou minha mãe no colo. Colocou-a com cuidado na cama do quarto deles. Onde meu pai já não dormia mais. Desde que a doença fora diagnosticada e minha mãe passou a exigir cuidados especiais, meu pai se mudou para o cômodo que fora meu desde há infância até o dia em que virei as costas para a família. Tia Ruth abriu o armário, pegou um edredom e pôs sobre ela junto com o cobertor que já estava na cama. Olhei para Tadeu e ele estava chorando, apertando os olhos com as pontas do polegar e o indicador para as lágrimas não lhe embaraçarem a visão. Ele e meu pai foram para a sala e começaram a ligar para o Dr. Francisco. Você sentou na beira da cama e segurou as mãos da minha mãe. De vez em quando soltava uma das mãos e ajeitava a franja de minha mãe. Tia Ruth fechou as janelas e acendeu o abajur. Saímos todos do quarto para deixá-la descansar. Jassei, vá chamar a Elza, ordenou meu pai. Peguei a chave da caminhonete dele e fui saindo. O Dr. Francisco já está vindo, avisou aos outros. Meu pai foi até o armário da copa, pegou e abriu uma garrafa de vinho e começou a beber. Ele nunca mais parou de beber aquela garrafa. Quando voltei com Elza minha mãe já estava morta. Tatá consolou tia Ruth após ela ter ligado para o padre João. Elza com toalhas e uma bacia de água quente lavou minha mãe. De joelhos ao pé da cama tia Ruth rezou e gemeu de dor erguendo as mãos para o céu. Dr. Francisco chegou. Tarde demais. Meu pai disse com qual vestido preferia arrumá-la. E você ajudou a vesti-la. Dr. Francisco assinou o laudo de óbito. Precisei sair de casa. Fiquei na varanda fumando. Padre João chegou, me deu os pêsames e entrou. Eu queria ajudar, mas não conseguia. Desejava ter feito algo por ela antes. Não fui atencioso. Não fui dedicado. Não fiz o que pude. Todos deram o seu melhor. Eu era um bosta. Por que ao menos eu não estava preparado? O que fazer com a necessidade de fazer as coisas diferentes se não sabemos nem para onde olhar? Se não sabemos quando será positivo pôr as mãos no bolso ou depreciativo acariciar o cão? O que fazer se não temos aonde ir senão às favas? Você veio até mim e colocou a mão no meu ombro. Em meus olhos derretendo com as lágrimas vi, como eles fossem um espelho, que você ainda me considerava um monstro. Eu queria abraçá-la com força e soluçar pedindo “por favor, me ajuda, tô desesperado”. Mas não. Você apenas disse: teu pai está chamando. E entrou. Estou vendo tudo isso. É tão nítido. Subo a Comendador Araújo. Sim, quem mais amava está comigo, na lembrança. Posso ouvi-los na sala a tagarelar, o hálito alegre falando sobre nada. Sempre fico melancólico nesta época do ano. Ouço os pingos na calha, a chuva de todos os meses. A chuva, o frio, a geada não me deixam esquecer. Não se pode prender para sempre os instantes. Que passem. Plenitude é o que vai, some. Esquecer talvez seja o jeito humano de guardar. Não quero reter os momentos de felicidade, como alguém que pretendesse o raro de si mesmo. A felicidade me atravesse, não como eu fosse um túnel, mas lama que não admite modelação. Atravesse, não suportaria encarcerá-la. A vida acontece conforme se sucede, não como preferimos. O tempo passa para fazer com que as pessoas amadureçam e se tornem melhores, mais justas, sábias, compreensíveis. Se você envelhece com pesares e lamentos, o futuro aparecerá como um serial killer, destruindo você para uma a uma das pessoas que ama. Talvez a maneira mais eficientemente tola de abjurar o passado seja não permitir que a vida nos faça esquecê-lo. Mana. Pensei que você tivesse esquecido totalmente de mim, quem dirá da data de meu aniversário. Mas recebi seu presente, com o cartão e tudo mais. Eu queria retribuir. Tinha que estar de cara limpa quando fosse vê-la. Não corto o cabelo nem faço a barba há meses. Escondo a pele demasiado branca sob meu modo rústico de sempre me vestir. Bem diferente das roupas de corte exato do Tadeu, que contrastam drasticamente com as peças quase rotas de nossa adolescência, o que, mesmo para quem não conhece nossas diferenças, faz com que visualmente as intua. Subo à pé do centro, onde moro, até a Pracinha do Batel. Uma quadra adiante, a barbearia do seu Paulo. Uma vez por mês, meu pai nos levava ali, aos sábados.
quarta-feira, 8 de junho de 2011
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LFL, todas as propostas para um despistamento do fato dado seria mera simetria olfativa de memórias bruscas, inconvenientes tratados ergométricos de hipóteses tântricas, ora neandertais, ora subjetivas. Qual seria a gênese probabilística calcada na infraestrutura apoteótica de sensibilidade verossímel, porém bulímica? Esse é o mundo subcapaz, inédito para ousadias mínimas e atrevimentos perpendiculares bissextos. Beijos idolatradinhos, você merece o ápice translúcido do nada.
ResponderExcluirLauro, diante dessas palavras só posso dizer muito obrigado. Abraço. Lepre.
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