quinta-feira, 9 de junho de 2011

.....Saíamos com ele pela manhã para ver amigos, ou ir a algum mecânico, ou ainda buscar alguma encomenda. Dava mais ou menos onze horas e a gente se dirigia à barbearia. Meu pai dizia: pode cortar bem baixinho. Entro. Dou bom dia. Seu Paulo não me reconhece. Fazia anos que não pisava ali. Sento. Ele joga o guarda-pó sobre mim. O que vai ser? Pode passar a máquina quatro, e a zero na barba. Terminaria o serviço em casa com a gilete. Seu Paulo insiste que será melhor passar a gilete ele mesmo, que já está com a mão na massa. Assinto. Ele enche meu rosto de espuma e começa a raspagem, enquanto conversamos. Ele se lembra do meu pai. Pergunta sobre ele, se está bem. Digo que meu pai já morreu. Ele lamenta. Seguimos conversando amenidades. Ao final me dá um desconto. Entro num ônibus e volto para o centro. Cabeça e barba raspadas. Sinto-me nu. Chego em casa. Respiro. Minhas pernas formigam, doem. O coração, um pouco acelerado. Bocejo sem parar, uma, duas, sete vezes. Meus olhos não admitem mais permanecer nessa dimensão. Não durmo há quase 42 horas. Vou me entregar. Não tenho escolha. Entro no banheiro e ligo o chuveiro. Tomo um banho demorado. Me visto com minha melhor roupa. O que você pensaria disso, Tadeu. E saio para almoçar. Mas é já fim de tarde na Boca Maldita. Então eu lembro, já almocei. Tinha decidido visitar Mana à tarde. Mais uma vez adiei. A última vez em que a vi foi quando sofreu o acidente. Lembro: intermináveis vinte minutos de espera. Não eram nada se comparados aos sete meses da sua permanência ali. Vinte minutos, e fui chamado. Colocaram-me um crachá e me conduziram pelos corredores com paredes de cor magenta. Esperei um tempo mais, diante de uma porta fechada, até que ela se abriu. Você estava fria, branca como uma paisagem coberta pela geada. Os curativos em seu rosto, que jamais voltaria a ser o mesmo. Na treva do quarto, desenhada por feixes de luz com partículas de poeira no ar, você levantou da poltrona e veio até mim. Por causa do excesso de medicação, você veio dando curtas braçadas no ar, debatendo-se, procurando talvez o modo como começar um abraço há muito não praticado. Sonâmbula, como se recortada pela iluminação da veneziana semicerrada dançasse sobre os seus outros eus, sobre aquela que um dia conheci e agora parecia morta de tão triste. Seu corpo me encontrou. E a força e forma, necessárias para o equilíbrio de quem se cola no outro, estavam em nós, depois de agoniados vinte minutos de espera. Que saudade, você disse e tossiu. Sabe, o cheiro de uma pessoa pode ser um desespero. O toque de uma pessoa pode ser um desespero. Até o desespero de uma pessoa pode ser. Que saudade, eu repeti. Por baixo dos odores de remédio, meu nariz que em outros tempos percorrera mesmo o seu avesso, reconheceu o cheiro, o sabonete, que era o mesmo. Ao me afastar um pouco pude estudar suas feições. Os cabelos curtos e secos como fossem trigais que há muito não bebiam chuvas e sol. Seus olhos, janelas com espelhos azuis que não permitiam ver o lado de dentro. E foi ali naquele quarto de hospital que você me contou. Apesar de ter sido difícil conversar com você, pois não havia palavra que não viesse fragilizada pela sua condição física. E, à minha revelia, você me obrigou escutar: Tatá tinha 18 anos recém feitos. Eu, 16. Era sábado. Você não estava em casa, Jassei. Se estivesse, provavelmente eu não teria ido. Tatá conseguiu que Seu Lírio emprestasse o carro. Fomos dar uma volta. Conversando, dando risada chegamos no centro. Final de tarde. Era verão. Eu estava vestindo camiseta regata e uma bermuda curta. Faltavam dois dias para o Natal. A Rua XV cheia. Os garçons trazendo chopes. As lojas anunciando promoções. Circulamos um pouco por ali. Subimos até a floricultura na praça ......................... Tatá me presenteou com um botão de rosa amarelo. Agradeci com um beijo na bochecha. Você merece muito mais, ele disse e me beijou na boca. Retribui. Então nos abraçamos. Ele estava tão cheiroso. Uma brisa geladinha começou a soprar. Meus braços e pernas se arrepiaram. Ele me enlaçou. Voltamos para o carro. Ele sugeriu que voltássemos para Santa Felicidade pela Rodovia do Café. É um caminho mais longo, eu disse. Assim a gente pode ficar mais tempo juntos, ele respondeu. Cortamos pelo Parque Barigüi. E entramos na rodovia. Quando me dei conta estávamos imbicados num portão de ferro grande. Um quarto, por favor, disse Tatá à atendente. Ela nos deu a chave, o portão se abriu e o carro avançou. Não acredito que você me trouxe num motel, que cara de pau. Quer ir embora? Vamos pelo menos conhecer o quarto, eu disse. Depois refleti melhor e falei: mas não vou fazer nada, não queira dar uma de engraçadinho. Você é quem manda, Mana, disse Tatá. Era a primeira vez que eu entrava num lugar daqueles. Meu coração latejava na garganta. O Tatá suava. Havia uma cama grande, espelho em todos os lados, um banheiro com banheira. É o mais simples, disse ele. Ficamos um tempo sem ação. Então ele foi até o frigobar e pegou uma garrafinha de vodca. Abriu e bebeu num gole. Daí pegou outra, abriu e me deu. Bebi no gargalo. Quis tossir, mas aguentei. Meus olhos lacrimejaram. Tatá se aproximou e nos beijamos. Foi me despindo. Me deixou só de calcinha. De repente me senti deslocada. Não era justo com ele, nem com você, Jassei. Ele me deitou na cama. Beijava meus peitos ao mesmo tempo em que ia se despindo. Eu era uma mentirosa. Ofegava. Ele tirou minha calcinha e veio. Devagar, pedi. Ele foi entrando aos poucos. Perdi a virgindade entre lágrimas, vodca e remorso. Mas querendo estar ali. E depois eu engravidei, não sabia se de você, ou se de Tadeu. Exatamente, Mana, como muitos anos antes mesmo deste episódio eu sempre esperei por você, por seu abraço, por seus beijos. Sempre esperei, mesmo quando minha boca se fez arma de caça que derrubava a presa de imediato onde eu fosse. Às vezes em que estive com outras, Mana, foram só porque não pude estar com você. E se outras bocas beijava, fazia com um beijo matemático, megálito, medroso. Nunca algo como naquela noite de nossa adolescência, em que você entrou no meu quarto para me devolver um livro e a gente começou a falar sobre a estória de Holden Caulfield, que me fazia lembrar o Tati. Foi assim: eu abri num leque as palmas das mãos e como colhesse um fruto grande segurei de leve seu rosto quente. Você beijou minhas palmas, a direita, depois a esquerda. Seus olhos umedeceram como se pupilas e retinas, aos poucos, fossem sendo sobrepostas pela luminosidade do abajur. Mas, de repente, passos imprimiram um peso e ritmo no assoalho que eu conhecia bem. Minha mãe com o camisolão que alcançava os calcanhares vinha pelo corredor. Você se escondeu atrás da poltrona verde musgo. Você não piscava. De apreensão, não respirava. Minha mãe entrou no quarto sem bater na porta: o que está fazendo que ainda não dormiu? Lendo, mãe. É muito tarde para leitores da sua idade. Já tenho 14 anos. Jassei, não me retruque. Só queria acabar o capítulo, mãe. E já acabou? Acabei. Então agora durma. Tá bem. Então me virei na cama dando as costas para ela do lado de fora da porta: boa noite, mãe. Durma com os anjos, filho. Apaguei a luz do abajur. E ela se foi. E você, meu anjo, lívida, saiu de trás da poltrona. Três anos se passaram desde aquela noite em que quase fomos flagrados. Então prestamos vestibular eu, você e Tadeu. E um dia você me disse que estava grávida de mim. E não quis contar para ninguém. E é um segredo que trago comigo até hoje. Sim, fomos juntos à clínica na Vila Isabel. Voltamos, você se recolheu em seu quarto, muito triste e machucada. Na manhã seguinte, entrou no meu quarto e disse que entre nós não existia mais nada. Um calafrio subiu feito peixe elétrico em minha espinha. Tentei argumentar, ponderar. Conversamos e era como mastigássemos os cubos de gelo de nossos laços sendo desfeitos. Você estava decidida. Três meses depois, você havia me trocado pelo Tadeu. Isso acabou comigo para sempre. Morar na chácara se tornou insuportável e me mudei para uma república, no centro. Passava os dias fumando maconha e lendo. À noite ia para Reitoria. Após as aulas, perdia-me por madrugadas que duravam finais de semana inteiros, no centro, nos subúrbios, nas praias, pelo interior do estado. Tanto vaguei sonâmbulo, maloqueiro, por entre os becos das bocas da carência, entre o cimento dos corpos das putas, que nunca me recuperei. Nunca me perdoei. E mesmo a perdoando, perdi você. E assim eternamente. Lembro de tudo isso ao mesmo tempo em que você me contava a história com Tatá. Mana acaba de me contar. Me contenho. Me seguro dentro de mim. Saio do quarto e pergunto a um enfermeiro: quanto tempo ela ainda vai ficar aqui? O enfermeiro encolhe os ombros e deita um pouco a cabeça para a esquerda lamentando. Saio do hospital. Será o amor uma espécie permanente de injustiça desejada?, penso. O primeiro a recuar, será esse o que mais ama? Chove. O céu não está nem aí para o insuportável sofrimento humano.

3 comentários:

  1. tô adorando o estilo dessa novela. vamos conversar mais sobre essas coisas todas... abx, det. linhares

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  2. Profundo! Viver é sentir e perder os sentidos.
    Não te dói quando escreves assim.

    Carmen (carmen@cvsite.com.br)

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  3. Ei detetive, que bom que tá gostando. Tô tentando fazer umas "coisas" na estrutura. Mas, pra mim, é tecnicamente meio complexo ainda. então tô aceitando que a intuição ajude também. vamos conversar sim sobre tudo isso e outro tanto. Pensei num QGzinho hoje, que tal? vou te ligar daqui um pouco. Abração.

    Carmen, dói sim. Dentro, metafisicamente, e também o corpo, a mão, pelo esforço físico que é escrever. Mas, sabe, é uma dor que é puro gozo. bj.

    Lepre.

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