terça-feira, 14 de junho de 2011

.....Hoje moro em cima da famosa e loquaz Boca Maldita. A Boca Maldita é uma espécie de clube da terceira idade. Clube, mas sem mensalidade e carteirinha, pois fica na calçada, na Rua XV, em frente ao prédio onde moro. Talvez seja ainda algo como um Senado, um Senadinho em que os frequentadores, músicos, comerciantes, juristas, políticos, jornalistas, em sua maioria aposentados, discutem política, futebol, sexo, contam piada e, até, fazem negócios. No meu apartamento, jornais, revistas e livros comprados em sebos dividem espaço com latas de suco e embalagens de comida pretensamente saudável. Faço alguns planos e de vez em quando dou umas voltas no Parque Barigüi. Noutras ocasiões, me perco na neblina de dentro dos próprios bolsos feito um chaveirinho separado da chave de casa. Tem vezes em que dou aulas particulares de geografia e história para adolescentes da sétima e oitava séries. Nos fins de semana peço pizza cortada em oito. Vivo na nave do sofá vermelho, ora dentro da novela pilotando a televisão, ora roncando baixo enquanto meus ouvidos se contorcem com uma canção fudidamente triste cantada por Nina Simone. Lá fora, buzinas e mais buzinas para que eu não esqueça onde estou. Janto sozinho. Posso lavar a louça agora ou mais tarde. Depois me dedicar a compreender de que maneira amanhã vou me reinventar. Praticamente não tenho e-mails para responder, telefonemas a atender. Tenho de ir ao banco para as contas de água, luz, gás. Farei isso amanhã antes do almoço. A cidade inteira vai estar lá pagando, depositando, sacando. Depois devo ir ao vegetariano (tenho evitado carne vermelha) comer repolho com molho branco. Tudo o que tenho para hoje à noite são dentes para escovar. Minha escova não é das mais macias, já me acostumei. Tenho que cuidar desse corpo que me presenteia com pequenas dores diárias. É verdade que já não posso estufar o peito, levantar a cabeça. Talvez nem mais seja preciso espelhos que me digam que há alguém a quem devo pedir desculpas. Você. Adoro as madrugadas, quando os gatos miam alto nos becos e ninguém presta atenção. Moro no oitavo andar do Edifício Tijucas, no miolo da cidade. E meu problema é que vivo mexendo num vespeiro repleto de insetos sentimentais, com ferrões que injetam o veneno da saudade. Olho uma foto minha no porta-retrato, tenho três anos de idade. Bermudinha preta. Coxas grossas. Joelhos intactos, engruvinhados. Meias brancas. Sapatos brancos tipo botinha ortopética. Camiseta azul escura por baixo do casaquinho de fio azul claro. Na mão esquerda, esparadrapo num dos dedos. Sou loiro, penteado para o lado direito. Olhos verdes. A boca num ângulo levemente emburrada. Narizinho assim. Rosto redondo. Bochechas avermelhadas, dá vontade de esmagar, diria minha vó. Estou no pátio de uma casa. Não dá para saber se é a nossa casa, a casa da infância. O chão se constitui de azulejos quebrados, colocados não como mosaico, mas aleatoriamente, ainda assim respeitando os encaixes. Atrás de mim há uma trepadeira verde escura, que importuna 90% da parede branca. E é só o que consigo ver, a mim na fotografia. Fragmento de paisagem maior e mais complexa. O que está fora do quadro gostaria de esquecer para sempre. Mas lembro bem que no meu aniversário de nove anos ganhei uma caixa de ferramentas. E aos poucos a fui equipando. Era um investimento à médio prazo. Tanto Tatá quanto Tati também ganharam as suas e rapidamente aprenderam a diferenciar os tipos de madeira. Aprenderam como protegê-las para que não estragassem. Quais produtos usar e como usar. Qual a melhor tinta a ser utilizada para a preparação das madeiras, as técnicas para se fazer decapê. Quando uma vez a tábua da cozinha onde eram amassados os pães quebrou, Tatá de um dia para o outro confeccionou uma nova, de qualidade superior a que havia estragado, que era obra de meu pai. Ali estava revelado o talento do meu primo. Diferentemente de Tati, Tadeu vivia se vangloriando por saber confeccionar banquinhos, criados-mudos, armários com perfeição. Não tardou até que fizesse a pátina melhor que o próprio vô Breno. Sabia usar como ninguém os berbequins. Aplicar os moldes para fazer perfurações. Era bom em laminação, compensados. Um talento nato. Como é que você consegue, Tatá?, eu perguntava. A madeira, apesar de sólida, Jassei, é de fácil manejo, é elástica, porque está viva, repetia os ensinamentos do vô Breno. Como marceneiro a única coisa que consegui fabricar foi um violino cuja acústica nunca se viu pior, com uma curva no fundo completamente tosca. E ali morreram minhas ilusões em relação a uma possível carreira musical, pois não era só o violino que era ruim, o violinista tampouco servia. Desacreditado da música ainda tentei mais um pouco investir na marcenaria, mas com a morte de Tati minha incompetência e consequente desinteresse só fez crescer. Sempre odiei as serras. Elas não tem como considerar se a madeira contém nós, partes falhas, áreas macias e outras mais duras. As irregularidades dos anéis de crescimento do tronco de uma árvore podem resultar em forças de desequilíbrio quando a prancha é serrada, fazendo com que ela tencione para dentro e para fora. Chovia naquela manhã de junho. Eu gostaria de falar mais detalhadamente sobre a tradição de marceneiros criada dentro da família Brennelli. Mas não posso, pois sou o responsável pela quebra de tal tradição. Sou o que não sabe absolutamente nada do ofício. E mais do que não saber, passei anos odiando a marcenaria com todas minhas forças, pois ela levou Tati de nós. Ele era o que sequer usava luvas para segurar espinhos. Tudo que sei sobre marcenaria é que a madeira também sangra. Sangra a madeira cerrada, lixada, empilhada. Naquela manhã Tati inventou de adiantar um serviço para meu pai, chegou antes que o restante do pessoal. Ligou a serra elétrica que, feito uma loba faminta, mastigou seu corpo. Não sei como aconteceu. Ninguém jamais saberá. A assassina serra circular cortou o braço. E entrou pelas costelas, chegando ao abdômen dele. Rompeu a alça intestinal. Atingiu o pâncreas. A dor e a hemorragia mataram Tati em minutos, nada pode ser feito. Por que você foi fazer uma bobagem dessas? O menino que nunca teve luvas nem armadura, agora retirava do próprio intestino oceanos marrons. A face trancada na respiração da dor, aguentou ainda por algum tempo, até desabar exangue. Vejo ainda seu corpo destroçado sendo carregado para a caminhonete, com seu velho pulôver azul, feito por vó Bia, não mais identificável, com urgência de hospital, porém, já morto. Tatá logo virou o braço direito e depois passou a dirigir a fabriqueta de móveis Brennelli, o que, na verdade, foi acontecendo da maneira o mais natural possível. Quando chegou a época do vestibular, fui ser jornalista. Ainda sou. Embora, cada vez mais preguiçoso. E que, no momento, após praticamente a redação inteira ter sido mandada embora, tem se virado como assessor de imprensa freelancer. Bom, mas me formei e depois quis fazer especialização. O jornalismo trabalha com a realidade de um modo que não me parece justo, dada sua insuficiência. Já que o registro de um fato é apenas uma das visões possíveis desse fato, então o jornalismo também produz peças ficcionais de algum modo. E se um jornalista começar a pensar assim ele será seduzido pela ficção e aí, quem sabe, se tornará antiético, porque um jornalista não pode escrever inventando, ele tem que acreditar piamente que aquilo que está escrevendo é o retrato fiel do ocorrido, ou então não será imparcial. Era um pensamento que me ocorria com frequência durante o período em que estive no curso. O duro é ficarem colocando goela a baixo regrinhas como cabeça, gravata, em perguntinhas como o quê, quando, onde, etc. O jornalismo para mim era inviável. A não ser que eu fosse uma espécie de Hunter Thompson, ou um Hemingway. Ficaram daquela época algumas aulas de filosofia, uma introdução à semiótica, o carinho por um ou outro professor, amizades que nasciam e acabavam em bares ao redor da faculdade. Mesmo morando no centro, não me transformei num urbanóide. Embora hoje tudo seja concreto e plástico, ainda sei ler a lição da terra no apodrecimento de um fruto ignorado na fruteira. Sei quão lógica é a natureza que amolece o coração da terra para fazê-la condutora da fertilidade. As correntezas dos mares qualquer marinheiro conhece. As correntezas da terra são tão complexas quanto, mesmo contendo menos movimentos. Respeito a terra, sei se tratar de nossa cama mais macia. A terra é o oxigênio das flores.

3 comentários:

  1. Luiz, descobri seu blog hoje e estou completamente maravilhado com o conteúdo daqui, coisa de primeira. O que achei mais interessante é o leque de sensações que você causa ao narrar, uma espécie de mistura, desabafo, devaneio e altas doses de realidade. Parabéns, a partir de agora sou um seguidor do seu blog.

    Abraços.

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  2. Aê, Luiz Felipe!
    Saudades, mizifio!
    Encaminho comentário do Raymundo Rolim.
    Bjo gigante,
    Bárbara

    Data: 26 de junho de 2011 03:28
    Assunto: [Curitiba é um copo vazio cheio de frio] Moderar: "Luiz Felipe Leprevost"
    Para: barbarakcorrea@gmail.com

    http://curitibaneando.wordpress.com/2011/06/11/luiz-felipe-leprevost-3/

    Email: beijosdaserra@yahoo.com.br
    Comentário:
    Bonitão: A gente não ia fazer umas canções no outono que a gente combinou no Kapelle? Pois bem, o outono já era. Podemos ao menos tomar uns tragos no inverno. GRannde abraço no amigo. Escreva-me.
    beijosdaserra@yahoo.com.br
    bjs em tu.
    Raymundo Rolim

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