.....Você não sabe mentir por muito tempo. Então o que você está fazendo agora? A falsidade é a mais perfeita denúncia. Banhos de fogo lavam mais do que água, mas o preço que se paga é muito alto. Vez ou outra queimamos as solas dos pés vasculhando bibliotecas de navios afundados, furamos as palmas das mãos com espetos, vazamos os olhos em tragédias gregas exemplares. Sempre que alguém está prestes a desesperar chora baixo, tranca-se num cubículo qualquer. E o dia lá fora não é exatamente um bibelô azulado e limpo que até parece de mentira. A nudez que encontro em mim corre feito um o rio e a cada dia me sinto mais feio a apodrecer. Então sons de alaúdes soarão em excessos de balbúrdia, que são o meio possível para contribuir com esquecimentos momentâneos. De resto, só as contrações inexprimíveis. E é isso o que você conhece porque é isso que existe. E é isso que existe porque é isso que você inventa. Uma nudez que vem por baixo da nudez. Os olhos abertos feito lanternas que procuram alguém perdido na escuridão, o céu lá fora. E esse alguém é você mesmo com olhos que também são lanternas a procura de alguém perdido na escuridão. Tudo como um apelo. No apartamento, livros e vídeos de histórias. Quem sabe nada disso seja possível ou verdadeiro, ou até mesmo plausível de ser cogitado. Você reconhece os silêncios cujos meandros não são perscrutáveis, eles desejam sair ilesos dali, mas se convenceram que a tua tartamudez é um privilégio porque podem bebê-la nessa tarde cinzenta do mês de julho. E é claro que há o risco de cães latirem no lado de fora. Me dá um só dedo de maldade e lavo as mãos. Sobreviver talvez não seja o mesmo que permanecer humano. Me dá um só dedo de maldade e... Não, isso não. Esquece. Não sou um canalha. Nem a porcaria de um robô. Que confusão dos diabos. Recebo um telefonema da tia Ruth. É esse quase estóico cidadão em quem você se transformou, o que entra em pânico ao ouvir o telefone soar. Você é justamente este, o que jamais será feliz. E você, o tolo, até poderia perguntar a cada um: o que é terrível, amigos? Para você? Você? E você? A resposta chegaria em uníssono: a treva tentando entrar por baixo das cobertas, criaturas bestiais do desejo a se proliferarem nas gavetas, lágrimas que rasgam as faces feito hélices de helicópteros, etc. Eis um rascunho do medo. O que é terrível? Só o que é terrível. Daí que você pode entender que tudo o que não for péssimo, desastroso, nauseabundo, será apenas o mundo se abrindo em bondade sem que sejamos capazes de descrevê-la em especulações sobre o amor simples, ou até mesmo nos darmos conta. E, afinal, talvez o bem jamais venha dos que se fecham em seus frágeis casulos. O que dizer dos que são eles seus próprios bunkers? É claro que a felicidade, esse último capítulo das sessões da tarde, é uma balela. Mesmo assim, apesar do clichê, é imperativo a todo momento nos perguntarmos se estamos ou não alegres e não esperar resposta alguma. E, analisando de longe, seguros (seguros?) em casa, termos a sensação que sem umas gotas de ódio ninguém teria conseguido. Recebo um telefone dessa minha tia: Jassei, há alguém interessado na chácara, um comprador em potencial, e eu estou cansada, aquilo virou um elefante branco, eu não tenho mais idade para me incomodar, Tadeu está na Europa, preciso que você cuide do assunto. Cuide do assunto? É com você que ela conta, com o que se decepciona consigo e vive patinando. Agora mesmo dá para ver seu rosto se retorcendo como se tivesse mascado limão. Tia Ruth fala rápido e alto ao telefone e eu não consigo entender, eu ainda nem acordei direito. Assim que faz uma pausa, pergunto: e Mana? O quadro dela é estável, Jassei, não podemos fazer nada, só esperar. E, como que liquidando o assunto Mana, ela volta imediatamente ao assunto chácara, como se fosse possível separar um do outro. Então você pensa em qualquer personagem da literatura com a qual tenha absolutamente se identificado. Eis, monstrinhos semióticos. Jamais serão felizes. Você os vê sussurrar entre lábios enquanto na sala do apartamento soa alguma balada do Nick Drake, pairando como morcego ferido sobre o tapete rubro. A chácara é um dos últimos bens restantes do espólio de nossa família. Por isso que, após a esbaforida intimação de minha tia, se antes de devolver o fone ao gancho tivesse caído no erro de não dizer enfaticamente um “sim, senhora, providenciarei tudo, pode ficar tranquila”, ela teria ficado uma fera comigo. O telefonema me angustiou. Cutucou com vara curta uma série de fantasmas. E agora já sou meu pai, a maneira abrupta com que minhas mãos acabam de abrir a porta fazendo o trinco sofrer, e o tambor dos passos dentro dos meus calcanhares a entrar nos azulejos da cozinha. E sou minha mãe, a música de uma voz violeta, os alarmes que há em mim, a cantiga de água que meu corpo embala. Agora meu primo, o modo e horário em que me sirvo no filtro, antes do primeiro gole, as tossidinhas, e o copo d´água escorregando da minha mão. E o outro primo, o mais novo, se dissimulo um acordar cantado por sonhos clarividentes. E então me sei nosso cão, perpetuando uma presença na casa com cheiros fortes e ganidos contínuos para lua. Então, sou meu avô chegado dos aperitivos pelo bairro aos sábados por volta de meio dia, o vozeirão, o jeitão de galã do interior com muitos braços e conselhos. E minha avó, se compreendo esse silêncio alargado no ar, ela chegada como se aqui não estivesse, tão digna na dor, tão adornada com flores, risos, brincos e colares. E sei que sou meus sobrinhos, pois só estou nascendo agora, amanhã, amanhã, amanhã. Vou acontecendo o que ontem me aconteceram, seres de meus outros aniversários, biologia, galerias do meu peito, meus múltiplos corações trovejando. A conversa com minha tia não foi amigável o quanto deveria entre um sobrinho e sua tia, talvez pelo fato de que em algum momento, sem esconder o tom de decepção, acabei perguntando: então vai ser assim, tia, vamos simplesmente vender o que restou da chácara? A chácara, a casa da minha infância. Abacate, mimosa, mamão e outras luas apodrecendo na fruteira. Damasco e castanhas nos potes pintados à mão por minha avó, senhorinha sem pressas. Na casa da minha mãe lavava a louça ela mesma e os pratos assobiavam junto com suas unhas que faziam isso por gratidão de anfitriãs, não por responsabilidade de funcionária. Minha mãe, tia Ruth e Elza não saiam da cozinha. Faziam o almoço de sábado sem nunca antes terem tido dores nas pernas. Eram as galinhadas caipiras, as macarronadas. Ou não havia final de semana, durante o verão, que minha mãe não reclamasse do cheiro dos peixes. Passava a manhã os preparando. Assistir a volúpia com que devorávamos as bandejas, reiterava a indisposição para alguns pratos. Mas no dia seguinte voltava à cozinha conviver travessas e panelas, ervas, molhos, pia, fogão à lenha. Minha mãe dava banho na gente com mãos de água que envelheciam 30 anos e depois não voltavam totalmente ao normal. Um de nós tossia e o termômetro era todo ele a casa da minha mãe. Esperávamos a Páscoa porque ninguém tinha desistido ainda, enquanto era tempo. Elza molhava as plantas cantarolando “cheguei na beira do porto / onde as ondas se espáia / a tua saudade corta / feito aço de naváia”. E tia Ruth vestia camisola, roupão de flanela e calçava pantufas. Uma ambulância passava ao longe, abafada pela chuva. Tomávamos chá, um antídoto contra a gripe. Sim, estou tentando, mas sou incapaz de confiscar as lembranças. Elas chegam. Vou pegá-las, fogem. Sei que conferíamos portas e janelas. E se a noite continha musgos, os olhos cansados da minha mãe também. É claro, Jassei, que vamos simplesmente vender a propriedade, ou, por acaso, você vai ficar com ela?, me disse há pouco ao telefone ti Ruth, que tanto me odeia. Ficar com ela? Coitado de mim, um pobretão, quase não tenho dinheiro suficiente para pagar o aluguel e me alimentar ao mesmo tempo, há meses que preciso escolher se como ou se continuo morando no meu quarto-e-sala precário. Ao menos se Tadeu, o rico da família, comprasse a propriedade, mas não pode sequer ouvir falar daquele, como ele mesmo chama, elefante branco. A velha chácara não interessa aos seus projetos. Lastimável no que ele acabou se transformando. Muito diferente de mim e meu pai no centro. Numa manhã de sábado. Ele me levando pela mão. Vamos entrar aqui, comprar um sapato para você. Compramos. Meu primeiro par, de couro – canoa em dia de chuva na Rua XV. Eu tinha oito/nove anos. Boca Maldita. O prefeito discursava idiossincrasias em um palanque improvisado. Homens públicos nunca serviram de bóia salva-vida. Meu pai conhecia o engraxate. Ele esfregava com ritmo o escuro dos próximos passos que eu daria vida afora. Chuva. Pano. Sapatos. A cadeira do engraxate era ilha no mar de transeuntes e ambulantes. Meu pai pagou. Levou-me. Paramos para um frapê na Confeitaria das Famílias. Com a imagem como que tive um alumbramento, sem pestanejar, observei um homem gordo que na mesa em frente olhava para um objeto de papel. Olhei os pés do homem, sapatos pretos, brilhantes. Um leitor?, perguntei a meu pai, que assentiu. Igual o vô Breno, completei. Saímos dali. Guarda-chuva aberto. A graxa preta nos meus pés exalava o sabor das longas distâncias. Voltamos para casa em Santa Felicidade pisando paralelepípedos encharcados. O que é raro, bem sei, atua com as mãos. Incrível, só não é ilusão a página trágica na qual o tempo nos rabisca. Raspa a neblina, traça rotas. Desenha feito aranhas que infestam com teias porões que não se querem esquecidos. O tempo, sim, sua ferocidade vem à jato. Inspiro fundo antes que me faltem escolhas. Posso até ter pressa, mas sei que não me ultrapassarei. Em certa altura a vida congestiona feito um nariz constipado, isso é que é. Os próprios familiares já disseram de mim: este é o que atravanca. Bem, cada um com sua fama. Devo ser o quê? Um colecionador de fragilidades naufragadas. Mesmo com sapatos bem engraxados? Agora, no lugar das mãos, também tenho pés. E com esses pés, de quatro, caminho pisando os olhos da terra, sugando seu sabor. E aqui, nesta terra, estão minhas tias, a avó na horta. Meus primos em meus olhos impregnados de um tempo que nem mais sei se radiante ou não. Pisco, esfrego o rosto como quando se acorda de um enterro, os olhos ardem. Nos salões da cabeça meu mundo particular pesa. Preciso espremê-lo como a uma esponja com água de anos retida. O coração é um vaso rústico arrebentado pelas raízes que não se contentaram com o espaço restrito.
sexta-feira, 10 de junho de 2011
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário