domingo, 3 de junho de 2012


*Fragmento de uma nova novela 
em que tenho trabalhado.

No visor do celular, a mensagem do Tadeu: às 10 horas, no meu escritório. Não existe lua quando olho pela janela do apartamento. A manhã virá, para os velhos do centro será o momento de ir a pé à missa. Na rua, ao longe, alarmes disparam, o vento lambe santinhos de publicidade no asfalto. A madrugada não é generosa com nosso sono. A chuva alaga a cidade. Minha memória afogada. Passaram-se anos, tudo o que tenho são borrões de rostos que acreditei ter visto dias seguidos no café da manhã. Vó Bia chegava, sentava e antes de se servir ia servindo todos os outros. Minha mãe colocava um pouco de leite na xícara dela, da tia Ruth e na do meu pai. Vô Breno já tinha se servido e no momento brigava com a manteiga, dura demais para passar no pão. Surgíamos nós vestidos com o uniforme da escola. Ao fim do café, Manoela levantava e ia rápido escovar os dentes, pegava suas coisas e tentava ajudar um pouco Elza lavar a louça enquanto nos esperava. A gente levantava e também ia escovar os dentes. Camilo era o primeiro a ficar pronto. Encostava-se na porta da cozinha e ficava assistindo a arrumação. A luz da manhã em cheio em seu rosto. Seus olhos claros ficavam ainda mais translúcidos e lhe davam o ar de um raro ser angelical. Vó Bia, uma espécie de prece, não completamente inaudível, um farelo de som, movia os lábios. A voz sibilante, o cabelo cinza, as magras mãos, a pele solta do tríceps, as pernas varizes prestes a arrebentar. Os chinelos ao lado da cadeira, no quarto. Deus cuida de tudo, ela dizia e ia perdendo os dentes nos intervalos de seus porca miséria. Os ausentes são o impossível. Quando criança, eu achava que sussurrando uma canção bonita a gente podia falar com Deus. A ausência é modo mais eficaz que Deus tem para provar que não existe. Toda noite volto trazendo uma sacolinha com filmes e algum livro na mochila. Fico lendo na cama, em voz alta, a distrair a insônia. Peço uma pizza, não toco nela. Folheio revistas. Livros comprados em sebos dividem espaço com latas de suco e embalagens de comida pretensamente saudável. Quando é tarde e finalmente estou faminto, o queijo parece um chiclete salgado. Posso lavar a louça outra hora. Lá fora, escuto o ônibus madrugueiro.  Buzinas, para que não esqueçamos onde estamos. Moro no oitavo andar. Nunca sei se está sendo uma noite difícil. O que tenho para hoje, dentes a escovar. Minha escova não é das mais macias. Onde os cachorros da vizinhança? Cansaram de uivar? Abro a janela. O ar é frio e no céu estão entediados anjos da guarda. Vem entrando a madrugada. Gatos miam nos becos, ninguém dá por eles. E estes gatos que ouvimos chorar de madrugada são a reencarnação de crianças mortas prematuramente. Estará Camilo entre elas? Chovia naquela manhã. Camilo inventou de adiantar um serviço para meu pai, chegou antes do restante do pessoal. A serra elétrica mastigou seu corpo. Não sei como aconteceu. Ninguém jamais saberá. A assassina serra circular cortou o braço. Entrou pelas costelas, chegando ao abdômen. Rompeu a alça intestinal. Atingiu o pâncreas. A dor e a hemorragia mataram Camilo em minutos, nada pode ser feito. Vejo ainda seu corpo destroçado sendo carregado para a caminhonete, com seu velho pulôver azul, feito por vó Bia, não mais identificável. Foi Tadeu quem logo virou o braço direito de meu pai e depois passou a dirigir a fabriqueta de móveis, o que, na verdade, foi acontecendo da maneira mais natural possível. Depois que Camilo partiu, tia Ruth entrava naquela espécie de transe de quem está fisicamente presente mas com a cabeça a flutuar no espaço de uma ausência. Deixo a janela aberta. Volto para o sofá, vivo nesta nave vermelha pilotando a televisão, ora roncando baixo. Tenho de ir ao banco para as contas de água, luz, gás. Não terei como fazer isso amanhã. Raspo a unha no visor do celular, a vibração da mensagem: às 10 horas, no meu escritório. Estou dormindo sentado, igualzinho o vô Breno nas tardes de sábado. A urgência não tem escolhas, por isso é burra. E eu? Sou como os pombos da Praça Osório tateando o chão.

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