sábado, 22 de janeiro de 2011

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Possivelmente os robôs
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Você não é a porcaria de um robô. O que fazer com a necessidade de fazer as coisas diferentes se não sabemos nem para onde olhar? Se não sabemos quando será positivo pôr as mãos no bolso ou depreciativo acariciar o gato? O que fazer se não temos onde ir senão às favas? Que confusão dos diabos. Você se decepciona consigo e acaba patinando. Agora mesmo dá para ver seu rosto se retorcendo como se tivesse mascado limão. Você não sabe mentir por muito tempo, a falsidade é a mais perfeita denúncia. Banhos de fogo lavam mais do que água, mas o preço que se paga é muito alto. Assim, vez ou outra, queimamos as solas dos pés vasculhando bibliotecas de navios afundados, furamos as palmas das mãos com espetos, vazamos os olhos em tragédias gregas exemplares. Sempre que alguém está prestes a desesperar chora baixo, tranca-se num cubículo qualquer. E o dia lá fora não é exatamente um bibelô azulado e limpo que até parece de mentira. E então virá a óbvia reflexão: santo Deus, não passo de um obsceno comedido. A nudez que encontro em mim corre feito o rio de Heráclito e a cada dia me sinto mais feio a apodrecer. Então sons de alaúdes soarão em excessos de balbúrdia, que são o meio possível para contribuir com esquecimentos momentâneos. De resto, só as contrações inexprimíveis. E é isso o que você conhece porque é isso que existe. E é isso que existe porque é isso que você inventa. Uma nudez que vem por baixo da nudez. Os olhos abertos feito lanternas que procuram alguém perdido na escuridão. E esse alguém é você mesmo com olhos que também são lanternas a procura de alguém perdido na escuridão. Tudo como um apelo. No apartamento, livros e vídeos de histórias. São coisiquinhas tão infantis a dividir prateleiras: odes mundanas de páginas apunhaladas que, para o bem de todos, jamais se farão compreender totalmente. E a filosofia então não significa mais que a escavação dos próprios pulsos em parágrafos apunhalados, frutos sanguíneos que em meio a nervos e cartilagens restituam a vida. Mas quem sabe nada disso seja possível ou verdadeiro, ou até mesmo plausível de ser cogitado. Então você pensa em qualquer personagem da literatura com a qual tenha absolutamente se identificado. Eis, monstrinhos semióticos. Jamais serão felizes. Você os vê sussurrar entre lábios enquanto na sala do apartamento soa alguma balada do Nick Drake, pairando como morcego ferido sobre o tapete rubro. Você reconhece os silêncios cujos meandros não são perscrutáveis, eles desejam sair ilesos dali, mas se convenceram que a tua tartamudez é um privilégio porque podem bebê-la nessa tarde cinzenta do mês de julho. E é claro que há o risco de cães latirem no lado de fora, assim como é possível que os pestinhas dos vizinhos da frente espionem o semi-sublime festival de ininterruptas e perfuradoras presenças fantasmáticas no bailado sutil das respirações em equilíbrio entre o chá quente e o bafio da fera humana em repouso quase absoluto, com o Uivo de Allen Ginsberg numa das mãos. É esse quase estóico cidadão em quem você se transformou. Justamente ele, o que jamais será feliz. Mas que bobagem tal estupidificado desejo, dirão os inteligentes. Felicidade é não precisar dela, mas isso qualquer leitor de revistas e livros de auto-ajuda já pensa, ou pensa que pensa. E você, o tolo, poderia perguntar a cada um: o que é terrível, amigos? Para você? Você? E você? A resposta chegaria em uníssono: a treva tentando entrar por baixo das cobertas, criaturas bestiais do desejo a se proliferarem nas gavetas, lágrimas que rasgam as faces feito hélices de helicópteros, etc. Eis um rascunho do medo. Mas essas são apenas suas mínimas dimensões, um nada de suas medidas. Então de novo você perguntaria, dessa vez (há muitos por aí, basta olhar) para um bobo de Shakespeare: o que é terrível? E ele: só o que é terrível. Daí que você pode entender que tudo o que não for péssimo, desastroso, nauseabundo, será apenas o mundo se abrindo em bondade sem que sejamos capazes de descrevê-la em especulações sobre o amor simples, ou até mesmo nos darmos conta. E, afinal, talvez o bem jamais venha dos que se fecham em seus frágeis casulos. O que dizer dos que são eles seus próprios bunkers? É claro que a felicidade, esse último capítulo das sessões da tarde, é uma balela. Mesmo assim, apesar do clichê, é imperativo a todo momento nos perguntarmos se estamos ou não alegres e não esperar resposta alguma. E, analisando de longe, seguros (seguros?) em casa, termos a sensação de que sem umas gotas de ódio ninguém teria conseguido. Mas conseguido o quê? Chegar a tal e tal e idade, já que elas são um pouco a idade de sua raiva, de seus lamentos, de seus arrependimentos, de seus amores. Sem isso ninguém, ou pode ser que alguns consigam, é possível, possivelmente, possivelmente os robôs consigam, os robôs e todas aqueles engrenagens a nos gritar que sim, que podemos, inclusive, anestesiar a realidade. E todos seremos nesse momento o espírito de Hamlet baixando feito um Exu nos motores das máquinas, nas engrenagens a contradizer qualquer ilusão dopada pelo fato de que não se sobrevive a tanto.

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