sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

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Dízimas periódicas
para Rogério Tostes
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Vertigem e para ela a mente era uma espécie de computador, música no ar e por dentro na musculatura tão frágil, tão frágil, tão frágil música, tão esquiva quanto central, na cidade da Lapa, naquela lindo teatro da cidade da Lapa.
Quando éramos noivos ele me levou a um concerto.
E desejo. E como voltar no tempo? E nada é inocente. E ela se virou na direção da vitrine da loja um bocado atormentada, não entendia a comoção que lhe dominara ao piano, seu olhar perdido no sol, no miolo que é o vermelho do sol, o vermelho a se pôr atrás da montanha verde musgo. Era a paisagem no enorme cartaz na vitrine de uma loja de calçados esportivos. E a matemática que também fora um esporte, mais que isso, sempre fácil, sempre ao alcance das mãos, do que desejassem os olhos, o estômago, o olfato, tudo o que se precisa para que os outros considerem como que a primeira riqueza em alguém, quer dizer,
a saúde vem primeiro, não é assim?
E tinha seu neto, o montanhista, era tudo o que queria da vida e estava longe da avó, também longe dela o seu filho, o pai do neto, e a nora, mãe do neto, viviam no interior de São Paulo, foram para lá com a garantia do emprego melhor na fábrica em que o filho, pai do neto, trabalhava, o filho engenheiro químico, bem criado por ela e por seu esposo, a nora porém uma maleducada ingrata, mas só com ela, com os demais não, a nora rica de nascença,
e eu?, perguntava-se.
Não, não tanto quanto a norinha, mas que não era nada, não para ela, apenas nora e só, e que lamentável, a nora fazia esportes e lipos e boutiques eram sua terceira casa, perdendo para a academia, a nora e sua saúde implacável, e ela, ela mesma, não a nora, ela, dias poucos atrás explicou ao médico, esportista também, o que considerava em relação a mente, sim, que para ela a mente era um sistema computacional, um tipo de computador desenvolvido qual procedimentos de seleção natural aplicada em demais campos da biologia e
uau, fez o médico, a senhora é cientista agora?
Não, não sou.
Não era, mas não que não possuísse algum talento nem que fosse o de se espantar, ao menos o de se convencer com artigos lidos na sala de espera do consultório daquele preguiçoso que fazia seus pacientes esperar mais de uma hora, e ele que não viesse agora com esse negócio de esportes, que ela estava por aqui com os esportes, e que ela era uma viúva e exigia respeito, mas o que o médico tinha com isso? Ela detestava suar, mas se era obrigada iria tentar, e o médico
ao menos trinta minutos por dia.
Ela já afinal estava com quase setenta anos.
68, retrucava.
Que seja, o médico já não conseguia ser simpático.
Ali estava ela diante da vitrine, a paisagem mais linda que vira nos últimos anos, em que país teria sido? O neto certamente estivera lá, durante todos esses anos em que ela fora absorvida pela música, o neto certamente estivera longe dela e a música, a música, a música, ela não era boa musicista, aprendeu o instrumento por ter facilidade em matemática e digitação, não por aptidão musical, ter talento não lhe coubera, esforço sim, o piano dela era um pianinho que se tornou um vício masoquista quase secreto, um secreto modo de ficar sozinha, talvez porque quando adolescente era triste e feia, era assim que se sentia e queria. Então aquele teatro da Lapa e eles fizeram amor e doeu nela, no hotel, na cama do hotel da Lapa e fazia frio e ela não queria mais estar sozinha, ele a abraçou por trás e ela soube como era bom e ela nunca mais quis que ele saísse dali e seis anos depois ele morreu, sim, enforcado, então ficaram ela e o bebê, o filho que anos depois foi embora para São Paulo estudar, o filho que tem um filho que foi ser montanhista e agora parece que está numa aventura pelo deserto beduíno, e ela mais sozinha do que nunca, sem talento para música, tendo para si somente a música e de si a música a oferecer. Dava aulas particulares por prazer, não pelo dinheiro, ela era pianista e não precisava de dinheiro, seu pai , querido pai, deixara uma pensão gorda, seu gordo pai, bondoso pai que permitiu que ela fizesse o que gostava e nada mais desde pequenina, seu pai num escritório bonito, duas poltronas de couro, poltronas marrons, onde ela ia dormir toda encolhida com seis, cinco anos e agora era ela ali naquele shopping impessoal onde trabalhava, talvez não dê para dizer que fosse um trabalho, de pianista, talvez chamar de hobby, muito mais, por que estas lágrimas logo agora aqui no shopping como nas épocas da poltrona do pai? Não fosse a boa aposentadoria herdada. Couro marrom, e sua mãe vindo lhe chamar, sua mãe vindo em silêncio, ela está neste shopping uma vez por semana, todas as semanas, faz sua caminhada diária, e no dia em que vem ao shopping a caminhada é vir ao shopping, é vir da Praça do Japão até o shopping. Para ela aqueles eram bons dias, ela não tinha do que reclamar, fazia sua caminhada, o médico sorria na consulta e pronto, não tinha do que reclamar e não reclamava, os dias em que ia voluntariamente tocar no shopping, na ala reformada, na parte nova,
eles colocaram um ótimo piano, a acústica é uma tetéia, ninguém presta atenção.
Ela seguia em seu masoquista prazer, e voltava de táxi para casa uma hora e meia depois de ter sentado e feito soar a primeira nota, a administração do shopping não permita que ela tocasse mais do que uma hora, depois ela fazia um lanchinho na praça de alimentação ou no café que fica ao lado do piano. Naquela tarde sua mente, seu computador, estava diferente, era uma máquina velha, cansada, ela sabia-se um cacareco, estranhou quando certas lembranças
sabe-se lá porque
surgiram, eram verdadeiras punições, foi por isso que abandonou o piano tendo tocado nem mesmo trinta minutos e caminhou perdida pelos corredores imensos, e parou diante da vitrine com a paisagem do sol se pondo. Dias antes tinha decidido só pegar o táxi, o táxi de sempre, para o qual nem precisava ligar, pois havia um combinado entre ela e o motorista, às 16 horas em ponto na saída da Sete de Setembro, mas se ela precisasse dele antes era só ligar, ele estava à disposição, talvez fosse um amigo, talvez apenas um homem cordial, além disso ela precisava respirar, respirar, puxou o ar, encheu os alvéolos, respirar antes de tomar qualquer atitude, respirar enquanto as lágrimas continuavam vindo, o sal molhado que desde aquele momento ao piano lhe subira, as lágrimas vinham de alguma reentrância de há muito, ela via agora, falsamente esquecida, comprovadamente insuportável, era tão claro que nada, nada estivesse solucionado, seus antepassados insistentemente vinham ter com seus contemporâneos, as imagens despertadas pelo Noturno que tocara, aquelas imagens eram tudo o que ela enxergava, liquefaziam-se em suas lágrimas, sua mãe como um borrão, sua mãezinha tão frágil, lábios finos sem que soubesse mais se bonita ou não, os olhos do pai fugidios mas intensos,
qual a cor dos olhos de meu pai?
Não lembrava, só sabia do marrom da poltrona, sua mãe fundindo-se com a poltrona, e o pai
o amor é gratuito ou não é amor.
O pai o pai o pai agora sem olhos sem olhos, seus neurônios, os dela, nunca lhe tiveram amor gratuito, apenas o amor do
toque o piano para as tias e os primos.
Ou
vamos vamos você tem que estar bonita para o recital.
Ou ainda
esta vai ser concertista.
As imagens chegavam em profusão enquanto executava seu Chopin, os que foram aprendidos como fossem dízimas periódicas, por isso precisou sair correndo do piano, e então a paisagem da vitrine, por que ela estava ali diante daquele horror da natureza que é o sol se pondo, horror, sim, para os sensíveis como ela, para os que não o desprezam em seu movimento de diário desaparecimento, horror horror horror para os que temem a noite, para os que não tem ninguém a lhes esperar em casa, por que ela parou justo ali? Por que sentia outra vez sua vida inteira aos pedaços, mas ainda assim num fluxo de tempo que não contente em envelhecer as cenas apenas uma única vez ao longo da vida, passava agora a imprimir uma velocidade em padrões incessantes como a de um carrossel vertiginoso que lhe obrigasse uma súbita consciência de si mesma. Fechou os olhos talvez por muito tempo, talvez nem mesmo o tempo de uma piscadela, quando os abriu, mais do que os abriu, arregalou-os, o sol estava quase sumido, o fim da tarde com seu azul escuro já passava a preencher a paisagem, como se um balde de tinta houvesse sido jogado contra a vitrine da loja de calçados e a tinta escorresse para dentro da garganta de seu neto montanhista talvez perdido no deserto beduíno sem água e comida, logo o neto que amava a humanidade, o neto que amava todas as nações, o neto que se sentia cúmplice e irmão de todos os homens e, sim, talvez naquele momento ela estivesse compartilhando algo com o seu netinho, por isso ela o odiou tanto, ela o desprezou com todas as forças do coração que lhe restava, fazia muito frio, ela suava, ela detestava suar, sentia-se vasta e secando por dentro, sua mãe apareceu novamente, monstruosa mãe lhe flagrando na poltrona do escritório nua aos 14 anos bulindo na xexeca, esfregando-se no áspero couro, quanto mais a menina de 14 anos que ela fora ficava excitada, ela, a velha pianista de agora, sentia mais frio, e seus olhos se quebraram assim como fossem taças muito muito finas, e o calor da menina ia se esfriando sob a enormíssima mão da mãe, e aquele teatro na Lapa de seu primeiro amor entrando nos Noturnos de Chopin, e as vozes das pessoas no shopping ao seu redor no deserto
a senhora está bem?, chamem um médico!, aqui!, alguém!

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