quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012


você esqueceu quem sou

saio da área iluminada pelo velho bocal pendendo do teto com uma lâmpada amarela e enfraquecida, dirijo-me a um lugar escuro, apenas minha silhueta, tenho um acesso de vômito, penumbra, quase não posso ser visto, agachado, respiro com dificuldades, estou vomitando o cheesburguer recheado com profecias, estou vomitando os próprios olhos, comi-os no almoço
agora me recompondo, tento afastar para o lado nacos de treva, suo, tremendo lavo o rosto e a boca na pia, um gole de água, molho os cabelos, fito o rosto no espelho e beijo minha boca fedida de vômito, como qualquer um que tenta beijar sua própria imagem, a boca a única parte do corpo que aceita o beijo
sempre ordenava aquela mulher ao censurar meus atos de criança mimada, engulo o choro, eu a enfrentarei em instantes, não me permito derramar uma única lágrima em sua frente
o cérebro não pensa, mais rápidos são meus passos, o que deu certo em minha vida? sem grana, sem talento para futebol ou violão, sem carro importado ou casa própria, apenas um exímio chupador de bocetas, por aí jogado na sarjeta, a verdade é que a gente sabe que gosta mesmo de uma mulher quando depois que goza não quer enxotá-la para fora da cama
me aproximava, ela aguarda minha chegada com ansiedade, ela tem vontade de me esganar, não pretende me conceder seu perdão, algo amargo no interior de seu peito trinca, pedir desculpas? não concordo
o corredor é longo, conheço o assoalho como ninguém, sei como caminhar para que as madeiras não rosnem, mas dessa vez avanço como se liderasse a cavalaria, as tábuas reumáticas avisavam: não entre no quarto desta senhora, parecem enxergar que em breve eu a farei dobrar as mãos, retorcerei seu coração qual se faz com uma toalha encharcada, como seu peito ainda fosse de substância penetrável e o hábito do mal não o tivesse empedernido em bronze que nem couraça, sentimentos, só resquícios
após tantos anos fora, agora em meu lar, odeio as escadas sem corrimão, as paredes frias de pedra, os quadros pendurados quase que na treva, a casa jogada às traças, a mulher em depressão avançada, posso antevê-la a chorar horrorizada no quarto
um corredor de luz sem largura ou comprimento, o corredor do casarão, avanço, não há recuo, paradas sim, estou no início do corredor com óculos escuros
uma espécie de prece, não completamente inaudível, um farelo de som, move meus lábios
ela quer escutar o que de mim, ter que provas?
sou minhas atitudes hediondos
indaga sobre o que faz minha língua vibrar contra ela com tanto ódio, degenerações que cometi, o quê?
talvez não muito, talvez demais, certamente um ato daqueles que empalidece a graça e o rubor do recato, daqueles que chama a virtude de hipócrita, daqueles que arranca a rosa da bela fronte de um amor inocente e põe no lugar um sinal infamante, um ato que torna os votos conjugais tão verdadeiros quanto promessas de viciados, uma coisa que arranca a própria alma do corpo de um juramento e transforma a santa religião em rapsódia vulgar
a verdade é que não dou à minha vida o valor de um alfinete, não estou disposto a revolver o que me trouxe aqui, não existe mais o lado de dentro e isto é o próprio caos
ela não entende, nem finge
que ato é esse, cujo simples prólogo ruge tão alto e me ameaça tanto?
mas se fomos feitos para esquecer, esqueçamos, não há conhecimento capaz de ser superior a falta de memória, o que valem ciências, literaturas, povos primitivos diante da terrível capacidade humana de acumular esquecimentos? talvez esqueçamos tanto e tudo com a intenção unicamente de preservar a sanidade, esquecer pode que seja o melhor modo da gente
atinjo o clímax, a orquestra desafina tanto que as cordas dos instrumentos se rompem e os músicos estão mais surdos que os afogados, a sanidade é uma impostora, mais cedo ou mais tarde acaba desmascarada, cruzo as janelas enormes e posso ver como a face do céu se torna púrpura, a terra sólida e compacta, aproximava-se o momento, tudo é um doloroso ar e talvez nem seja outono
ainda não sei que vim cometer um crime
não sei que em determinado momento a obrigarei sentar e lhe direi
não vai sair daqui até que veja diante de um espelho a parte mais funda de si mesma
ela achará que eu estava prestes a matá-la, gritará por socorro, escutarei a outra voz asquerosa vindo detrás da tapeçaria libanesa pendurada na parede do quarto, a voz de um rato
a raiva a correr em meu sangue, sinto nojo de mim, de todos, soa ó voz de rato, rato agora morto, fui traído, acredito fazer parte de um jogo sórdido, saco a faca que trouxe escondida na blusa e enfio no tapete da parede, o ratorosto se esconde ali, o golpe e olho dentro dos olhos de quem assassino
ah ação sangrenta e absurda, não pior do que matar um rei e casar com o irmão desse rei
adeus, infeliz, tomei-o por um ser maior, aceita seu destino
e ainda, sopro de cinismo ou pesar? tento lhe deixar partir, ser prestativo demais tem seus perigos, embora o espírito de um fraco seja capaz de se tornar esperto após a morte
o rato morreu porque contou estórias terrível a meu respeito, instruiu minha mãe, dissera-lhe para falar-me com firmeza, que minhas extravagâncias tinham se tornado demasiadas, não mais suportáveis, que minha mãe havia servido de escudo se interpondo entre mim e o ódio que suscito
pobre ratomem, conhecia-o bem demais, era um rufião, parecia-me honesto no que fazia e ser honesto é ser um em dez mil, pobre diabo, jamais foi capaz de compreender que mesmo o sol, tão puro, gera vermes em um cachorro, é curioso mas os deuses gostam de beijar carniça, puxa-saco de merda, julgou-me louco, imbecil era você, dizia-me não querer roubar meu tempo quando não havia nada que esse paspalho me roubasse que me fizesse menos falta, exceto minha vida, velho estúpido e entediante, fez minha caveira para minha mãe
escuto meus passos batucando a madeira do corredor, ela pensa
será possível que aquele garoto brincalhão tenha chegado a tal ponto? não quero acreditar, meu filho, insano? o estômago emite sinais nauseados
segundos antes de eu entrar no aposento ela abre a gaveta da cômoda, pega o vidrinho de pílulas e ingere duas, eu ainda não sei, o maldito rato está com ela no quarto, confabulam, um maricas fofoqueiro asqueroso, temendo ser pego em flagrante se escondeu atrás da tapeçaria
ela tenta controlar a respiração e se acalmar, irrompo pela porta do aposento, grosseiro, na defensiva
e agora, mãe, qual é o problema?
ela, ainda em jejum, o estômago a subir-lhe à garganta sob o efeito dos ansiolíticos, fuzila-me colérica
você ofendeu teu pai
vou esbravejar, partir contra minha mãe, mas não compreendo com que forças fazê-lo, proponho um jogo psíquico
mãe, você ofendeu meu pai
ela sabe, sou bebê mimado, garotinho com medo de escuro, adolescente aventureiro, otário romântico, nunca um adulto justo, ma debochado, cínico, espanta-se, também eu nunca havia escutado ela falar de maneira gaguejante
espera aí, espera, você está me respondendo numa língua idiota
odeio a palavra idiota porque ela me defini melhor que qualquer outra, mantenho o tom, áspero embate, ela jamais esperou isso de mim, seu filho único, que a exemplo de outros, via-se agora, transformado naquilo que Nelson Rodrigues denominou monstro de circo num cavalinho, mártir, mártir do pai, mártir da mãe
seu coração surpreendido, que lamentável surpresa, joguete psicológico infame, nos abominamos por submeter um ao outro, minha crueldade à tona, mostra as presas com veneno
espera aí, mãe, você está me perguntando com uma língua imbecil
a minha resposta a golpeia fundo, a tentativa de ver sua autoridade imposta e respeitada é vã, estar viva é um suspiro de descrença, e o pequeno impulso de leoa anestesia de pílulas, aviltada
o que é isso, Hamlet?
e minha máscara de cinismo começa a derreter, o ar de fúria entre nós se contém qual granada clamando que alguém puxe a porra do pininho
qual é o problema agora?
aproximo meu rosto, ela está prestes a ser agarrada e chacoalhada, a última gota que derramo é mais virulenta, sou um torturador medieval
QUAL É A PORRA DO PROBLEMA AGORA?
ela não se subjuga, ao contrário, posiciona-se, está pronta, macho e fêmea, búfalo macho, búfalo fêmea, ambas as testas iradas, ao ponto de derrubarmos as paredes de pedra que alicerçam nossa casa sem o crânio rachar, ela então
VOCÊ ESQUECEU QUEM SOU?
a obviedade da resposta faz com que eu desconfie de mim, será que eu realmente sei quem é ela? o quê?
responderei com a raiva, e mentindo, ela me acertou, levou-me à lona, quase, é, cambaleei, engulo seco, rasga-me a garganta, então respondo, sabendo e não sabendo o que respondo, sendo e não sendo, respondo
não, por deus que não, você é a rainha, mulher do irmão do teu marido e, seria melhor se não fosse, é minha mãe

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