sábado, 19 de dezembro de 2009

balbucios de blues

Em minha última temporada de verão em Guaratuba eu era um velho mendigo desses que dormem próximos das pedras, dentro dos barcos fora de uso. Não aceitava que perto de mim alguém falasse sobre flores. Queria que todos me considerassem grotesco. Minha aparência podia ser até que sugerisse isso, mas minha fala era calma e preenchida de sabedoria. Por que você quer que o considerem grotesco?, perguntavam-me. É que dois olhos não devem saber enxergar mais do que o nariz, eu respondia. Depois ficava um tempo em silêncio. E só voltava a falar quando estava novamente sozinho. Nem sequer precisa mandar que fossem embora, ninguém aguentava ficar perto de mim mais do que alguns segundos. Sozinho, sozinho. Fazia anos que eu via o creme dos sorvetes jogados na areia se desmancharem. Tinha muito tempo que caminhava pelos bairros perto da baía e era sempre como se eu tateasse sua decadência com o olfato. Ás vezes era eu quem fazia a pergunta: Você já foi ao circo? Lembrava nitidamente do horror da assistente do atirador de facas. O vento que vinha do sul era ele o atirador, e meus poros recebiam aqueles golpes que penetravam e corriam dentro das veias. Em minha última temporada de verão em Guaratuba eu era um velho mendigo desses que dormem próximos das pedras. É. Talvez na temporada anterior àquela tivesse sido uma espécie de criminoso, um brutamontes que sentia errado e demais, alguém em quem todos os sentidos foram nalgum momento lama e suplício. Talvez em temporadas ainda mais remotas, não sei, o inchaço de meu fígado devia ter desejado muito mais que rezas, cocaína, ou a lua equilibrada feito um comprimido na ponta da língua. Ou quem sabe ainda apenas costurar a tristeza assim como os médicos costuram barrigas esfaqueadas nas emergências dos hospitais públicos. Isso mesmo. E quem sabe o odor das flores para mim eram somente fóssil no rochedo dos pulmões. É que outrora eu tinha sido um maníaco comedor de cigarros. Quero dizer, minha vida era desse jeito, flores lavadas com trezentos e quarenta doses de pinga por semana do lado de fora dos bares abarrotados de gente, na rua da amargura, na pracinha central da desesperança. Além dessas, devo ter vivido ainda numa outra e espectral época anterior, bem antes de eu vir a me transformar nesse velho fedendo a sopa, suor e urina, nem sei se exatamente como um mendigo em minha última temporada de verão em Guaratuba.

2 comentários:

  1. E se alguém quisesse ficar, por mais do que alguns segundos...?
    E se esse alguém quisesse ficar por muito tempo...?
    C.

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  2. são possibilidades que não se deve descartar. bj. lepre.

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