segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

balbucios de blues

Como se estar na pele de um velho mendigo em Guaratuba não tivesse sido arriscado o suficiente. Por hora apresento esse breve argumento para construção de outro romance. Um livro que fosse assim como uma cebola. Livros-cebola são aqueles que de tão lindos, inteligentes, fundamentais, você lê chorando desde as primeiras linhas. Nessa minha história haverá passarinhos de fumaça que são os cantos das conversas entre mim e meus primos em Pontal do Sul, olhando o colossal movimento dos navios entrando e saindo da baía em noites salpicadas de estrelas. Noutro dia ao amanhecer a menininha vasculhará a cabana do pai Thomas. E ele deverá interromper o café da manhã na varanda dizendo, com toda a sua experiência de médico: “Olha o beija-flor, filha, ele é capaz de bater mil vezes as asas sem se deslocar um milímetro sequer.” Essa frase dele deverá como que curar os meus olhos poluídos de cidade grande. Eu estarei trazendo pacotinhos de deserto (horizontes esquecidos lá dentro) nos bolsos, um acumulo da desolação de todas as vezes em que minha pequena partiu de férias para sua terra natal. E vai ser assim, tudo que um dia nos fez colar umbigo no umbigo, de novo o mesmo Bob Dylan cantando dentro da boca de Joan Baez quando então rasgarei os pacotinhos com os dentes das minhas próprias canções. E provavelmente, como quase sempre, estarei agindo errado. Talvez porque não devesse contar (e o farei) que quando criança colocava ataduras ao redor do punho e da mão para que os outros pensassem que tinha me machucado e ficassem com pena de mim. Daí, depois, alguns capítulos se passarão também em madrugadas quentes de verão do bairro em que moro, onde (ainda não terei usado essa imagem o suficiente) postes estarão dormindo igual sonâmbulas girafas com olhos de lâmpadas quebradas. E exatamente assim como uma lâmpada que quando é quebrada perde sua luz, exatamente assim eu deverei quebrar meus olhos já incapazes de lágrimas. Por conta disso, às vezes engolirei o choro e o sal da mágoa fará subir minha pressão. E eu, tonto, vou cair de cama. Pois já não será mais verão, e minha imunidade, claro, estará baixíssima. A partir dessa página, um pouco mais já da metade do livro-cebola escrito, dedo a dedo, braços e abraços, começarei então a espirrar igual aos cavalos, no intuito de expelir todo o catarro dos cento e noventa e três cigarros semanais que derreti enquanto me recuperava das idéias que feito um kerouac trancafiado ia jogando nas folhas do caderno. Até que finalmente, só depois de ser eleito “o purgante do ano”, passaria a me tratar com gomos de Aspirina misturados com uísque. Santo Deus, como os amigos se preocupariam comigo durante esses dias todos. Até o final de tarde em que receberia a visita de certa garota me perguntando “como você tem passado?”. E ela teria vindo de ônibus lá do centro até meu bairro na periferia, ela teria chegado ofegante porque obviamente saberia que só uma coisa tinha o poder de me arrancar de dentro da couraça da febre. E ela me daria essa coisa superior ao sexo pelo sexo. E eu seria salvo assim, simplesmente constatando que algumas mulheres são mesmo desse jeito, feito os mais gostosos doces de uma confeitaria, a todo momento olhando para você como dissessem “me deguste agora ou nunca mais”. E, desse modo, caras espertos como eu entrariam nelas muito mais pelas axilas do que pela vagina. Não, não ia dar para ser dessa maneira. Sei que nessa estória (só nessa) eu jamais treparia com uma garota dessas se acreditasse que doces, tortas, guloseimas em geral eram apenas a maquiagem do açúcar. Acho que eu não estaria em busca de uma garota doce, a menos que alguém... não. Então seria de um jeito diferente, acho, que tudo se desenrolaria. Quem sabe assim: quando criança eu teria colocado atadura ao redor do punho e da mão para que os outros pensassem que tinha me machucado e ficassem com pena de mim. E contar isso agora seria uma ingênua covardia contra tempos remotos. Então eu deveria estar mesmo agindo errado. Além do mais, alguém digno de pena por acaso não repelia os outros muito mais do que atraia? Além do mais, tempos remotos... o que essa porcaria poderia significar? Só a contemporaneidade estaria existindo para o mundo, isso desde que o mundo tinha sido mundo. Além do mais, na época em que o romance seria narrado, eu não passaria de um garotinho assustado. E o epílogo seria só quando outra vez me perdesse em túneis de neblina, soterrando o amor que não dera certo. E às vezes o amor seria menos que uma piada de mau gosto, noutras ele poderia ser parente da desgraça de bentevis no fundo de garrafas a me seduzir dizendo “você tem que ir até o final, você tem que ir até o final”. E então, após percorrer nem sei quantas centenas de parágrafos para chegar novamente na primeira página, eu recomeçaria a escrever de novo e de novo e de novo um romance que exigia que eu sempre o começasse com a frase “você tem que ir até o final desse livro-cebola”.

4 comentários:

  1. Sabe o que é interessante nos escritores?
    Essa eterna dúvida em que nos deixam:
    'Ele realmente passou por isso...?'
    'Ou terá sido apenas o eu-lirico...?'
    Talvez nem ele mesmo saiba.
    ; )
    C.

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  2. Estou preocupado com você, Felipinho...Achei muito pesado este texto. Você está precisando de temakis e cheese cake. Aqui é batata-doce mermão! Um braço é quindim e o outro brigadeiro! Não se esqueça que somos da Barra Velha! E amigos do Fala-Fino e do Cesinha Maluco! Se quiser, peço para a Raka mandar um telegrama.

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  3. Se eu construísse um teatro, ele se chamaria Adega das Cebolas. Daí viveria em luta para que fosse digno do nome. <3
    Tem também a imagem de descascar as camadas em busca da verdade e só encontrar outras.
    E
    há pouco mais de uma semana eu vi pela primeira vez um beija-flor que não estava mexendo as asas. Foi triste. Achava que eles agiam como os elefantes.
    Mas é isso que estou fazendo acordada a essa hora, enrolando ataduras/boa-noite,
    um abraço. =)

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  4. beijos, sabrina. beijos.

    abração, fabz.

    pois é, C. acho que nem os escritores sabem. beijo.

    lepre.

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