segunda-feira, 18 de outubro de 2010

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O estilo cru tem muitas variações 1
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A primeira imagem relacionada a literatura de que me recordo, e com ela como que tive um alumbramento, foi quando devia ter cinco, seis anos de idade. Meu pai pagava a conta dos doces que comemos na Confeitaria das Famílias. Enquanto esperava, sem pestanejar eu olhava para um homem gordo que na mesa em frente olhava, do mesmo modo que eu, para um objeto de papel. Era um livro. O homem gordo, um leitor, explicou-me meu pai quando saímos da Confeitaria.
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Veio a descoberta da biblioteca herdada de meu avô, repleta de clássicos como, por exemplo, Os Miseráveis, de Victor Hugo; Sermões, de Padre Antonio Vieira; Os lusíadas, de Camões; O Paraíso Perdido, de Milton; Fábulas, de La Fontaine; obras que ainda hoje, respeitada a idade certa para cada aventura, aos poucos e sem pressa vou lendo.
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Lembro de esperar ansiosamente a chegada das Feiras do livro, na escola. Eventos que à época, por intuição, de algum modo me diziam respeito.
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Nunca fui bom no colégio. Minhas notas eram péssimas. Reprovei duas vezes de ano. Era um rebelde. No recreio brigava até sangrar com colegas. Brigava na rua. Esforcei-me nos esportes. Em alguns até conquistei destaque. Mas teve esse dia em que escrevi uma redação que contava minha estória de amor com a menina mais bonita da minha série. Daí em diante só ficou mais difícil.
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Lembro ainda de um professor da oitava série que me marcou. Chamava-se Sérgio Vicentin, professor de história e geografia. Ele costumava repetir para nós a frase de um poeta, segundo entendi na época. A frase era assim (cito de cabeça): Não concordo com nada do que você diz, mas defendo seu direito de dizer. Era de um homem chamado Karl Marx. Teve uma vez que esse professor me deu uma lição sobre justiça que não esquecerei. Tinha me dado uma nota baixa. Comparei minha prova com a de uma colega, a resposta dela era idêntica a minha, mas eu tinha tirado zero na questão. Pois bem, fui reclamar a nota, clamei por justiça, ele disse “você quer justiça?, certo”, pegou a prova da menina e deu zero para ela na questão. Poxa vida, eu não sabia onde me enfiar, acabava de prejudicar alguém que tinha me ajudado. Acontece que a ajuda que pedi a ela havia sido um tanto ilícita. Vicentin sabia que eu tinha colado a questão dela no dia da prova, por isso me dera o agudo zero.
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Também no colégio. O primeiro livro de poemas que tomei contato foi uma antologia de poesia portuguesa chamada de Camões à Pessoa. A gente era obrigado a ler o livro na sétima série. Meus amigos achavam muito chato. Eu gostava, mas mentia que não. É que você fica com fama de nerds se na sétima série contar que gosta de Almeida Garret. E nerds é uma coisa que nunca fui. Eu tenho um primo que foi nerd. Sempre que estudava história, geografia ou matemática com ele, eu ia bem nas provas. Eu gotava dos nerds, queria ser como eles. Eu gostava muito de ir bem nas provas, mas vivia com a corda no pescoço.
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Meu começo na literatura foi diferente do de boa parte dos escritores brasileiros. Não comecei lendo Monteiro Lobato. Tampouco iniciei com o consumo frenético de gibis. Não lembro bem quais foram as primeiras leituras. Tenho um ou dois enredos da época na cabeça. Uma estória que se passava no interior, o menino pobre, meio feio e sentimental. Ele queria ser cantor, acho que tocava violão. E gostava de uma garota que não dava a mínima para ele. Não lembro do final. Tem outro ainda que me ocorre agora: Uma família classe média. O filho é brilhante na escola. Aos poucos se envolve com drogas e destrói sua vida. Não sei bem o que acontece, se ele se recupera ou não. Esses eram livros que a gente tinha que ler na escola. Acho que traziam mensagens, eram um tanto didáticos. Nessa época, resolvi experimentar benzina. Toda nossa turminha tinha começado a fumar cigarro de cravo, cheirar benzina e se agarrar para além de beijos.
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Já no segundo grau, aí sim, li Dom Casmurro, do Machado. E Memórias do Subsolo, do Dostoievski. Uma primeira consciência a respeito do ofício de escritor se deu. Mais ou menos nesse período comecei a ler o Vinicius de Moraes. E eu queria ser o Vinicius. E ele foi deveras generoso comigo, apresentando-me sua numerosa turma, entre os quais: João Cabral, Murilo Mendes, Drumonnd. Caí pesado na geração de 45, só então retornei na direção dos modernistas.
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Há ainda o Hamlet, de Shakespeare, que é minha fonte inesgotável. Samuel Beckett, mestre a narrar o esfacelamento da civilização do ponto de vista do indivíduo deformado física e moralmente. Julio Cortazar, cuja obra me sopra a todo momento “ser livre é isso, amiguinho, ser livre é urgente.” Há tantos autores que mudaram minha vida, minha visão de mundo e os rumos da literatura em mim. Entre eles: José Agripinno, com Panamérica; Raduan Nassar, com Lavoura Arcaica; João Gilberto Noll, com a Fúria do Corpo; Hilda Hilst, Clarice Lispector. Anton Tchecov e Nelson Rodrigues com seus teatros. Isso não tem fim. Ficaria citando a noite toda, mas é bobagem listar nomes. Se o faço é pela natureza deste texto, que pretende ser um pequeno (sabendo-se incompleto) depoimento. Alguns nomes mais urgentemente estão me ocorrendo. Claro, aqui pertinho de casa, jamais poderei esquecer o Manoel Carlos Karam. Antes de tomar conhecimento de seu trabalho, jamais havia admitido o funcionamento do humor na literatura, eu não sabia o que era isso. O Karam é o responsável por eu ter descortinado também essa faceta da arte, a alegria, a ironia, que considero uma forma de inteligência superior. Quando consigo escrever com alguma astúcia, devo ao fato de ter lido todos os livros do Manoel Carlos Karam, um a um, sem jamais perder o espanto. Foi um gênio, e ao nosso alcance.
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Daí segui me metendo com o Salinger e o Jhon Fante. Desses eu li a obra toda, até hoje releio. Então Jack London, Ernest Hemingway, William Faulkner. O lado sujo: Charles Bukowski, Pedro Juan Gutiérrez, Rubem Fonseca, Dalton Trevisan. São caras cujas obras me provocam e alimentam bastante, cada um a sua maneira. O estilo cru tem muitas variações. E é claro que há muitos outros escritores a quem devo a vida.

2 comentários:

  1. Cara, linda esta crônica! Repleta de sentimento e verdade. Muito bom saber (e ler) como tudo aconteceu na sua vida. Porque não publica esta no Dias Nublados?

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