sábado, 30 de outubro de 2010

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Arte Simon Schubert.

Para dentro de um livro em branco
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ter sido corajoso para não partir
forte para não voltar
sábio para não me arrepender
ter bebibo mais suco de melancia
usado melhor as mãos os braços
os lábios a bochecha antes
de presenciar morrer o que amei
ter visto toda a filmografia do Kurosawa
e ido mais à praia – não devia ter abandonado o surfe
e estudado mais
dito mais sins às oportunidades de trabalho
e dado um jeito de estar perto de quem precisava estar perto
ter viajado para a Europa
me empenhado mais em levar meus textos ao palco
talvez escrito um livro chamado
Requiém para um frango à passarinho
ou Uma história de esquartejamento e deglutição
e ter aprendido xadrez
praticado budismo
ensaiado a valer minha orquestra de beijos
usado mais vezes sem pudores o banheiro feminino
ter ficado mais tempo em silêncio abraçado
com a garota que foi minha e eu fui dela
e ter cantado para ela orações apenas com os olhos
e ter pensado o impensável
e dito mais palavras amenas simples diretas
sobre meus sentimentos – especialmente aos meus pais
e lido O homem que calculava
e aprendido a ganhar dinheiro
e ter visto Kazuo Ohno ao vivo
cruzado a cidade mais vezes à pé nas madrugadas de primavera
e largado tudo para trabalhar como cuidador de cavalos
numa fazenda texana
ou então, ao menos uma vez, experimentado o diabo no sangue
seguido de exorcismo seguido de entidades
ponteando violões que curam nossa existencia
e ter casado aos 17
com minha namorada cinco anos mais velha, sacerdotisa do fogo
ou estar partindo agora para uma aventura
para dentro de um livro em branco

Um comentário:

  1. falta de quê? me pergunto

    coragem
    entrega
    tempo
    ou medo mesmo?

    pois reconheço em mim.

    compartilho dessa prática,
    esse sentimento atolado de passado,
    de coisas que poderiam,
    mas não foram,
    de coisas que nos perseguem
    e ruminam em nossos cangotes,
    de coisas suficientes para encher um livro ou um instante.

    essas pequenas curvas que desenhamos,
    instantes de vida que mudariam tudo.

    tudo isso
    ou puramente saudades
    nostalgia daquilo que fomos
    daquilo que escolhemos

    a escolha é abrir mão daquilo que também se quer

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