domingo, 1 de novembro de 2009

fragmento da minha novela a neve não tem gosto de algodão doce

No Rio eu não aceitava que me falassem de flores. Naquela época preferia que me considerassem grotesco. Dois olhos deviam saber enxergar mais que o nariz. A creolina das ruas do Rio era o meu guia turístico. Eu estava treinando o olhar para coisas ínfimas e mundanas. Via coisas como a baunilha de um sorvete jogado na areia a se desmanchar. Caminhava pelos bairros e era como se tateasse sua decadência com o olfato. Pensava no horror da assistente do atirador de facas, o calor era o atirador e meus poros recebiam aqueles golpes que penetravam e corriam dentro. Eu não levava comigo proteção mística, apenas me acompanhava o odor imemorial uterino da minha cidade natal, eu nunca tinha sido abandonado em latas de lixo, caixas de leite vazias não eram minha mãe. Baratas, ratos, abutres não eram minha irmã. Apenas, por ser curioso, vivia como a folhar um caderno de enigmas em cada esquina. Sabia que do lado avesso daquela balbúrdia havia algo belo e limpo, um lugar de vidas e respirações que não tinham ainda apodrecido.
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Talvez eu fosse uma espécie de criminoso, um brutamontes que sentia errado e demais, alguém em quem todos os sentidos eram lama, suplício. O inchaço de meu fígado não queria rezas, cocaína ou a lua equilibrada feito um comprimido na ponta da língua. Mas apenas costurar minha tristeza como costurasse uma barriga. No entanto, tudo era em vão e eu sabia. Beijava costas, nucas, lambia cabelos onde quebravam ondas secas. As flores para mim eram fóssil no rochedo dos pulmões dos comedores de cigarros. Flores lavadas com trezentos chopes por semana em botequins abarrotados de gente.
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Naquela época eu queria muito. E tanto. E talvez não ligasse de ter as próprias vísceras expostas ao sol.

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