quarta-feira, 14 de abril de 2010

parece um poema de jacques prévert

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.....Parece um poema do Jacques Prévert
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Sabe do que me lembro? A Av. Batel enormemente nublada. Cheia de letreiros néon, coloridos. E gente, gente pra caralho. Os play-boys com aquelas Harley Davidson parecendo que iam tropeçar nos letreiros. Táxis pra tudo que é lado. A gente tinha vindo andando desde lá de baixo — só você mesmo pra me fazer andar a Batel inteirinha, desde lá onde ela já mudou de nome. E naquele dia você tava muito impressionada, por causa de uma estória que saiu no jornal e tudo. Overdose. Um suicídio no Edifício Tijucas. O cara deixou um bilhete triste pra caralho. Sei lá o quê, sobre sua namorada, sobre como ele lembrava dela, linda, encostada na pilastra de um bar. E a gente veio andando, passando pelos Colégios Marista e Rio Branco. E você contou que tinha estudado ali e que os teus colegas do Marista se cagavam de medo da piazada do Rio Branco. E você comentou a arquitetura. Comparou com a arquitetura de todos aqueles bares enormes que proliferaram na Batel. Você cumprimentou o manobrista de um dos Valet, eu perguntei quem era e você disse que ele tinha feito balé com você na adolescência. Aí eu disse que eu também queria ter sido bailarino, e você não acreditou, e a gente riu da minha barriga. E eu comecei a falar sobre dança, tentei explicar porque considerava que a maneira como o Mick Jagger dança é um butô. Aí eu fiz alguns passos e você disse taí, o butô do Mick Jagger. A gente chegou rindo pra caralho na Pracinha do Batel, e eu quis arrombar a loja de flores pra te dar um buquê de girassóis, mas o cara do posto da frente não entendeu que a gente tava brincando e disse que ia chamar a polícia. Então eu desisti, e você premiou a minha desistência com um beijaço melecado pra caralho, e eu limpei a baba na manga do pulôver, e ficou um monte de cabelinho de lã na minha língua, e eu dizia vem cá beijar um pulôver de lã, e você fugiu. Depois eu tirei uma foto tua sentada naquele portal tão bonito que tem ali. E a gente foi andando até o Shopping Crystal, mas o filme que a gente ia assistir já tinha começado, e eu queria entrar, e você me contou uma estória assustadora sobre uma maldição que ataca aquelas pessoas que entram no cinema depois que o filme já começou... Então a gente subiu, eu queria te pegar no colo porque você disse que tinha medo de escada rolante. Aí você disse “eu tenho mais medo de escada rolante quando tô no colo de alguém”. E a gente sentou na Confeitaria Lancaster, eu quis pedir uma salada de frutas, mas você me proibiu, disse que não admitia que alguém fosse numa confeitaria e pedisse uma salada de frutas, que isso seria o mesmo que subverter o pecado original. Só tava a gente ali, com todos aqueles doces nada populares nos olhando. Você ficava hipnotizada por aquelas guloseimas coloridas. Você disse “parece um poema”, e eu não entendi aquela comparação, eu fazia aquela minha cara...
.....Fazia mesmo...
........de bobão. Então você repetia parece um...
........poema...
........Jacques Prévert...
.....Eu sempre gostei do Prévert.
.....Você adorava a poesia dele. E eu achava ducaralho isso de você comparar a vitrine de uma confeitaria com um poema. E aí naquele dia você quis me levar lá nos fundos do shopping, e já era super tarde. Tava um frio fudido lá fora. Nem o cara do cachorro quente da Comendador Araújo tinha ido trabalhar. A cidade totalmente vazia, lembra?
.....Lembro, claro.
.....E você me levou lá nos fundos do Crystal. E era um lugar horrível. Toda aquela montanha de lixo dos restaurantes. Eu não entendia porque a gente tava ali naquele lugar fedorento.
.....Tampando o nariz assim.
.....Era nojento. Tava cheio de ratos, e eles não pareciam nem um pouco incomodados com a nossa presença. Era uma orgia de roedores. Tinha aquela gordona, uma ratazana enorme, cinza, pêlo grosso. Você ergueu a cabeça assim e falou apontando pra ela “aquela ali é a rainha dos ratos”...
........“se ele não tivesse aqui as coisas sairiam do controle”.
.....Foi exatamente isso que você falou, que se a ratona não tivesse ali provavelmente uma orda de ratos nos atacaria e a gente ia ser devorados vivos.
.....E aquilo tudo te deixou tremendo de pânico.
.....É, a gente saiu correndo pela Comendador na direção do centro...
.....Você gritava “eles tão vindo atrás da gente, não olha pra trás, só corre, eles tão nos alcançando”. E a gente correu até a Praça Osório...
........completamente deserta. A Osório tava um deserto total.
.....E você me disse “Nanda, quando eu morrer”... “Psiu”, eu fiz psiu e coloquei o dedo nos teus lábios... mas não adiantou, e você continuo dizendo “promete, quando eu morrer, promete, Nanda, que você paga pelo serviço funerário”...
.....Você ficou puta da cara, e disse “como assim, ficou maluco?”, foi o que você disse... você tava espantada... você falou “pára de fazer drama, Júlio”... e eu falei que tava com muito medo de morrer, que eu tinha tido um sonho esquisito com casulos e bichos da seda sendo devorados por dentes afiados.
.....É, você continuo com aquele papo surreal... você disse que não tinha quem fizesse isso por você... que se eu não cuidasse de você eles iam te jogar pros ratos... eu disse “não vamos pensar nessas coisas, Júlio”... e você “prometa, prometa, Nanda, por favor, prometa que você cuida de mim... sério, Nanda... é sério”...
........“não deixe que me dêem pros ratos”...
.....É, foi aí que centenas de morcegos voaram entre as árvores da Praça Osório... e mesmo assim...
.....Você não me levou à sério.

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