sábado, 22 de agosto de 2009

barras antipânico e barrinhas de cereal

Bernard Shaw
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Bernard adentra a cena entre parênteses e em itálico,
de casaca, traz um guarda-chuva e alguma parafernália 2
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Ufa! Mas eu tava querendo te contar, essa coisa de artes marciais e coisa e tal, iam já os meus 83 anos e resolvi treinar jiu-jitsu, foi então que se me deu a revelação: apenas 1% dos praticantes tem cérebro, os restantes são cartilagem e inchaço. Te olhando assim agora desse ângulo oblíquo, ocorreu-me: Por algum acaso você, assim, não trabalha na televisão? Não, né. Suspeitei. É que te achei parecido com o sujeitinho lá do canal 667. É mesmo, você está acobertado de razão, trabalhar na televisão é uma coisa ingrata. Quem é que lembra do pintinho amarelinho do Gugu? Por outro lado, a televisão enriqueceu muita gente, menos a maioria dos atores. Agora, nós que não éramos atores nem maioria... era impressionante, eles vinham e te esfregavam dólares na cara. Sim, sim, eu já trabalhei em televisão, mas tem muito tempo. Aqueles que diziam sim, eu gosto de dinheiro!, esses com certeza ficaram mais ricos que muitos outros que pareciam incapazes de dizer sentença tão simples. De minha parte, ganhei tanto dinheiro que chegou um momento da minha vida que notas e moedas jorravam da palma da minha mão, era assim, eu abria a mão e dinheiro, mais ou menos como acontece com o homem-aranha, mas comigo era dinheiro. Um belo dia, aliás, num péssimo dia, a fonte secou, mas restou essa mancha aqui, lembrança de tempos do quando fui alguém, só essa marca, com a qual sou obrigado a viver em paz, apesar de crucificado, se é que me entende? Agora não, agora pra mim televisão é só uma coisa onde instalar o videogame. Eu adoro videogame, fico até três da manhã plugado. Mas a mancha é o seguinte, no começo não era assim, eu esfregava, esfregava, arranhava, rasgava e a mancha não saía, então desisti. Melhor ser um Cristo pós-crucificação que ficar carregando a cruz pra baixo e pra cima, é ou não é? Mas o fato é que graças a essas desgraçadas dessas manchas aqui nas mãos, transformei-me a mim num belo hipocondríaco. Eu achava que tinha todas as enfermidades da humanidade, ficava muito nervoso, gritava frases que não me diziam respeito: Que adianta ser dono de uma mansão de frente para a Baía de Guaratuba estando na fila de transplante de fígado? E assim foi, eu estava acabado, mesmo, sem dinheiro e sem amor, sozinho e mal-acompanhado. Foi quando soube que crescem lágrimas no nosso rosto no lugar da barba. E, no entanto, apesar de acabado, sem dinheiro e sem amor, sozinho e mal-acompanhado, hipocondríaco, achando que guardava todas as penúrias humanas, nervoso, etc., a bem da verdade, devo admitir, jamais tive doença que não fosse uma mera gripe passageira. Agora mesmo, veja você, estou gripado. Viu a quantidade de guardanapos que usei? Você achou que era tão somente uma mania? Não. Estou mesmo gripadinho. Até, vou revelar, estou aqui na Confeitaria vadiando porque no inverno não consigo produzir nada. Eu praticamente não trabalho no inverno. E como em Curitiba pelo menos onze dos doze meses do ano são invernais, então já viu. Sempre foi as sim, no inverno não consigo produzir nada, só catarro. O melhor a se fazer durante o inverno é ficar fechado em casa. Aí talvez não nos constipemos uns aos outros. Mas eu não consigo, deu 16 horas e eu me empirulito aqui pra Rua XV. A questão primordial, meu rapaz, é: como viver num lugar sem portas? Não tem ideia, né? Pois deixe que eu responda: sozinho. Não se assuste, amigo, foi só uma piadinha. Eu não fico triste mas nem que a vaca tussa. Inclusive, uma coisa que me parece imperdoável no ser humano é isso de se acreditar triste, de modo que passa a enxergar nos outros a sua tristeza, e chega a ficar ofendido se não lhe identificam igual sofrimento. Mas deixa pra lá, isso é psicanalítico demais. E essa bonitinha aí, quem é? Sua amiga? Não? Que pena. Aposto que é a sensação do Centro. Ela parece ser dessas que passam e a piazada não consegue movimentar um miligrama de pálpebras, que é pra não desgrudar os olhos. Deve ser dessas que têm a fada Sininho tatuada na virilha, ai ai. Poxa-puxa vida, o colega vai me per doar, mas visão assim tão feminil despertou-me a urgência de privada, vou correndinho ali e já tô de volta, não saia daí e, se der, traga a menina pra nossa mesa.
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Ufa! Você já reparou que quando a gente precisa mijar nossas pernas andam mais rápido? Como eu tô assim, todo transmutado em tartaruga, acaba que parece que cada vez que eu vou no banheiro o banheiro foi transferido uns 100 metros adiante, ao que se não tenho concentração e força de vontade, acabo fazendo nas calças mesmo. Sabe, eu estava pensando lá no banheiro agorinha mesmo, sexo fraco é o dos homens, pois não? O meu pelo menos é. Senão, veja: Constantemente sou tocaiado pela volúpia de mocinhas como essa e seus delírios famintos. Falando nela, cadê a moça, já partiu? Foi isso, veio comprar um maço de cigarros e deu no pé? Que pena. Você deve estar se perguntando: Será que esse velho safado dá no couro? Veja, é bem verdade que vivo lutando contra meus enfraquecidos, dobráveis e esmigalháveis 90 aninhos de pessimismo realista. Ainda mais com Elga lá em casa, que vive promovendo cenas de histeria e irracionalidade, cada vez que chamo uma amiguinha para me ajudar a relaxar. Elga e seus arroubos de incompreensão e o ideólogo basbaque sou eu? Nem que a vaca tussa! Aqui ó! E ainda mais essa agora do meu aniversário. Já posso ver, vão me fazer sentar na cabeceira da retangular e longa mesa para a ceia. A criadagem virá nos servir, algo frugal, estarei eu esperando, até que levantarão a tampa do meu prato: Frango! Como sempre em todos meus aniversários, frango. Elga sabe o quanto detesto frango e mesmo assim. Será necessário insuflar-me batendo com força no prato, fazendo com que o pequeno galináceo acabe por pousar sobre a peruca da senhora mui distinta que estará à minha esquerda. Elga, claro, levantar-se-á, com o perdão da mesóclise, e passará a gesticular energeticamente, lançando-me impropérios. Além do mais, o sujeito que inventou o frango é um péssimo designer, já viu a dificuldade que é comê-lo?, todas aquelas articulações, somos obrigados a destrinchá-las com garras e presas, o frango não admite talher, o frango é um rebelde da culinária. E, por essas e outras, eu não me limitarei a dizer repetidas vezes: Eu não gosto de frango, você sabe, Elga, que eu não como frango. A senhora à minha esquerda, enquanto ajeita o frango numa travessa improvisada, e limpando o vestido, dirá afável: Bernard, não seja tão radical, dê-nos a alegria de vê-lo abrir uma exceção para degustar esta apetitosa ave. Ah, aquela galinha chamando a outra de sua espécie de ave, que palhaçada! Então Elga, como que lendo meu pensamento, dirá: Santo Deus, Bernard, tuas emoções vieram ter em que ponto! Que impertinência, Elga sempre a falar de minhas emoções. O que é que aquela feiosa entende de emoções, se nem uma boa pica tem para sofrer em cima? De modo, amigo, que desde já estou preparando um breve discurso para quando este momento constrangedor chegar, amanhã, durante o meu jantar de aniversário. Quando elas menos esperarem, eu direi em bom som para que todos sejam obrigados a escutar este velhote: Minha lindinha Elga e ilustres convidados, quero esclarecer que minhas emoções são mais sutis que o movimento das bochechas rosadas em umas, e esqueléticas em outras, das senhoras aqui presentes e seus perfumes franceses entre aspas, insuportavelmente empestando o meu ar, não obstante, venho alertar que as senhoras ainda não viram um-nada do que podem causar-lhes minhas emoções sem controle, agora exijo que ponham-se todos daqui para fora! Então, após tal façanha, virão me conter dois frangotes, chamemos assim, dois franguinhos que eu nunca terei visto em toda minha vida, nem mais estúpidos, convidados, óbvia constatação, de Elga Maria a bruxinha gorda. Dois tipos que estão mais para o sétimo lugar numa competição canina. São os estúpidos em que terei de aplicar minhas técnicas de jiu-jitsu brasileiro, que é o mais violento e impiedoso dos jiu-jitsus, arte que aprendi pessoalmente com mestre Hélio Greice, meu contemporâneo. O problema de tudo isso é que a Elga não tem respeito por mim. Admiração então, nem pensar. Antes me temesse. Qual o quê, jamais temeria um velhote cujas moscas, até mesmo as moscas, já começam a orbitar. Mas me resta o jiu-jitsu, uma técnica para a qual a força é menos importante que a capacidade de rastejar feito uma cobra lisa pelas brechas que o oponente deixa em vacilo. Será assim, eu sei, só não vou matar os dois convidadinhos da Elga porque um outro, aparentemente um homem autoritário, arrogante, desagradável, presunçoso, tão gordo quanto vivo, na verdade, revelar-se-á com mesóclise e tudo, uma daquelas espécies de fenômeno social, quase obsoleta, da turma do deixa-disso. Menos ruim, não precisarei sujar minhas mãos. Até que, tudo acalmado, após eu ter dito exatamente esta frase menos ruim, não precisarei sujar minhas mãos, Elga, a gorducha fedidinha, irá se dirigir a mim sorrindo e, como se eu fosse um pobre de um velho gagá, dizendo: Ai como você é irreverente, cavalheiro, nós adoramos o teu humor. Cavalheiro? Quem ela pensa que é para ousar a tal ponto, chamando-me de cavalheiro? Eu devia levantar aquele vestido, baixar-lhe as anáguas e dar-lhe umas boas palmadas. Elga eguinha pocotó dos infernos. Poxa-puxa vida, tudo isso logo comigo, que não bebo, não jogo, à exceção das minhas amiguinhas do meio da tarde, nunca fui libertino. Pô, como não perder a paciência com uma Elga dessa que não quer mais que se esticar na poltrona com um charuto de cannabis enfiado na boca, o copo de uísque na mesinha de centro e, como ela mesma diz, um bom romance policial? Faça-me o favor. O que esperar desta moça que viveu uma existência toda na companhia de pessoas que eram pagas para educá-la quando, como diz a Clarice, Lispector, como não?, há coisas que só se aprende quando ninguém ensina? Acontece que eu não sou pago, nem nunca fui, e tudo o que pretendi ensinar-lhe pareceu-me vazar de um ouvido a outro. Que coisa! Sim, meu caro, talvez eu devesse admitir que Elga não é toda de se jogar fora, é até bastante vistosa. Não fosse extravagante demais, com blusas de cores alegres e as tetas desse tamanho. Às vezes fico até impressionado com autossuficiência da menina. Se não fosse tão intensamente autoritária, chegando mesmo ao nível da brutalidade, mesmo física, por vezes. Elga é boa de grito, mas, convenhamos, se grito resolvesse, não existia porco à pururuca com a maçã na boca, não é mesmo? O melhor método para tirar Elguinha do sério é usando palavras de não estar nem aí. Meu aniversário, sei bem, é só um pretexto pra gordinha fazer suas festas lá em casa, eu bebendo água da torneira e ela com aqueles equinos brindando com champanhe. Bolas. É por isso que me recordo com tamanha alegria de um tempo em que eu mesmo preparava minhas festas de aniversário, eram sempre festas surpresa, digo, festa surpresa para os convidados, porque eram festas de aniversário que eu mesmo preparei para mim e nas quais nunca dei o ar da graça, tá entendendo?, eu não ia nas minhas próprias comemorações, e os bestas dos convidados lá: Cadê o Bernard? O Bernard morreu, queridos, quando ele voltar de Floripa talvez volte ressuscitado, mas ele preparou essa festinha pra que vocês todos, estúpidos admiradores, viessem festejá-lo e deixassem o caminho livre pra ele se empirulitar lá para aquela ilha cheia de tus e visses. Não eram jogadas de mestre, hein? Tive que partir pra medidas drásticas como essas. Pelo amor de Deus, viviam sempre me puxando o saco. Eu tinha que quase berrar: Se vocês continuarem puxando meu saco e me tratando tão bem assim eu vou ter que mandar os seguranças expulsá-los!, e era como se entrasse por uma orelha e vazasse pelo nariz, porque eles só viviam interessados nos pozinhos mágicos que a Elga-mãe, minha falecida irmã, que era a mãe da Elga de agora, arranjava, tá entendendo?, e esse velhinho aqui parecia um ser invisível. Fico me perguntando: Será Elguinha um escorpião?, ou estará mais para aranha venenosa? É uma questão complexa, pois veja, o escorpião age de modo bem diverso do da aranha, o escorpião, perto da vítima, ataca, a aranha não, a aranha é meio burra, só não é burra em certos momentos, por exemplo, no momento em que se vê acuada e nos pica, o escorpião, por sua vez, vendo-se sem alternativas, enfia o ferrão na própria cabeça, isso sim é heroísmo. Em suma, pra ter certeza só se eu preparasse uma situação terrível em que colocasse Elga em xeque-mate, aí daria para saber se ela enfiaria, partindo do suposto de que Elga é venenosa, claro, o ferrão no próprio cérebro. Mas não posso fazer uma coisa dessas, afinal de contas ela é minha sobrinha, não é mesmo? Sangue do meu sangue. Que droga, aposto que ela espera babando o dia em que eu dê uma de escorpião, mas tal data não chegará, Elga ainda terá de limpar minha bunda com Alzheimer, desgraçada. Mas também ela quer o quê?, que amanhã eu me coloque no hall de entrada do casarão e: Boa noite, como vai?, obrigado pela presença, o que é isso, não precisava, o prazer é meu, olha só, até você por aqui, nossa, quanto tempo, que saudade, fique à vontade, era isso?, claro que era isso que ela queria. Ah, que se dane, eu lá sou palhaço, poxa-puxa vida? O esquema vai ser o seguinte: os primeiros convidados vão chegando e eu ó me empirulito pro quarto, me fazendo de indisposto. É exatamente assim que ajo desde meu aniversário de 87 anos, corro pro quarto indisposto. Corro é modo de dizer, na verdade eu como que tartarugueio, ou seja, me arrasto, que é pra parecer bem velho e fraco e doente. Aí chego no quarto, após todo um teatrinho tchekhoviano e, ufa, estou a salvo. Abraço-me à minha farmacopeia e, ufa, estou mais a salvo ainda. Posso relaxar por alguns minutos. Inclusive, falando em relaxar, o amigo me dá licença pra eu mais lépido e menos tartaruga dirigir-me até ali o nosso bathroom.
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Ufa! Dessa vez foi dureza, tinha um sujeito lá dentro que não saía nunca, aí quando eu entrei, putz, o negócio tava feio, o cara fez um estrago mesmo, sei lá, deve ter comido um urubu no café da manhã, gente sem educação. Mas como eu tava te contando, teve um outro ano do meu aniversário, sei lá, acho que estava fazendo 88 anos, vixe!, então foi no ano retrasado. Foi, tenho quase certeza. Bem, não importa, só sei que a cambada me encheu a paciência, até que eu busquei meu rifle, pois é, eu tenho uma espingarda, vai saber, pro caso de precisar. Pois bem, tinha um sujeito pendurado só de cuecas no meu lustre. Eu gritei: Vai de leve aí ô Power Rangers! Ele se fez de desentendido. Então foi assim, naquele dia eu precisei usar a Bichinha, que é como batizei minha espingarda, fui lá e acertei um tiro no meio do lustre, eu sou bom de tiro, todos os bundões dos convidados da Elga se assustaram, o Power Rangers rosa estatelou-se em cima da mesa de sobremesa. Depois eu fiquei um tempo mirando um por um dos convidados, e eles se borrando de medo, foi hilário. Aí eu desabei na poltrona e disse assim à meia-voz, como um verdadeiro sábio diria, eu disse: Estão esperando o quê?, adeus, cambada, tchau, hein, tchau pra sempre, acabou a festa. Agora me diga você, dei tchau pra sempre pro bando de maricas e aposto que a opulenta comedora de polenta da Elga vai convidar todos eles pra voltarem no meu aniversário de amanhã, quando completarei meus noventinha. Ora, suck my dick, tão pensando o quê? O que mais me impressiona é que essa gentalha tem a cara de pau de voltar, como se eu fosse um velhote gagá que não vai lembrar da fuça deles com detalhes. Ora, faça-me o favor. Além do mais, não sei se a Elga sabe, porque não é ela quem cuida das contas, mas Samanta e Leônidas, nossos empregados, sempre me deixam a par, gasta-se uma pequena fortuna para se produzir essas festinhas frívolas. E eu vivia dizendo para os criados, suplicando mesmo, para que eles se rebelassem contra as festas da Elga. Mas eles são uns trouxas conformados, isso porque ganham sei lá quantos salários mínimos. Porque se ganhassem um só, aposto que aprenderiam rapidinho a dizer: Vocês nos pagam um salário mínimo como se isso fosse o máximo, seus exploradores de meia-tigela, hoje não tem festinha, escutou bem, Seu Bernard S.? Seria lindo vê-los revoltados, mas nunca vai acontecer, não passam de dois bons vivants, na verdade, na verdade, na verdade, o casarão é mais deles do que nosso, o que dizer dos churrasconhas que eles fazem de quinze em quinze dias e duram de sexta à tarde até domingo um pouquinho antes da meia-noite? Hein? Não são somente as traças que moram dentro dos livros. Existem muitos outros seres, principalmente na minha biblioteca, acontece que eles guardam carvão, lenha, têm até um freezer pra congelar a carne para o próximo evento. É, na biblioteca. É o cúmulo. Esses maloqueiros do cacete! Irrito-me sobremaneira, pois que a churrasqueira avizinha-se da biblioteca que, se não tenho mais visão para ler, ao menos deveria ser respeitada por ser lá o lugar em que durmo e, principalmente, sei lá por que cargas dágua, de domingo para segunda. E não adianta eu ir até a churrasqueira e, com educação, explicar, sendo mesmo didático, dizendo: Meus queridos, é já domingo, faz três dias que vocês deglutem carne bovina e maconha, olhem, será que não dá pra dar uma trégua pra esse velho amigo de vocês, o dono da casa, diga-se de passagem, lá fora já vai anoitecendo e eu também estou anoitecendo, estão me entendendo?, uma pessoa com sono é o mesmo que uma pessoa anoitecendo, cês conseguem me compreender?, e tudo que uma pessoa que está anoitecendo deseja é que lhe deem boa-noite, lhe desejem bons sonhos e DESAPAREÇAM! Mas, meu amigão, eu lhe garanto, não adianta nada, ninguém mais respeita esse seu aristocratazinho cujo coração é uma mesa sem uma das pernas. Eu não aguento mais expulsar essas hordas de sanguessugas, é um tormento. Quando não são os funcionários é Elga outra vez, acho que ela tenta me comemorar umas quatro vezes por ano, foi por isso que cheguei tão rápido assim nos meus noventinha. A mãe dela fazia a mesma coisa. Certa ocasião, num passado próximo, Elguinha pocotó veio com essa: Bernard, você não pode expulsar os meus convidados! Os teus convidados, Elga? É, Bernard, os meus convidados, que seja, para o teu aniversário. Então, pra variar, eu tentei ser didático: Escuta, Elgui, eu não reconheço esta data como sendo uma data festiva, tá entendendo?, logo não a reconheço como sendo a data do meu aniversário, principalmente porque eu me guio pelo calendário chinês. Calendário chinês, Bernard, ora, me poupe, você não tem o mínimo de bom-senso. Pois bem, dona Elga, se falta bom-senso aos jegues, às mulas, aos burros, então também a mim me falta bom-senso, porra! Baixe o tom, baixe o tom, Bernard, os meus convidados podem ouvir as tuas asneiras. De uma vez por todas, Elga, ninguém está interessado se você é ou não é uma bosta de uma mulher que não se exalta! E quase que pulei no pescoço da lazarentinha. Depois, vi-me obrigado a me acalmar e fui para o salão, acabei conversando com o insuportável do amante da Elga, um filho da mãe de um psicanalista, eu me sinto dissecado quando fico conversando mais de dois minutos com ele. É outro puxa-saco de meia-tigela, ou você duvida que elogio demais, babação de ovo, como dizem os cariocas, puxação de bolsa escrotal e tudo isso junto, não são capazes de dissecar uma pessoa que, afinal de contas, é a porcaria de um livro aberto todo rabiscado e com as páginas despregando ou, até mesmo, faltando? Eu detesto conversar com quem só sabe falar em termos técnicos, você vai falar com um botânico e ele já mete na conversa umas monocotiledôneas, dicotiledôneas, paralelinérvias, reticulinérvias e sei lá mais o quê, aí você vai falar com um desgraçado de um psicanalista e ele já vem botando o sistema nervoso na jogada, pô, você só cita, assim coloquialmente, Deus, e o cara já me sai com essa: Deus, Bernard, que história é essa de Deus? Meu velho Bernard, se há um Deus possível ele se chama Sistema Nervoso. Ah, mas que maçada conversar com um imbecil desses. Cê veja como esse negócio do meu aniversário me deixa apavorado, se pelo menos a Elga encomendasse uns brigadeiros, mas nem isso, só tem álcool e frango, que horror. Ou então que se profissionalize, eu falei certa ocasião para Elga, inscreva os meus aniversários nessas leis de incentivo à cultura da cidade, afinal de contas eu, com a minha idade, já sou patrimônio tombado e, quem sabe, até domínio público, não é mesmo? O que me azucrina mais é que eu sei que a festinha de amanhã vai ser igual à do ano passado. Na festa do ano passado, tudo o que podia dar errado deu errado. Agora, tem uma coisa, eu costumo ficar com a parte boa seja lá do que for. Quanto a Elga, uma coisa é inegável, com ela o inacreditável é real, tá me entendendo?, porque estas festas que ela me faz, estas festas são realmente inacreditáveis. Bando de esquizofrênicos viciados em ecstasy! Poxa-puxa vida, como falei. Deu até uma tontura. Vamos mudar de assunto, pois não? Falemos um bocadinho de você. Você não é atleta não, né? Nada, só que não gosto muito de atletas. Cê não é mesmo, né? Nem atleta de Cristo? Que bom. O quê?, cê simpatiza com atletas? Olha, acho que não vai dar mais pra gente continuar sendo amigo. Não, nada demais, mas pondera, pondera meu amigo, põe a mão na consciência e pondera. Já parou pra pensar que talvez os novos sádicos do mundo sejam os personal trainners? Pois é. Pois é. Pois é, mas jiu-jitsu não é um esporte, é uma arte, depois que você domina as técnicas ele é um jogo de altíssima racionalidade, é quase como um jogo de xadrez, com a diferença que, no caso do jiu-jitsu, você está no tabuleiro, digo, você é o peão, o cavalo, enfim, como preferir. Já nos outros esportes a coisa funciona mais ou menos assim, quem perde é como que o canibal frustrado a falar no telefone: Não, bróder, ainda não comi ninguém. O quê? Se todas essas minhas estórias são verídicas? Cê deve de tá de brincadeira. Verídico?, verídico uma pinoia, aconteceu mesmo. Não, não, não, nunca me casei. Nunca. Eita que pareço até um daqueles personagens nonagenários do García Márquez. Queria eu, apesar de não ter me casado, ter sido um grande solitário, mas não fui, vivi cercado de gente, nem agora, depois de velho, consigo amargar uma solidãozinha que seja. Eu adoro, meu garoto, a solidão, a solidão é uma coisa muito nossa. Poxa vida, o ser humano é tão solitário quanto um ser humano, se é que você me entende? Não é que não adore as meninas, porque eu adoro, adoro mesmo. Eu adoro as meninas. Mas respeito, pra não ser acusado de velho tarado. Respeito, mas adoro. Me dou bem com elas até hoje. Não casei, fazer o quê?, paciência. E você, tem uma prática frequente sexual? Hein? O.k., não vamos ficar falando sobre isso. Mas, olha, quer aceitar um conselho desse velhote aqui? Sabe quando eu comecei a me dar bem com a mulherada? Quando eu descobri que as gostosas também choram, se é que me entende? Elas também se sentem solitárias. Todo mundo se sente sozinho, é um horror. Olha, a solidão é uma big band. É verdade, eu entendo à beça desse assunto, uma coisa pelo menos sobre isso eu sei: a solidão anda em bandos. Tá rindo né?, é que você identificou a coisa, sentiu o aroma da perpétua. Eu sou assim mesmo, eu quis ser assim, eu quis ter a liberdade de a qualquer momento da minha vida gritar aos quatro ventos: Sim, eu sou inverossímil! Eu sou inverossímil! Eu sou inverossímil!, cê tá me entendendo? Claro que não tá, não tá entendendo nem 50% por cento do que digo, você ainda nem tem barba na cara. Vou te ensinar um troço que rapidinho vai começar a nascer barba no teu rosto. É o seguinte: pega titica de galinha, bastante, esfrega bem, e passa por dentro da bochecha, o muco vai absorver a titica e é tiro e queda, a barba cresce que é uma maravilha. Olha, vamos esclarecer uma questão, eu me dou bem com o silêncio. Parece que não, só porque hoje estou falando pra burro, mas é que você é um excelente papo, por isso que estou falando, mas eu gosto mesmo é de silêncio, eu adoro os silêncios, os silêncios e as árvores. Quer dizer, na minha opinião, as árvores são os seres humanos mais silenciosos do planeta. As árvores são silenciosas e, como se não bastasse, estão plantadas na liberdade. É demais, eu me esbaldo. O silêncio são horrores de palavras. Por isso que gosto de ir à igreja, eu gosto de ir à igreja, não à missa, eu gosto de ir à igreja porque elas são, como já disseram, esculturas de silêncio. Mas eu vou pouco na igreja, nunca tive uma boa relação com Deus. Aliás, toda vez que tentava me compreender, acabava brigando com Deus. Agora não mais, é que já desisti de me compreender. Agora eu sou assim, digamos, mais sangrado que sagrado, tá me entendendo? Eu descobri isso, não foi fácil, mas descobri, é impossível um ser humano se livrar do desconhecimento de si mesmo, foi aí que eu relaxei, parei de me preocupar com Deus e tudo o mais. Faz anos que eu faço assim, tento manter a consciência, apesar de que somente os vivos têm essa outra faculdade, decorrente da consciência, que é a faculdade justamente de perder a consciência. Então essa acaba sendo uma ótima pergunta, não é mesmo?, o que é melhor, estar vivo e sem consciência?, ou chegar ao ponto em que nada disso mais tem significado nenhum? É um horror, se a gente começa a dar uma de filósofo, pronto, acabou a tranquilidade. Meu Deus, chego a ter pena dos intelectuais. Você não é intelectual não, né? Ah, que susto, Deus me livre pegar um intelectual pela frente. Intelectual gosta de falar, não é verdade? Nossa, intelectual fala pra burro, é um blablablá atrás do outro, tudo sem pé nem cabeça, e o intelectual se achando o gênio da lâmpada, né? Já os sábios raramente falam, não é verdade? Sábio é tudo caladão, acho que é porque daí acontece o seguinte, se um sábio começa a falar demais, a gente logo vê que de sábio o idiota não tem nada, é só gênero, esses imbecis que ficam caladões o tempo inteiro e quando se pronunciam falam bem baixinho, é que no fundo eles estão se borrando de medo de que a gente descubra que eles não são sábios coisíssima nenhuma, é ou não é? Em contrapartida, existem os gênios, os gênios são bacanas, eu me divirto com os gênios, porque se existe uma raça, por assim dizer, que não tem desconfiômetro, essa raça é a dos gênios. Os gênios são o máximo, eles falam, falam, falam, os gênios só falam, nunca escutam ninguém. Eu gosto dos gênios, os gênios são impagáveis, eu gosto dos gênios porque eles nunca estão aí pra nada, os palhaços. Já a gente, os pobres mortais, nós somos tão trouxas que vivemos nos preocupando com o futuro, não é verdade? Um poeta espanhol disse: o pior da viagem é chegar na Estação Clorofórmio. Eu já cheguei. Por isso vivo sendo confundido com um daqueles anciões sábios do Senhor dos Anéis. Mas no fundo eu não passo de um esclerosado de meia pataca, com os brônquios que são já o próprio rosto da tosse. É por isso que quando me aparecem esses piás de bosta se achando poetas, enfiando nesses porcarias desses blogs bloquinhos de textos cheios de métrica e rima, uns formalistazinhos de nada, ficam discutindo entre eles quem é que domina terças e redondilhas, quando aparece uma racinha dessas, eu logo pergunto: O que é que o Hobbit tá enchendo o saco? Tudo um bando de mosquito que com um mísero peteleco se esfarela com uma gotinha do teu sangue junto entre aquilo que nem víscera é. Quantos desses chupadores de sangue alheio chegarão a ser um verdadeiro vampiro?, é o que me pergunto. Agora, veja você, eu era muito amigo de um pintor famoso aqui da cidade, um dia cheguei pra ele e, com a maior franqueza, disse-lhe: Olha, você deveria parar de andar comigo, senão vão se lembrar de você um dia como aquele artista plástico das pinturas para violino, flauta, oboé e dançarinas do É o Tchan. É que eu vivo vulgarizando a arte em que toco, assim como uma espécie de Midas às avessas. É por isso que não me engolem por aí, eu sou carne de pescoço mesmo, sempre fui. Essa gente fodedora um do cuzinho do outro, isso é uma coisa que dá ganas na gente de vomitar, pois que o alimento vomitado é a escultura da necessidade, já que é suja e fétida, é esterco nossa alma. É o mesmo processo nas esferas públicas, povo e governantes, governados e patrões, todos, exímios, mesmo os pedintes, maquiadores. Irrefutável é o argumento de que mesmo o sangue frio sangue é. E sangues sangram, sempre, no entanto. Ferrão e fervura, ferradura e foda. E há infindas não realizadas promessas, que nem mesmo delas a atmosfera de futuro e esperança, quiçá, resistirá a ligas, seitas, sites, gangues, ongs, blogs, etc. Seus milhões de olhos são o lusco-fusco sob pálpebras que ora aplaudem seu anestesiado pesadelo de cidade. Como fosse a cartografia um tanto sentimental de uma vila assim-assado. Por certo Curitiba não é de todo uma cidade, como dizem acusatoriamente alguns, putona. Mas, convenhamos, boazinha também não é. Eu sempre encontrei languidão em suas manhãs, apesar de seu saboroso silêncio de antanho vir cada vez mais dando lugar ao trânsito das saídas e entradas de Faculdades Particulares e comércios em geral, bares e casas noturnas de péssima espécie. Hoje, você sabe bem, há os que prefiram fazer seu desjejum nos famosos Costelões 24 horas espalhados por aí. E há, claro, os como eu, nós?, posso incluí-lo?, que bom, há os como nós, que resistem à baba caricatural em tom pastel de um sotaque fabular ensinado pelas novelas televisivas. Nalgum momento, nalguma daquelas ruas de paralelepípedos, os cidadãos poderiam presenciar o famoso Bloco Carnavalesco Crueldade Social passando. É preciso entender de uma vez por todas que uma orelha em manifestação é o povo, uma superverbalização é o povo, aí sim acabaríamos com esse bando de urubus que aparecem no horário eleitoral de ano em ano. Eu li muito o Bertold Brecht, eu sei do que estou falando. Para nós, amiguinho, restam estes crepusculares momentos, empanturrados, como não?, de potinhos de coalhada de mel. O amigo vai aceitar uma de, digamos assim, sobremesa, não?, eu vou. Ôo do balcão, uma coalhada farta aqui pra mim, agradecido. Mas é como eu ia falando, se o nosso centro durante o dia se mostra pontualmente maquinal, vigiado e entupido de gentes de negócios, à noite as negociatas mudam o foco de interesse, não é mesmo? Tráfico, prostituição, polícias fazendo seu caixa-dois pessoal. É assim que funciona, na política local cada vereador, secretário, deputado, etc., engendram suas freak razões para a canalhice de cada dia. E se você é um artista, você por acaso não é artista, ou é?, não né, certo, mas se fosse, seria assim: cada artista da terra, mais hora menos hora, acaba sofrendo o impacto de ter seus delírios lavados a baldes frios. Ôo do balcão, esqueceu?, duas coalhadas aqui, pra mim e pra esse bom-papo que tá comigo, pois que falar de polititica me dá fome. Agora, claro que eu concordo com uma coisa, isso é pouquíssimo discutível, eu sei, claro que sei que sem dor o homem acaba, é onda que quebra pra fora de si mesma. Mas, é como dizem, no dos outros é refresco, não é assim? Então. Por outro lado, será que devo me animar? Parece que disseram que os Bancos do País estão com um bom plano para pedintes, mas só os que têm limite superior a três mil no cheque especial. É o fim dos tempos, não tenho razão em reclamar? Claro que tenho. Apesar de que sou um pobre coitado beirando os noventinha. No fundo vivi todo esse tempo e não sei nada de nada. Mas você perdoe os meus arroubos de professor de Deus, puro delírio, só não vou negar agora tudo o que anteriormente afirmei porque nem sequer sei o que anteriormente afirmei. O que sei eu? Nada de nada. Dei uma de beatnik. Agora, veja bem, moço, eu sou professor de formação, lecionei minha vida toda, catedrático da Universidade e tudo, e mesmo assim posso afirmar que só sei aquilo que sei. Ou seja, nadinha de nada. Ou seja, só eu sei aquilo que eu sei e o que eu não sei, cê tá me entendendo? Tá entendendo que eu só sei aquilo que na verdade não sei? Viu onde eu queria chegar? Nossa mãe do céu, eu fico pensando em cada coisa. Já me embananei todo, vamos mudar de assunto. Você tem namorada? Não? Mas um moço assim tão vistoso que nem você, tinha que ter uns rabinho de saia. Sabe o que eu gosto muito nessa cidade?, de manhãzinha assim, bem cedinho, as pacas mastigando o gramado do Parque Barigüi na primavera, não é bonito? Ou então as pombas cobrindo feito peruca acinzentada a cabeça do Cavalo Babão no Largo da Ordem. Isso é que é o cu do chique, não as festas cafonas que a Elga dá. Hoje mesmo, enquanto preparava tudo pra festinha de amanhã, disse-me ela: Eu sou uma boa anfitriã, não? E eu disse assim, bastante didático: Elga, eu tava tentando ser generoso, mas esse teu olharzinho de carente profissional me deu uma súbita vontade de te tratar de um modo cretino. Deixa eu dar uma idinha ali no banheiro e então vamos embora, que cê acha?, pode ser?
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(...)
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Ufa! Dessa vez eu tava apertado. Viu, mas antes de ir embora, vamos esperar anoitecer, pra gente ficar achando que a cidade é só isso: luzes enfiadas no concreto. Sabe, eu também já cheguei a uma constatação séria acerca da mulherada, disso eu realmente já estou convencido, eu tenho mesmo certeza de que no fundo do fundo toda mulher não passa de uma verdadeira mulher, se é que você me entende? Isso, chama ela aqui, vamos falar essa bobagem pra ela, de repente ela nos acha simpáticos e vai querer discutir machismo e feminismo, vai ser uma delícia, que essas discussões só me aguçam a libido. Í, não é que ela está vindo mesmo. Olá, como vai? Espero não tê-la assustado com este beijinho nas costas da mão, antigamente fazíamos assim. Seja bem-vinda, viu, lindinha. Que tal uma coalhada com mel e uma Wimi? Como eu ia dizendo pro meu amigão aqui: Se você quer saber se as mulheres fazem comigo o que elas querem, eu vou dizer que sim, que as mulheres fazem comigo o que elas querem. Querida, você não se assuste com o vovô aqui, mas eu tenho que lhe dizer uma coisa: Esse teu cheirinho de quem acabou de sair do banho me provoca ideias adultas. Ah, quer dizer então que vocês dois já se conheciam? Cê tava esperando ela? Sei, ah, estudam juntos na Federal? Que beleza. Bom, então ficamos assim, até a próxima, tchau-tchau, até mais, e olha, não se esqueçam de verificar se o elevador está parado no andar quando vocês forem embarcar. Eu sei, eu sei que estamos no mezanino, mas mesmo assim, de boas intenções o inferno está cheio, não é verdade? Í, caramba, começou a chover de novo, não vai dar pra gente ir embora. Deixem que lhes fale da minha teoria da chuva. Pra mim, pingo de chuva é vaga-lume transparente, é vaga-lume se esborrachando no chão. Vocês viram aquela minha belezinha, o meu guarda-chuva amarelo? É, ele é um guarda-chuva amarelo porque é um girassol preto. Ah, está ali caído. Eu sou um velho, quase que não consigo me abaixar para apanhá-lo, pois posso travar a coluna a qualquer momento, mas mesmo assim eu me abaixo, que se dane, quando é preciso que eu me abaixe, eu abaixo.

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