sábado, 19 de setembro de 2009

três fragmentos de uma minha novela ainda inédita e sem nome

Miguel Bakun
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De repente me vem à memória o dia em que me vesti com camisa de babado e gravata borboleta confeccionados por Dona Zilá. Para o casamento de quem mesmo? Sei que você veio em meu quarto, divina, com um vestido amarelo, com laço nas costas. Os cabelos exalavam o frescor do condicionador que você acabara de usar no banho. Você me causou uma impressão e tanto. Até que minha mãe falou: O que é isso, Mana, vai de Botas Sete Léguas na festa? Olhei para seus pés e lá estavam, azuis, rudes, contrastando com a delicadeza do vestido. O meu sapato estava me matando, dona Gica. Imediatamente, eu que há horas vinha brigando com minha mãe por causa dos sapatos envernizados que mastigavam meus pés, corri colocar minhas botas também. Quer saber?, desisto de você, Jassei, se você quer ser um jacu, seja, lavo as mãos. Eu sou o gato de botas, mãe. Eu disse isso num tom brincalhão, exibindo-me um pouco para você, que riu. Eu queria mostrar que éramos cúmplices daquele crime da etiqueta. Não importava se minha mãe já saia puta da vida em direção ao quarto dela praguejando: Melhor eu ir ver teu pai, do jeito que esses Brennelli são, é bem capaz dele querer ir de botas também.

Eu tinha 12 anos e você 11. Não só por isso estávamos achando a cerimônia do casamento da sua prima (sim, era ela) uma coisa muito chata. Então fomos para o jardim atrás da igreja. Você olhou para os meus pés, aí deu um chutezinho leve nas botas. Erguemos os olhos e eles quiseram falar algo muito íntimo, que só os quatro, mais nossos 20 dedos dentro das botas, deveriam saber. Meu rosto estava sorrindo para tua boca, que veio e deu um beijo nele. Então a minha boca ficou com ciúme da bochecha e foi beijar a tua boca. Aceita casar comigo?, perguntei. Você ficou um pouco de perfil, olhando de viés para mim. Era aquela hora do lusco-fusco, você se destacava na tarde cinzenta feito um girassol. Demorou mais do que eu podia aguentar para responder, mesmo assim aguentei. Suspenso pelo temor da negativa, aguentei. Os sinos da igreja começaram a ir para lá e para cá com seu blém blém. Até que, por baixo daquele som, veio tua voz clara feito um copo de água: Aceito. E foi assim que nos casamos a primeira vez.
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(...)
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Os metereologistas não davam uma dentro. Devia estar uns três graus centígrados. Era muito cedo e a geada ainda não tinha dado sinais de que ia derreter. Depois do telefonema da tia Ruth não fiquei um minuto sequer sem pensar em você e na chácara. À noite não preguei o olho. Tinha as costas doloridas até que, não podendo acordar, pois não dormira, emergi da madrugada de gelo como um esquimó que vê seu iglu pegar fogo. Tomei café com leite e um misto-quente na panificadora na esquina do meu prédio, no centro, em seguida entrei no primeiro ônibus que vi e fui desembarcar só no terminal de Santa Felicidade. O dia ainda escuro. Andei até a nossa velha rua sem saída, quase não a reconheci com seu asfalto novo em folha, ainda molhado, por cima do chão batido. Tirei o caderno com capa de couro do tio Breno de dentro do bolso, abri, e lá estava: 50 propostas para uma vida melhor. Talvez eu estivesse tentando colocar algumas delas em prática. Não deixar que meus antepassados morressem em minha memória, era uma boa. Então me pus a escrever para você, porque, agora com a venda da chácara, com a doença da tua mãe e da tia Ruth, me deu um medo de ficar sozinho, de não aguentar. E como eu acho mesmo que não vou chegar a ser um desses velhinhos simpáticos, com problema de audição, sobrancelhas desgrenhadas, vestindo calça de veludo e pulôver que cheiram a mofo e sopa, tentando curar uma tosse crônica com xarope de mel... agora... eu... É uma pena que eu não vá chegar lá. Tanto meu pai quanto tio Breno foram esse tipo de anciões. Mas o que você tem com isso? Ainda mais depois de tantos anos? Não quero passar a vida sofrendo dessa nostalgia boboca. Tua vida agora é outra, talvez você sequer se recorde da família Brennelli, quem dirá da velha chácara que agora será vendida e, possivelmente, transformada em condomínio de luxo, ou numa fábrica, ou ainda num maldito shopping. Esse lugar que para nós, para mim pelo menos, talvez no passado tenha sido uma espécie de paraíso, belo e assombrado, como são as infâncias.

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