domingo, 2 de agosto de 2009

da oficina da minha novela a neve não tem gosto de algodão doce

Pretendo ir embora daqui uns meses. Não devo contar isso para ela. Vou. Longe do Rio poderei raciocinar melhor. Por enquanto é isso: guardo dela uma luz enrugada feito o rosto da velha que esqueceu que teve um amor. Essa velha fedida de quem alugo um quarto. Se vou preparar um chá, facas rompem as gavetas da cozinha, são abelhas à caça da carne cinza dos corações. Não preciso dessa porcaria. Antes de eu partir somente esse breu pastoso e a geometria das fomes e o fim dos labirintos no penhasco sem elevador. Um caracol de ossos debaixo dos trigais nas areias de Ipanema. Antes de eu me ir embora vejo as areias ficarem vermelhas de lágrimas, vejo o céu noturno rasgar-se num machucado, vejo um barco afundar no arco-íris. Tem dias que a chuva doe na janela e a lua apodrece feito laranja esquecida na fruteira. Resta dessa garota escombros de perfume, paisagens de ausência nas almofadas do sofá. A garota do cabelo encaracolado quer que minha coluna vertebral feito uma daquelas montanhas em Machu Pichu. O nariz um rio Nilo a escorrer depois de uns tiros. Os dedos, raízes de prédios do centro destruindo calçadas. Ela quer que eu tenha nos olhos nuvens que não socorrem pássaros que desistem de si mesmos no meio do vôo, e com isso eu não posso. Não posso com ela querer meu coração feito sapos que explodem kamikases em manhãs de domingo. A garota de cabelo encaracolado me enterra num mausoléu que não é familiar. Para ela sou o quê?, um pedaço de papel com um poema de amor cafona escrito por volta de 1910. Um poema que adoece depois é internado numa clínica chamada Desprezo. Talvez no dia em que eu partir eu morra mais por vergonha que por doença. E ela me conhece bem. Vai tirando as idéias da minha boca com beijos molhados e depois as sopra no ar. E esse é o ar que respiro.
.
Com um toque brando, feito descascasse a seda dos pêssegos, deixo-a nua. Caminho os lábios e logo chego na adega da sua alma. Há dor no cheiro dela. Então, juntos, ressuscitamos nossa inocência cantando das hortênsias as melodias. Não fosse a lei da gravidade e os seios dela seriam pequeninos satélites flutuando longe de minhas mãos. Os seios, luas sem lâmpada que ainda assim queimassem feito carvão em minha língua. Os seios, que contém sardas que são peixes que fogem para o meio das coxas com a mesma velocidade com que nadam os tubarões. No fundo dos amantes estão constelações soterradas, estão asas e alçapões, as cócegas, o haraquiri, miragens sem armadura. Sim, o amor é húmus, sabemos. Os bisturis do breu inscrevem mares e marasmos rupestres na carne dos namorados. Transformam lembranças da juventude em alucinações encubadas. Não há fome capaz de devorar o Mapa-Mundi. Escorpiões cavam cavernas no sangue, e morcegos estão enganchados que nem cabides nos sentimentos mais obscuros. Espera-se o momento zodiacal de se desencapsular, mas a missão nas placas tectônicas do ser acaba por sugar o veneno até o fim. Agora, enquanto penso que nunca deveria ter aceitado ir ao fundo de uma mulher como Nanda, arco-íris enferrujam. O amor é húmus, sabemos, e após os nove meses naturais aquilo não é mais lugar para os vivos.
.
Se tudo é tão triste por que escrevo?
Porque não calo minha mão?
Além do mais hoje está fazendo um calor de derreter carro-forte.
Quem é que conseguer pensar com um sol desses?
.
Minha vida virou essas malditas anotações. Não imaginava que um dia escreveria um livro, muito menos que Nanda viraria minha personagem. E agora que virou personagem de livro, será que sobreviverá nesse mundo intangível, invisível, em que estão esquadrinhadas as ficções? Ainda não me certifiquei se Nanda passa totalmente para o mundo encantado ou se a transformo em alguém escancaradamente ainda mais real. É Nanda um enredo, seja sua narração como ela preferir. Eis meu dramalhão: Nanda ou Nanda, meu SOS.
.
Sempre vai parecer rasurado, por mais que eu mexa, corrija, submeta ao copidesque esse texto. Vai sempre parecer malacabado, excessivo, porque eu me denuncio. Esse texto é meu sobrenome: Karneval. Os sentidos deságuam nas coisas do mundo ou não. O que afinal de contas faz uma geleira inteira derreter? Então saiba, meu pessimismo é falso. Saiba, caso eu pereça, faço-o de tanto pulsar meu coração nesse dia chuvoso. Saiba, as dores são só da dor. Saiba, isso começa aqui e não acaba logo ali. Saiba, sou tão discreto que acabo chamando a atenção. Saiba, sou tão previsível que chego de surpresa. Saiba, eu aprendo sempre outras coisas do mesmo das coisas. Quero ser um bicho de estimação, mas sou indomado. É uma pena, porque sei que as pessoas adoram estar sob o olhar cínico dos bichos de estimação. Quero despencar do andaime das horas e ficar para sempre assim, como ÉL (assim o evoco novamente) disse um dia: só inventando meu mundo particular, tirado de dentro desse mundo em que vivem os que ainda não se transformaram nas ficções dessa gente esquisita que são os contadores de estórias. Sei que sou um ser saído de dentro da porta que dá para as contradições. Sou como aqueles pombos penteando as telhas de uma casa com goteira. Tanto no subterrâneo quanto nas alturas se faz muita cagada.

3 comentários:

  1. cacete.

    (doeu só de ler. me perdi aí um monte de vezes. me achei tantas outras. vou imprimir e deixar na carteira pra eu me achar e me perder de vez em quando)

    ResponderExcluir
  2. parece alguma coisa que conheço, ao contrário; bonito...
    bj
    Leila Pugnaloni

    ResponderExcluir
  3. carol, você conhece as areias cariocas. bom saber que meu textinho ficará protegido na tua carteira. troque por água de coco quando quiser. bjs.

    leila, bom ter você passando por aqui. seja bem chegada. essas coisas essas coisas essas coisas... são mesmo sempre ao contrário, né não? bjs.

    lepre.

    ResponderExcluir