sexta-feira, 12 de junho de 2009

balbucios de blues

eu, fotografado por rosano mauro






você trincou os dentes
decepou a calma e o último cigarro

mas esqueceu que eu aprendi a usar escopetas
e tenho munição
e sei ser frio feito o mês de julho
e a música, nesses tempos
vai que é só um jeito de
enfrentar as assombrações da madrugada
pra isso não serve guitarra tosca nem violão sofisticado
escuta então, teu ouvido é bom
por baixo das canções os silêncios são eternos e enjoam
são rezas amaldiçoadas
são pesados pesadelos com zumbis a enfrentar
anjos tão caridosos que chegam a se desmoralizar

e você trincou os dentes
decepou a calma e o último cigarro

como se não fosse o desespero o cerne da tranquilidade
como se o que é letal não tivesse na morte sua rotina
e assim não acabasse finalmente o que não finda
exatamente como teve um dia em que alguém veio e
te disse: “isso aqui se chama noite
aquelas ali são as putas
o bar mais badalado é aquele
o mais vagabundo é aquele outro
e o resto é contigo.”
aí você logo soube que alguns blues salvam os
homens de morrer mais cedo em cada acorde

e você trincou os dentes
decepou a calma e o último cigarro

e achou que era importante respirar o
pulmão cianótico, viciado da cidade e
chorar com os cotovelos
e assim você passou a não ter tanta certeza se, de fato
uma casa com livros na estante
é mesmo um lugar seguro
aí você deu alguns socos em almofadas e
sentiu que era possível
depois você cansou
vestiu uma panca herdada de pacato cidadão e
mansinho, engatinhou
e passou a conversar com fadas
e comer batatinha frita com alegria sob o frio de
rachar os ossos dos que já faleceram

então você trincou os dentes
decepou a calma e o último cigarro

e foi asssim, você sempre tão intuitivo
logo sacou que nenhuma escola ia te ensinar a ter carisma
nem te daria a manha de cantar umas
baladas tristes pra impressionar as gurias.
alguém veio e te tranquilizou: “você é bom, garoto
você é muito bom”
não foi preciso que você envelhecesse muito pra
entender como tudo funciona, não é?
você sempre foi perspicaz

até que você trincou os dentes
decepou a calma e o último cigarro

então pensou com seus botões: "se você não é malvado
pelo menos faça cara de azedo
de furioso, porque não basta ser inteligente
por aqui é preciso agir com uma certa
severidade", não é mesmo?
mas que porra é essa
você é poeta ou é um delegado de polícia?
você é tão astuto
já devia saber que a poesia tá fora da poesia
que o teatro tá fora do teatro
e que a única coisa que interessa na
música é o silêncio que fica depois que
ela se desmancha na invisibilidade do ar
é esquisito confirmar que você ainda não
percebeu que perece de tanto pulsar o
coração desses dias chuvosos
você já devia saber, meu chapa
as dores são só da dor
mas você ficou bom nisso, né
você se tornou alguém muito bem humorado
você se tornou realmente grande

e trincou os dentes
decepou a calma e o último cigarro
e não é isso a fera

você vomitou em cima do que restava da ternura
e já era bem tarde
repara, joguei a toalha faz tempo
essa é a boa ou a má notícia?
a navalha tá afiada esperando alguém dar o
primeiro solo dissonante e
você ainda continua querendo
brincar de quem é mais triste
eu quero outra vida
já coloquei a chama dos olhos numa forminha de
gelo e guardei no congelador
e não me apazigua saber que
desde sempre
foi você o primeiro a desengarrafar o ódio
não eu

3 comentários:

  1. cada vez mais perfeito! denso, profundo, sombrio, com um toque de comicidade... quebras e ritmo maravilhosos... ah! querido Leprê. Vc sempre se supera e me arrepia... rsrsrsrs

    B-Juju

    P.s - Tô pensando seriamente na proposta de Agosto... tomara q consiga ir para Gélida mesmo!!!

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  2. obrigado, juju. você é a leitora que todo escritor sonha. venha mesmo em julho ou agosto tomar chocolate quente. bjs. lepre.

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  3. às vezes você me assusta...
    e isso, às vezes, não é necessário, luiz.
    espero que você esteja bem, apesar dos pesares...

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