quarta-feira, 28 de outubro de 2009

manual de putz sem pesares

Desenho de Mila F
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Retiro

Ela tinha se esgotado. Por isso tentou suicídio. A mãe quis enviá-la para um lugar onde encontrasse paz. Onde pudesse se recuperar. Ter contato com a natureza. Encontrar-se outra vez consigo mesma. Várias lendas rondavam a região. A que mais impressionou a moça era a que conta que lá morava uma velha com mais anos de existência do que qualquer pessoa poderia durar. Divertindo-se com tais estórias, excitada, a mãe enviou a filha para esse lugar considerado especial, onde seu primo de mesma idade vivia mais de três anos já. Quando viram um ao outro, ele se defrontou com segundos intermináveis da mais profunda catatonia da prima. É que o rapaz estava muito diferente. 15, 20 quilos mais magro, careca. A moça quase não acreditou, o menino de cabelos negros que vinham até a cintura, agora... A cor dele não era mais a mesma, a pele um tanto esverdeada. Mesmo assim, para ela, aquele ainda era muito seu primo. Foram criados juntos, grudados. O seu primo de sempre, que agora parecia um fantasma, só que meio fosforescente. Ele viera recebê-la na estação do vilarejo. Ao seu lado estava um garoto bonito e atencioso, porém calado. Os dois vestiam-se com roupas iguais. Foi o garoto quem carregou a bagagem dela. A vista do templo, no alto na montanha, era deslumbrante. O vilarejo, aos seus pés, os telhados das casas, uns juntinhos dos outros, pareciam de brinquedo. Ao redor havia um enorme jardim amarelo, o solo era plano e fértil. Ao longe ela podia divisar uma cadeia de montanhas, como fossem hematomas na pele de alguém. E uma enorme muralha que, vista de perto, certamente era gigantesca, mas de onde ela a mirava não passava de um risco no meio da cartolina verde e azul. Tudo imerso em silêncio, um enorme e ininterrupto silêncio. E se o silêncio costumava doer nela, agora isso era passado. Aquele de agora era algo precioso. Um cavalo pastava perto dali. Quando ele se aproximou a moça logo percebeu seu caminhar leve, chegando a duvidar se não era um unicórnio desses que recolhe as asas quando se depara com estranhos. O animal a inspecionou de uns dois metros de distância. Será que ficou curioso em saber a seu respeito? Como será essa curiosidade dos equinos? Será brabo ele? Quando balança o rabo enquanto pasta será que é por que se distraiu? E sua distração, não será vulnerabilidade? Será que os equinos atacam? Eram tantas as perguntas. As orelhas para frente significavam que ele se mantinha alerta. Como que para ganhar sua confiança, ela tentou demonstrar afeição pelo animal. E agora já fazia duas semanas que estava no templo. Nas manhãs, feixes de luminosidade entravam pela janela de seu aposento, seu corpo correspondia a tal afago fazendo com que a moça espreguiçasse de prazer respirando fundo. Ela acordava e, mesmo com medo de ser descoberta, ia olhar seus e-mails. Sempre fazia isso, aproveitava as primeiras horas da manhã, quando nada tiraria a concentração dos outros meditabundos seres, para se comunicar com a “civilização”. Aqui as horas duram três vezes mais, escrevia para uma amiga. Chove todos os dias, pelo menos durante meia-hora, contava para outra. Naquela manhã ela calçou as sapatilhas encharcadas por causa do orvalho. Unicórnio (esse foi o nome com o qual batizou o cavalo) apareceu. A moça ainda tinha medo dele. E achava que ele também nutrisse dúvidas a seu respeito, receios, mas não medo. Unicórnio, como que lhe dando bom-dia, fazia sempre a mesma coreografia, chegava lentamente, sempre mantendo uma distância de pelo menos dois metros. Intercalava as aproximações com trotes e galopes. Depois relinchava um pouco, e então ia embora. Um dia aconteceu algo inusitado. O animal contornou a horta e veio na direção da moça. Bem humilde, a cabeça baixa, o focinho como que querendo pesquisá-la, o rabo espantando moscas. De perto ela pode tocar sua pelagem branca como marfim. Ficou ali agradando seu pescoço torneado, enquanto ele fazia a digestão do capim no estômago. E assim selaram a amizade. Havia dias em que a lentidão e Unicórnio eram os únicos seres que passavam por perto de seus olhos. O primo e os outros viviam sumidos, fechados, imersos em seus exercícios de meditação. Só o garoto bonito da estação que não. Ele a observava de longe com frequência. Sempre nas horas mais impróprias. Quando ela ia se banhar no rio. Ou quando se agachava para urinar atrás de uma árvore. A moça chamou o garoto para perto diversas vezes, mas ele, reticente, rapidamente escapulia. No começo tanto a lentidão quanto o silêncio não eram suficientes para convencê-la de suas benesses. Era uma experiência, um trabalho dificílimo o desapego. Se ela estivesse levando à sério mesmo, não estaria passando tantos e-mails, fazendo pesquisas longas na internet feito uma viciada, pensava. Silêncio e lentidão. Silêncio e lentidão, a dupla dinâmica, o Batman e Robin dos sábios. A moça não sabia se dentro dela estavam agindo exatamente como apaziguadores tanto um quanto outro. Numa ocasião teve ganas de maltratar Unicórnio. Pegou um bambu do chão e acertou o mesmo pescoço já habituado a seus afagos com força. O bicho não entendeu, a moça então levantou os braços e foi para cima dele novamente. Até que, assustado, Unicórnio fugiu. Era aquele o primeiro passo, tornar-se bruta, deixar que a brutalidade viesse à tona para, em seguida, ser apaziguada? Não estava bem certa quanto estava arrependida de ter machucado seu único amigo. Também não tinha ido até lá para isso. Só queria visitar o primo, mais nada. Mas agora estava quebrando a cabeça com mil pensamentos, logo quando deveria esvaziar a cabeça, zerar a cabeça, deixá-la, seria bem bom, oca. Seria uma falta de respeito, inclusive, ignorar tal evidência, e até mesmo falta de sensibilidade, mas o fato é que quando você está em um lugar tão profundamente místico, é impossível ignorar o fato de que você está em um lugar tão profundamente místico, foi o que escreveu em seu último e-mail para mãe. Depois disso não deu mais notícias. Excetuando o garoto que a rondava, os “caras” com quem ela convivia estavam “na deles”. E eles não eram um mistério tão sinistro assim. Por mais que a cada dia entendesse mais profundamente que o seu primo de três anos atrás já não era a mesma pessoa que esse magricela de agora, que sequer demonstrava qualquer afeto por ela. A moça perguntava a si como encontrar a estradinha de terra vermelha que a levaria onde tinha de ir. Meditação, horas e horas de meditação, meditação até não existir mais a noção de tempo. Essa era a resposta. Então, nas semanas que seguiram ela se dedicou com afinco aos exercícios da contemplação. Passava horas a mirar o céu. E o céu lhe trazia a sensação de estar no interior de um cinema 180 graus, como seu corpo fosse parte da tela, sendo engolido. Um dia a moça passou a notar que a maioria das dores e angústias que sentia não eram verdadeiras. Não passavam de fagulhas de atos vergonhosos pelos quais ela até então não havia se responsabilizado e, a despeito de tais atos, insistira em afirmar que realmente não se envergonhava. Passou a pensar que talvez suas mazelas fossem no fundo mazelinhas, e que qualquer pessoa, por mais ingênua e inofensiva, não teria para com ela a mínima piedade. Nem mesmo Unicórnio, que nunca mais tinha dado as caras por ali. No entanto, a escuridão sob a qual vivera durante os últimos 30 anos, não apenas lhe exigiam atenção, porém, mais do que isso, queriam a todo custo permanecer insuportáveis. Ela acreditava que seu diálogo com as trevas havia resultado em frutos interessantes, embora não menos amargos. Achava que a tinham ajudado crescer como ser humano. Por isso, a moça não sabia se o que estava vivendo naquele lugar de terras vastas de fato estava acontecendo, ou se era obra de sua auto-sugestão. Como da vez passada, um ano e meio atrás, em que entrara em processo de surto esquizofrênico no meio do shopping, quando era ameaçada por vozes malignas. Será mesmo que estava num templo, num retiro? Ou apenas fechada no quarto minúsculo de seu apartamento no centro da cidade barulhenta? Ela não sabia o que pensar, e mesmo assim pensava: Para que tudo isso, para ficar como meu primo? Mas ele já não é meu primo. Agora estava se perguntado quem era ele e quem era ela afinal? E também quem era aquele que chamava de Unicórnio? E por que um Unicórnio e não outro ser qualquer? Que simbologias encerrava um equino com asas? E se aquele era mesmo um unicórnio, não devia haver um chifre em sua fronte? Não, ela não devia fazer tantas perguntas, não ali no templo. Devia apenas aceitar sua condição e tentar se aprimorar como ser humano. Mas qual ser humano? Ela mesma, ora bolas, a garota esgotada do trabalho dividido com a faculdade. A louca. Era ela uma louca? Isso não sabia. Sabia apenas que era alguém sem amor, sem preocupações legítimas. Mas só até o momento em que a mãe viera salvá-la, enviando a filha para tal retiro. Mas não era possível, pois uma mãe como a sua não tinha capacidade para salvar ninguém. Ao contrário, não havia ambiente em que a megera entrasse que imediatamente as pessoas não se sentissem sufocadas. Aquilo que tinha vivido até então, antes de vir para o templo, aquilo sim fora uma vida de renuncias, não essa de agora. Todavia é preciso aceitar o passado, engendrá-lo sem dor. Com seus botões pensava: A vida é curta demais para... Para quê? Não fazia ideia. Depois de algum tempo, quando já não contava as horas nem os dias, seu amigo de quatro patas voltou a procurá-la. A moça reparou que a pelagem dele havia mudado de cor. Escurecera. Unicórnio parou de pastar de repente e estudou as condições que o cercavam. Não a ignorava mais. Seus olhos estavam sem susto e pareciam botões de girassóis. Coisas da natureza. Manso, veio lamber sua mão. Ela pediu desculpas por tê-lo maltratado. Ele bufou na palma da mão dela. Então se afastou galopando para longe, os cascos riscando o silêncio dos séculos. Quando a moça se virou viu que, encostado numa árvore, o garoto bonito assistia a cena. Desde o começo daquela manhã a estava sondando. Ela já não suportava a maneira como ele a olhava, sempre terno, anestesiado, a cabeça levemente caída para o lado esquerdo como quem dissesse “ah, minha amiga”, uma das sobrancelhas erguidas e a testa franzida. Era chegada a hora de voltar para casa. Sentia falta de sentir raiva, violência. Sentia falta de sua insanidade, e isso não a envergonhava. Ela era uma mulher que estando com uma dor de dente pavorosa sentia prazer em tal dor. Ela era assim, o que podia fazer? Então por que ainda estava ali? Se nem seu parente mais aquele moço era. Sequer trocaram duas palavras durante a temporada toda. Fugia de quem, afinal? Buscava o quê? Todo aquele tempo sem fumar. Sem comer carne. Naquele dia mesmo começaria a se re-entregar a sociedade. Antes não tivera coragem de sair do templo. Mas agora era o momento. Então foi até o vilarejo a procura de cigarros e guloseimas. Talvez bebesse um pouco de vinho. Não era preciso ter acompanhado o calendário, pela variedade de cores sabia, a primavera se já havia se instalado. Andou entre as pessoas da vila arcaica como estivesse no meio de alguma miragem. Olhou para cima e lá estava o templo, um lugar raro no mundo. A moça pensou: Às vezes se tem o privilégio de estar em certos oásis, viver neles, e não devemos viver nos perguntando o significado disso, estar aqui é o significado em si. Andou até cansar. Então entrou num armazém para pedir um pouco de água. O garoto que a espreitava regularmente estava ali. Oi. Oi, você trabalha aqui? Trabalho. Por que você vive me espionando? Porque eu gosto de você. E por que não veio nunca falar comigo? Mas eu já estive com você uma vez. Quando? No dia em que você chegou, na estação, eu carreguei sua mala. É verdade, mas depois ficou me espionando e jamais deu um tchau sequer. É que é proibido falar com as pessoas nas dependências do templo, por isso eu me aproximava de você só em forma de cavalo. O quê, do que você está falando? Eu sou Unicórnio. Você é louco?, não estou entendendo. A lenda. Qual lenda? A da velha com mais anos de existência do que qualquer pessoa poderia durar, a velha que pode se transformar em jovens belos, tanto do sexo masculino quanto do feminino, ela também pode se transformar em animais se quiser. É só uma lenda idiota, disse a moça. Não é não, falou o jovem. A moça silenciou, afastou-se daquele sujeito esquisito e foi procurar algo nas prateleiras do armazém. Quando voltou a olhar para ele, notou que sua coluna tinha dobrado e os cabelos virado palha branca. O moço agora, para seu espanto, era uma velha. A pele do rosto estragada pelo sol que durante a vida toda lhe perseguiu nas colheitas. Suas mãos cheias de manchas e enrugadas. A velha não ria, os olhos abissais, brutos. A moça sentiu um frio a lhe percorrer o sangue, dos pés a cabeça. Ficou com medo. Quis sair correndo. Mas alguma força inexplicável a impediu. A moça observou que a camponesa tremia a mandíbula e que não restavam muitos dentes em sua boca, mesmo assim ouviu claramente a voz infantil que veio de sua fala anciã: Que bom que você está entre nós, querida. Que bom que você está entre nós, querida, a frase se repetiu como que num eco próximo atingindo a moça pelas costas. Quando ela se virou, seu primo também estava ali.

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