Três sonhos com a mesma menina
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1
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Se aquele era o centro sujo da cidade, por que a menina calçava meias apenas? Se estava tão constipada nessa manhã de julho, por que vestia somente um pano leve e mais nada? E, afinal de contas, desde quando ela usava camisolas? Ela que sempre tinha sido de dormir só de calcinha ou, em dias de muito frio, com um moletom velho cobrindo o corpo. As pedras portuguesas da calçada pareciam pulsar feito sapos na frente da loja, de onde surgia um som encaixotado. Foi ali, só pode ter sido. Ela olhou para caixa de onde vinha o som, a voz de um radialista com microfone na mão. A voz entoava cantos fúnebres de “compre!, compre agora!, promoção!”. A menina sentia frio. Por causa disso entrou na loja achando que entrava na voz de radialista. Frio, frio e mais frio. A menina buscava ao menos um cachecol que pudesse proteger seu pescoço de cantora. Dentro da loja, andou pelas seções. Experimentou agasalhos, pulôveres. Perguntava sempre o preço de cada peça. Já havia esquecido a existência da voz de radialista quando escutou uma sequência de tossidas. Só então olhou para a entrada da loja. A voz de radialista com microfone na mão havia se engasgado com o caroço da palavra “mercadoria”. A voz fazia “harg, urgh, huhuguer”. As vendedoras, vindas da ala de lingerie, acudiram a voz. Deram socos com o lado das mãos nas costas do engasgado. Quando finalmente conseguiram salvar a voz, feito ela própria fosse o fatídico caroço a menina foi cuspida para fora da loja. Mas de caroço ela não tinha nada, na verdade foi assim: Ocorreu que as vendedoras acharam demasiado estranho o fato daquela menina estar apenas de meias e camisola zanzando pelas dependências da loja, então a expulsaram quando, após patética perseguição, finalmente conseguiram como que capturar a rebelde. Já cuspida, ela se viu novamente na calçada, onde agora só havia silêncio e pessoas passando olhando para os próprios pés, nem sinal de voz de radialista com microfone na mão. Foi aí que a menina achou que deveria também olhar para os seus pés, pois suspeitou que algo novo havia com eles. Correto, agora estava descalça. Sem meias, pés nus pisando em sapos. Mas como?, perguntou a si mesma. Então lembrou. E, como que em flash back, reconstituiu a cena. A voz de radialista com microfone na mão, no momento em que a menina tinha entrado no provador de roupas para se afugentar das atendentes da loja, a voz de radialista veio atrás dela. Os dois, a menina e a voz, dividiram por alguns segundos o mesmo provador. Por pouquíssimo tempo, é verdade, mas o suficiente para a voz de radialista arrancar com os dentes as meias da menina e lamber seus pés. Para não ser pega em flagrante, rapidamente a voz de radialista correu para seu posto lá na frente da loja. Acontece que, gulosa, acabou se engasgando com o chulé rosáceo da menina. Não era daquele dia que o tola voz consumia vorazmente meias de meninas de vinte e poucos anos que andavam semi-nuas pelo centro da cidade em plena luz do dia. Quando o flash back acabou, a menina se pegou atônita, por um longo tempo sem saber o que fazer, para onde ir. Até que decidiu que iria recuperar suas meias. Por mais babadas que elas estivessem. Por mais estúpidas que fossem as atendentes da loja. Por mais que ela tivesse que novamente entrar naquela voz clichê de radialista com microfone na mão. Ela iria recuperar suas meias. E também devolveria o cachecol de flanela que tinha roubado e trazia pendurado no pescoço. Era um cachecol deveras confortável, mesmo assim o devolveria, pois ladra a menina jamais tinha sido. Essa decisão não foi tomada de uma hora para outra, levou pelo menos a tarde toda daquela segunda-feira. Quando finalmente, com seus pés nus, resolveu dar o primeiro passo. Mas daí já havia anoitecido e a loja fechado. E continuava chovendo.
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2
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Cinco graus. Saio correndo pelas ruas. Não há viva alma na cidade. Os postes de luz derreteram. É escura a neblina, e fede. Chego numa praça. Três da madrugada. E o meu desassossego é uma menina com um vestido de lantejoulas prateadas, com nada por baixo, nem casaco que lhe proteja. Seus olhos estão borrados. Ela acabou de fugir de um teatro em chamas. A menina está sendo mastigada por um coração glamuroso e sonoro. Um coração cheio de dentes afiados que a cada mordida a anestesia mais. E é desesperador, porque essas mordidas vão deixando ela bonita. Ela se sente poderosa. Ela está tão feliz. Ela se vira para os flashs dos fotógrafos e diz “eu tenho uma boca dentro de mim”. Depois disso, cada vez que tenta enunciar um verso de alguma canção sai fogo cuspido de sua boca, de suas narinas. Esse movimento provoca uma dor lancinante em seu estômago. Eu me aproximo e tomo um susto: “Meu deus, conheço essa menina”. Chamo seu nome. Falo quem sou e de onde. Não há o que faça ela me reconhecer. Ela continua dizendo “eu tenho uma boca dentro de mim, eu tenho uma boca dentro de mim”. Os flashs das câmeras parecem atingi-la como uma saraivada de flechas do mais afiado e venenoso metal. A menina sangra. Só eu posso ver seu sangue invisível. Uma equipe de bombeiros se aproxima, pois as árvores da praça estão com as copas ardendo, amarelas e vermelhas. O dia começa a raiar. Não há transeuntes. Não há automóveis. De repente, ao som de uma frase dita por mim, bombeiros e fotógrafos desaparecem. E, como que saída de um transe, a menina se apazigua. Em seguida se entristece. Por que estou triste, o que aconteceu, onde estão os expectadores? O dia já está claro, posso ver quanto ela se machucou. Num movimento preciso a embrulho em minha japona. Ela me olha sem entender. Então, experimenta meu rosto com as mãos. Diz meu nome. Se sou eu mesmo, quer saber. Digo que sim. Depois ela fala docemente: “Você não é meu pai, você não é minha mãe, você não é nada meu e está aqui... você é meu outro coração, sem som, sem anestesia.”
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3
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Com uma voz de barriga, ventre. Não uma voz de boca e cordas vocais. Com essa outra voz, porosa, a menina pede “me chupa”. O homem se abaixa. Ela abre as pernas manchadas com hematomas azul-rosáceos. Loiro é o homem. E sem barba. O seu é um rosto liso feito um bloco de gelo que lentamente derretesse. Ele afasta a calcinha da menina para o lado. Os pentelhos surgem macios. A boca do homem vence o tufo e sua língua encosta na parte úmida, na carne borbulhante. A língua do homem é um punhado de neve que ao sutil toque na frigideira evapora. A menina geme baixo. Um sussurro grave e falhado vem de sua barriga ao mesmo tempo em que a menina pede “me bate”. O homem, sons misturados em suas orelhas, pensa ter ouvido errado. Então pergunta “quê?” E a menina “me machuca”. E o homem, um tanto sem crer, diz “isso eu não faço”. “Faz sim, estou pagando”. O homem, que não se lembra de ter recebido dinheiro algum da menina, apenas reage com a frase “eu não gosto de bater nas pessoas”. “Se você não gosta, quem foi que imprimiu esses hematomas nas minhas pernas?” O homem sabe que não foi ele. Essa é a primeira vez que se encontra com a menina. E ele jamais a machucaria. Ele está confuso. Como que para elucidá-lo a menina começa a narrar a minúcia com que o homem espancou anteriormente suas coxas. A cada barbaridade explicitada com ênfase e gozo o homem só sabe dizer “como!?” São comos!? de susto, dúvida, descrença. O homem não consegue se controlar. É impossível para ele não perguntar “como!?” cada vez que a menina precisa avançar no relato da violência que sofrera a gosta. E assim os dois passam juntos de sexta à segunda-feira. É um tormento para ele. E um deleite para ela. Ao final da manhã de segunda, o homem de tanto e como saber, entra em colapso, fica catatônico, rijo feito um bezerro de frigorífico. Então, sem mais o que sugar, a menina, entediada, veste-se e vai embora. Entra no elevador. Nele está um homem loiro, sem barba, pele lisa feito um bloco de gelo que aos poucos derretesse. “Está descendo?”, pergunta a menina. “Subindo”, diz ele. Quando chegam ao andar de destino, o homem desembarca. A menina desce em seguida. Ele não repara. Enfia a chave na porta e avança no apartamento. A menina atrás. O homem não repara. Despe-se no quarto. Vai para o banheiro e entra no banho. Demora-se, gasta bem o sabonete de ervas. Quando, nu, volta ao quarto, sobre a cama vê a menina vestindo uma calcinha apenas. O homem não pode deixar de notar a quantidade de hematomas nas coxas da menina. As manchas parecem a todo instante, acusatórias, gritar “foi você! foi você!” Inibido, o homem cogita tomar alguma providência. Mas uma voz poroso, vinda da barriga, do ventre da menina penetra em seu sangue feito curare.
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Se aquele era o centro sujo da cidade, por que a menina calçava meias apenas? Se estava tão constipada nessa manhã de julho, por que vestia somente um pano leve e mais nada? E, afinal de contas, desde quando ela usava camisolas? Ela que sempre tinha sido de dormir só de calcinha ou, em dias de muito frio, com um moletom velho cobrindo o corpo. As pedras portuguesas da calçada pareciam pulsar feito sapos na frente da loja, de onde surgia um som encaixotado. Foi ali, só pode ter sido. Ela olhou para caixa de onde vinha o som, a voz de um radialista com microfone na mão. A voz entoava cantos fúnebres de “compre!, compre agora!, promoção!”. A menina sentia frio. Por causa disso entrou na loja achando que entrava na voz de radialista. Frio, frio e mais frio. A menina buscava ao menos um cachecol que pudesse proteger seu pescoço de cantora. Dentro da loja, andou pelas seções. Experimentou agasalhos, pulôveres. Perguntava sempre o preço de cada peça. Já havia esquecido a existência da voz de radialista quando escutou uma sequência de tossidas. Só então olhou para a entrada da loja. A voz de radialista com microfone na mão havia se engasgado com o caroço da palavra “mercadoria”. A voz fazia “harg, urgh, huhuguer”. As vendedoras, vindas da ala de lingerie, acudiram a voz. Deram socos com o lado das mãos nas costas do engasgado. Quando finalmente conseguiram salvar a voz, feito ela própria fosse o fatídico caroço a menina foi cuspida para fora da loja. Mas de caroço ela não tinha nada, na verdade foi assim: Ocorreu que as vendedoras acharam demasiado estranho o fato daquela menina estar apenas de meias e camisola zanzando pelas dependências da loja, então a expulsaram quando, após patética perseguição, finalmente conseguiram como que capturar a rebelde. Já cuspida, ela se viu novamente na calçada, onde agora só havia silêncio e pessoas passando olhando para os próprios pés, nem sinal de voz de radialista com microfone na mão. Foi aí que a menina achou que deveria também olhar para os seus pés, pois suspeitou que algo novo havia com eles. Correto, agora estava descalça. Sem meias, pés nus pisando em sapos. Mas como?, perguntou a si mesma. Então lembrou. E, como que em flash back, reconstituiu a cena. A voz de radialista com microfone na mão, no momento em que a menina tinha entrado no provador de roupas para se afugentar das atendentes da loja, a voz de radialista veio atrás dela. Os dois, a menina e a voz, dividiram por alguns segundos o mesmo provador. Por pouquíssimo tempo, é verdade, mas o suficiente para a voz de radialista arrancar com os dentes as meias da menina e lamber seus pés. Para não ser pega em flagrante, rapidamente a voz de radialista correu para seu posto lá na frente da loja. Acontece que, gulosa, acabou se engasgando com o chulé rosáceo da menina. Não era daquele dia que o tola voz consumia vorazmente meias de meninas de vinte e poucos anos que andavam semi-nuas pelo centro da cidade em plena luz do dia. Quando o flash back acabou, a menina se pegou atônita, por um longo tempo sem saber o que fazer, para onde ir. Até que decidiu que iria recuperar suas meias. Por mais babadas que elas estivessem. Por mais estúpidas que fossem as atendentes da loja. Por mais que ela tivesse que novamente entrar naquela voz clichê de radialista com microfone na mão. Ela iria recuperar suas meias. E também devolveria o cachecol de flanela que tinha roubado e trazia pendurado no pescoço. Era um cachecol deveras confortável, mesmo assim o devolveria, pois ladra a menina jamais tinha sido. Essa decisão não foi tomada de uma hora para outra, levou pelo menos a tarde toda daquela segunda-feira. Quando finalmente, com seus pés nus, resolveu dar o primeiro passo. Mas daí já havia anoitecido e a loja fechado. E continuava chovendo.
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Cinco graus. Saio correndo pelas ruas. Não há viva alma na cidade. Os postes de luz derreteram. É escura a neblina, e fede. Chego numa praça. Três da madrugada. E o meu desassossego é uma menina com um vestido de lantejoulas prateadas, com nada por baixo, nem casaco que lhe proteja. Seus olhos estão borrados. Ela acabou de fugir de um teatro em chamas. A menina está sendo mastigada por um coração glamuroso e sonoro. Um coração cheio de dentes afiados que a cada mordida a anestesia mais. E é desesperador, porque essas mordidas vão deixando ela bonita. Ela se sente poderosa. Ela está tão feliz. Ela se vira para os flashs dos fotógrafos e diz “eu tenho uma boca dentro de mim”. Depois disso, cada vez que tenta enunciar um verso de alguma canção sai fogo cuspido de sua boca, de suas narinas. Esse movimento provoca uma dor lancinante em seu estômago. Eu me aproximo e tomo um susto: “Meu deus, conheço essa menina”. Chamo seu nome. Falo quem sou e de onde. Não há o que faça ela me reconhecer. Ela continua dizendo “eu tenho uma boca dentro de mim, eu tenho uma boca dentro de mim”. Os flashs das câmeras parecem atingi-la como uma saraivada de flechas do mais afiado e venenoso metal. A menina sangra. Só eu posso ver seu sangue invisível. Uma equipe de bombeiros se aproxima, pois as árvores da praça estão com as copas ardendo, amarelas e vermelhas. O dia começa a raiar. Não há transeuntes. Não há automóveis. De repente, ao som de uma frase dita por mim, bombeiros e fotógrafos desaparecem. E, como que saída de um transe, a menina se apazigua. Em seguida se entristece. Por que estou triste, o que aconteceu, onde estão os expectadores? O dia já está claro, posso ver quanto ela se machucou. Num movimento preciso a embrulho em minha japona. Ela me olha sem entender. Então, experimenta meu rosto com as mãos. Diz meu nome. Se sou eu mesmo, quer saber. Digo que sim. Depois ela fala docemente: “Você não é meu pai, você não é minha mãe, você não é nada meu e está aqui... você é meu outro coração, sem som, sem anestesia.”
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Com uma voz de barriga, ventre. Não uma voz de boca e cordas vocais. Com essa outra voz, porosa, a menina pede “me chupa”. O homem se abaixa. Ela abre as pernas manchadas com hematomas azul-rosáceos. Loiro é o homem. E sem barba. O seu é um rosto liso feito um bloco de gelo que lentamente derretesse. Ele afasta a calcinha da menina para o lado. Os pentelhos surgem macios. A boca do homem vence o tufo e sua língua encosta na parte úmida, na carne borbulhante. A língua do homem é um punhado de neve que ao sutil toque na frigideira evapora. A menina geme baixo. Um sussurro grave e falhado vem de sua barriga ao mesmo tempo em que a menina pede “me bate”. O homem, sons misturados em suas orelhas, pensa ter ouvido errado. Então pergunta “quê?” E a menina “me machuca”. E o homem, um tanto sem crer, diz “isso eu não faço”. “Faz sim, estou pagando”. O homem, que não se lembra de ter recebido dinheiro algum da menina, apenas reage com a frase “eu não gosto de bater nas pessoas”. “Se você não gosta, quem foi que imprimiu esses hematomas nas minhas pernas?” O homem sabe que não foi ele. Essa é a primeira vez que se encontra com a menina. E ele jamais a machucaria. Ele está confuso. Como que para elucidá-lo a menina começa a narrar a minúcia com que o homem espancou anteriormente suas coxas. A cada barbaridade explicitada com ênfase e gozo o homem só sabe dizer “como!?” São comos!? de susto, dúvida, descrença. O homem não consegue se controlar. É impossível para ele não perguntar “como!?” cada vez que a menina precisa avançar no relato da violência que sofrera a gosta. E assim os dois passam juntos de sexta à segunda-feira. É um tormento para ele. E um deleite para ela. Ao final da manhã de segunda, o homem de tanto e como saber, entra em colapso, fica catatônico, rijo feito um bezerro de frigorífico. Então, sem mais o que sugar, a menina, entediada, veste-se e vai embora. Entra no elevador. Nele está um homem loiro, sem barba, pele lisa feito um bloco de gelo que aos poucos derretesse. “Está descendo?”, pergunta a menina. “Subindo”, diz ele. Quando chegam ao andar de destino, o homem desembarca. A menina desce em seguida. Ele não repara. Enfia a chave na porta e avança no apartamento. A menina atrás. O homem não repara. Despe-se no quarto. Vai para o banheiro e entra no banho. Demora-se, gasta bem o sabonete de ervas. Quando, nu, volta ao quarto, sobre a cama vê a menina vestindo uma calcinha apenas. O homem não pode deixar de notar a quantidade de hematomas nas coxas da menina. As manchas parecem a todo instante, acusatórias, gritar “foi você! foi você!” Inibido, o homem cogita tomar alguma providência. Mas uma voz poroso, vinda da barriga, do ventre da menina penetra em seu sangue feito curare.
Ha Leprevost!
ResponderExcluirAssumo meu vício. É inevitável!
bj
eita... venha sempre. bj.lepre.
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