quinta-feira, 23 de abril de 2009

pecinhas para uma tecnologia do afeto

Algodão doce

Ela dorme em pé. Tem mais de 70 anos que ela dorme em pé. Ela tem mais de 70 anos de idade, talvez ela tenha 140 anos, mas ela parece uma menina de 20 anos no máximo. Ela é baixinha, não é uma criança, mas quando quer consegue convencer de que sim ela é uma criança que dorme em pé. Ela nunca deita. Não é fácil deitar seus 140 anos sobre um colchão. Também não é fácil carregá-los sobre os tornozelos, mas é mais fácil que deita-los os 140 anos. Certo. Além disso, há mais de 194 pacotinhos fechados em cena, são pacotinhos de algodão doce.

se quisesse
eu podia ´tar gargalhando
exultante
tem dias já
que não chove cinza nem
desaba calor demais
desse céu de

se quisesse
eu podia ignorar
meus pudores de ser feliz

Ela abre um pacotinho e come o algodão doce rosa.

mas eu
sei ser feliz?

não sei

digo, não é que eu não saiba
é só que não sei se sei
e nem vou perguntar mais depois dessa
última vez

olha

Ela levanta o vestido que é mais uma nuvem cinza do que um vestido, ela levanta a nuvem e mostra os tornozelos avariados.

eu tô satisfeita
pode apostar
eu tô muitíssimo satisfeita
em poder caminhar pelas ruas sem
perder o equilíbrio
eu tô
quem sabe
até agradecida ao universo, vai saber
por ter ossos, músculos
colágeno, nervos, tendões, gengiva
e esses órgãos

Do meio dos algodões doces ela retira um saco plástico, sujo, nojento, sanguínio.

quase
bem protegidos

e embora
eu não seja nenhum Einstein
esse cérebro, sim
é deveras aventureiro ter
esse cérebro
que me ajuda a sentir melhor
e mais profundo

esse objeto

Mostra uma edição de A Origem das espécies, do Darwin.

é o meu coração
no mês que vem não sei
o que será dele, digo
do coração
não da teoria desse autor

nesse mês
enquanto leio esse coração
meu cérebro está sentimentalóide
o livro não é sentimentalóide
objetos não são sentimentalóides
teorias não deveriam ser sentimentalóides
o meu cérebro, no entanto
o meu cérebro é sentimentalóide

por sua vez
meu coração é
um trabalhador braçal
de fato exige muque
exige braço
a leitura de um coração como esse

não pense que
peguei na minha
biblioteca
ao acaso
esse objeto grosso
repleto de magia
pesado de genialidade
não pense que
fiz isso de pegá-lo
só pra fazer uma cena
em que é necessário
um livro grosso
caudaloso
místico, não
eu
de fato
estou falando
desse coração chamado
A Origem das espécies
esse irmãozinho mais novo
da Bíblia

meu cérebro
é sentimentalóide
meu coração
um trabalhador braçal
isso eu já disse, mas
eu não disse que
sendo meu cérebro um
bobão-babão
e meu coraçãozinho
um estivador
com os dois um de bem
com o outro
eu posso filosofar
posso até bancar a poetisa
posso gritar vivas para o corpo
já que o corpo é
um brinquedo e tanto

o corpo é
um brinquedo e tanto
isso eu descobri
com meu primeiro namorado, Darwin
com ele eu tinha uma fábrica
de suco de saliva
era só juntar língua
com língua
e a gente tinha que
engarrafar e
comercializar o suco

ai ai

ai ai ai

se quisesse
eu podia mesmo
estar gargalhando

nem vou fazer
uma lista de
males que eu não tenho
e de sortes que eu tenho, sei lá
bênçãos, vai saber

lista de coisa nenhuma
vou fazer

Eis o momento para uma longa pausa.

uma lista
de coisa nenhuma
vou fazer, mas
por causa de tudo
que eu disse, acho que
se faz necessário que
eu diga que
não sofro de diabetes

Ela fala isso sofrendo, enquanto começa a tentar deitar.

não sofro de diabetes
não sofro de dia
não sofro de
não sofro
não
sofro

Ela tenta, mas não consegue deitar. Mas uma vez em 140 anos ela não consegue deitar. Ela já está chorando.

talvez seja por isso
que nesse momento eu
esteja tendo esse
surto de
algodão doce







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