quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

só é ilusão aquilo que não esqueço, o resto foi real

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.....Seu nome era Maria, mas desde pequeninos sempre chamamos você de Mana. Você não era nossa irmã, mas tinha sido criada conosco. Você foi minha primeira namorada. Namorada de apalpar, de alga e musgo. Namorada que impregna no sangue. Agora que sua mãezinha, a mulher caridosa que ajudou em minha criação, agora que ela está velhinha e você desacordada numa UTI, me vi obrigado a reviver o passado.
.....Ontem mesmo avancei na rua com anti-pó. A maioria das casas exibia a propaganda de um vereador, o amigo do bairro. Me aproximei da cerca da casa de madeira, um cachorrinho branco com manchas azuladas e marrons abanou o rabo pra mim. Abaixei, deixando que lambesse minha mão. Acariciando suas orelhas, perguntei: É aqui que mora Dona Elza?
.....É aqui mesmo, veio uma voz sem força da lateral da casa.
.....Levantei pra olhar e ali estava a velha empregada da família Brennelli, sua mãezinha, com os cabelos completamente cinzas, de camisola, óculos de leitura pendurados no pescoço e as mãos sujas de mexer na terra.
.....Jassei, quanto tempo, o que faz aqui?
.....Vim dar um oi.
.....Entre, entre, querido.
.....Elza abriu o portão e o cachorrinho veio brincar comigo.
.....Umbigo, deixe o Jassei em paz, vá, vá pra lá.
.....E o espantou. Mas Umbigo, dado a estripulias, não respeitou a dona. De modo que Elza precisou trancá-lo na cozinha. Voltou, e então me conduziu a sala com tantos retratos, você sorrindo, fazendo poses neles. Havia um em que estávamos todos nós, muito jovens ainda, vestidos à caráter. Era uma das festas juninas que aconteciam todo ano em nossa chácara, com fogueiras enormes e todas as brincadeiras típicas. Na foto, eu e Tatit abraçados em você, um em cada lado. Ainda ingênuos da confusão sem fim que nos meteríamos.
.....Tatau, que tinha um chamego pela filha do Seu Chiquinho, da padaria, em outra foto tem a mim de um lado e a menina de outro. Naquele mesmo dia Tatau a havia convidado pra dançar a quadrilha, mas a menina fora só recusas, até o momento em que a mãe, esposa de Seu Chico, interveio a favor de Tatau. Então, lá foram pro meio do salão, Tatau e a Chiquinha, que era como a gente chamava ela. E Tatit com você.
.....Lembra Elza?, eu fiquei emburrado, bebendo quentão escondido, pois nós crianças éramos proibidos de beber aquilo, se vó Beatriz nos pegasse a gente recebia uns bons puxões de orelha.
.....E teu tio Breno nem ligava, disse e riu Elza.
.....E assim entramos a manhã conversando. Elza disse estar bem. Estava um pouco mais animada porque os médicos disseram a ela que o seu quadro, Mana, graças a Deus, era estável. Essa foi a deixa pra que, finalmente, eu tomasse coragem e perguntasse como tinha sido o acidente.
.....Você não soube?
.....Não.
.....Então ela me contou que depois que você e Tatit assinaram os papéis do divórcio, saíram da Vara de Família e foram tomar um café, e que mais uma vez discutiram, e que você ficou muitíssimo nervosa e disse que agora que você era livre novamente iria me procurar naquele mesmo instante, e que então Tatit ficou louco, xingou você aos brados no meio da rua dizendo que um novo processo começaria, o da guarda das crianças, caso você fosse atrás de mim e, enfim, foi nessa hora que você entrou no carro gritando que ia atrás de mim e que ele podia fazer o que bem entendesse. Imagino que muitíssimo nervosa, chorando, você bateu o carro quando ia em direção ao meu prédio.
.....Mas quem te contou isso?, perguntei a Elza.
.....Tua tia Ruth.
.....E parece que foi assim mesmo, pois foi o próprio Tatit quem contou pra tia Ruth. O seu carro foi encontrado destruído perto de onde moro, com você dentro desacordada. Uma ambulância veio em seu socorro, mas, apesar de não desistirem de você, os médicos achavam bastante improvável que você sobrevivesse. Elza foi me revelando a trama e eu ficando sem reação. Enjoado. Sem saber o que pensar. Então se deu um silêncio no qual você cantava dentro. Até que Elza me ajudou com esse silêncio, fazendo meu pasmo crescer, perguntando: Você sabia que Tatit surrava ela, Jassei?
.....Sabia.
.....Isso não se faz, Jassei, não se bate em mulher.
.....Elza ia começar a chorar sua raiva ainda não apaziguada quando, súbito, veio um barulho da cozinha. Umbigo ganiu. Corremos em seu socorro entrando às pressas. O cãozinho estava encolhido num canto, quase atrás da geladeira, bastante assustado, a respiração opressa. Ele havia derrubado a chaleira na qual fervia a água pro nosso café. Por pouco não se feriu. Sua mãe o pegou no colo e o acariciou, até que, os ânimos se acalmaram.
.....O café ficou prometido pra outro dia. Fui embora dali com uma tristeza que me apertava a garganta amarga.

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